Migalhas Marítimas

Convenção OIT 185 e a posição das autoridades brasileiras quanto aos documentos dos tripulantes marítimos

Aos marítimos nacionais de países não signatários da Convenção 185 ou que não possuam a carteira de marítimo expedida nos moldes dela, a alternativa seria solicitar a expedição de visto específico à autoridade brasileira.

4/8/2022

Em 1958 foi aprovada na 41ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho, em Genebra, a Convenção OIT 108 que tratava sobre as Carteiras de Identidade dos Marítimos.

A Convenção determinava mecanismos para emissão de documento ao marítimo nacional de um país signatário ou marítimo a bordo de embarcação destinada à navegação marítima, devidamente matriculada em um território para o qual a Convenção 108 estivesse em vigor.

O Brasil ratificou a Convenção em 5 de novembro de 1963, e a promulgou por meio do Decreto 58.825/66, unindo-se, assim, a outros 63 países signatários favoráveis a padronização da carteira de identidade de marítimo.

Com o passar das décadas, o cenário marítimo sofreu significantes alterações, tomando nota das emendas à Convenção da Organização Marítima Internacional sobre a Facilitação do Trânsito Marítimo Internacional (1965) e à Convenção Internacional para a Segurança da Vida Humana no Mar (1974), sendo necessária a adequação da Convenção 108.

Nesse contexto, o Conselho de Administração do Escritório Internacional do Trabalho entendeu por reunir-se novamente em Genebra, a fim de discutir e adaptar a expedição do documento de trabalhadores marítimos ao contexto global atualizado à época.

Com isso, foram acordadas em 2003, novas regras para expedição dos documentos de Identidade da ‘Gente do Mar’ adotando-se a Convenção 185 da Organização Internacional do Trabalho.

A nova Convenção apresentava texto robusto, prevendo maiores garantias e significantes alterações para o comércio internacional e migratório, além de determinar formalidades rígidas quanto à expedição do documento. Por conseguinte, sua ratificação e promulgação não atingiu a todos, vez que pouco mais da metade dos países signatários a OIT 108 ratificou a nova Convenção.

O Brasil, no entanto, atento às normas protetivas, entendeu por ratificar a Convenção 185, em 21 de janeiro de 2010, denunciando, portanto, a anterior OIT 108.

No entanto, foi somente em novembro de 2019 que o Brasil promulgou a nova Convenção, por meio do decreto 10.088/19. À vista disto, a partir de tal promulgação, a autoridade brasileira passaria a aceitar e reconhecer apenas documentos dos tripulantes marítimos e gente do mar confeccionados de acordo com os critérios formais determinados pela Convenção 185.

Em consequência, a autoridade migratória brasileira deixaria de autorizar o ingresso, em seu território, de marítimos nacionais de 26 países - não signatários da nova Convenção, - e passaria a impedir o ingresso daqueles que, ainda que nacionais de países signatários, não portassem o documento expedido nos termos da Convenção 185, a não ser que portassem visto apropriado. Ou seja, nesses casos, não seria mais aceita a carteira de marítimo expedida com base na antiga Convenção 108, ainda muito utilizada.

Em termos práticos, o cenário migratório marítimo sofreria significativa afetação, com o impedimento de ingresso de tripulantes estrangeiros no país, que não portassem a carteira de marítimo com base na nova Convenção 185.

Ressalta-se, ainda, que o estrangeiro irregular em território brasileiro – e a empresa gestora - poderia sofrer sanções administrativas, com autuações que implicassem desde multas pecuniárias, até medidas de retirada compulsória ou deportação, conforme determina a Lei de Migração vigente.

O decreto 10.088/19 – que promulgou a Convenção 185 - entrou em vigor em dezembro de 2019, fazendo com que as autoridades migratórias passassem a impedir o ingresso de tripulantes que portassem documentos emitidos nos moldes da antiga Convenção 108, e autuando severamente as embarcações responsáveis por esses tripulantes que estariam em condições irregulares.

Ocorre que, no início de 2020 a crise sanitária ocasionada pela COVID-19 rapidamente avançava fronteiras e ocasionava a paralisação de órgãos e departamentos governamentais. Os países restringiam e decretavam fechamento de suas fronteiras, no intuito de impedir que o vírus se alastrasse rapidamente.

Os países signatários à Convenção OIT 185, uma vez que obrigados a restringirem a circulação de sua população e suspender os trabalhos presenciais, se viram impedidos de expedir o documento de gente do mar. Ou seja, muito comumente, países já signatários da Convenção 185 ainda não estavam emitindo a documentação dos tripulantes marítimos com base nos moldes da nova Convenção.

Desde modo, a Autoridade Migratória brasileira, em caráter temporário, entendeu por flexibilizar o ingresso dos tripulantes portadores de carteira de marítimo emitida pela antiga Convenção 108, publicando em 2020 a MOC 54 (“Mensagem Oficial-Circular”) que regulamentava a aceitação temporária da documentação dos marítimos expedida com base na convenção anterior. A flexibilização foi sendo prorrogada ao passo que as autoridades – Polícia Federal, Ministério Exterior e Ministério de Justiça e Segurança Pública – publicavam novas Portarias e MOCs, renovando o prazo de aceitação da documentação nos moldes da Convenção anterior 108.

Após a MOC 54/00, a MOC 09/21 e mais recentemente a MOC 02/22, o governo brasileiro foi prorrogando, agora até 30 de abril de 2023, a admissão de documento de identidade de marítimo expedido pela Convenção 108.

Assim, não obstante o Brasil ser signatário da Convenção OIT 185, em razão da crise sanitária mundial COVID-19, a Autoridade Migratória Brasileira, excepcionalmente, continuará aceitando a carteira de marítima emitida nos moldes da Convenção anterior 108.

Deste modo, a partir de 1 de maio de 2023 o governo brasileiro somente autorizará o ingresso em seu território de tripulante portador do documento de gente do mar, devidamente emitidos nos moldes da Convenção 185 da Organização Internacional do Trabalho.

Aos marítimos nacionais de países não signatários da Convenção 185 ou que não possuam a carteira de marítimo expedida nos moldes dela, a alternativa, para se evitar o risco de autuações, seria solicitar a expedição de visto específico à autoridade brasileira, por meio das representações consulares do Brasil no exterior. Esta é a regra disciplinada pela nova Lei de Migração (lei 13.445/17), que prevê a necessidade do visto temporário, excepcionando o mesmo ao marítimo que ingressar no Brasil em viagem de longo curso ou em cruzeiros marítimos pela costa brasileira, desde que apresente a carteira internacional de marítimo expedida com base na Convenção acima mencionada.

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Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.