A sub-rogação securitária é um instituto de grande relevância no âmbito do Direito Civil e do Direito do Seguro. Isso porque, com o pagamento da indenização ao segurado, a seguradora assume sua posição jurídica perante o causador do dano, exercendo o direito de regresso para reaver o valor pago. Tal sucessão decorre expressamente da previsão legal do art. 786 do CC, segundo a “paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações do segurado contra o autor do dano”.
Embora a sub-rogação esteja bem delimitada quanto aos seus efeitos materiais, a definição do termo inicial do prazo prescricional para o exercício da pretensão regressiva pela seguradora ainda suscita controvérsias relevantes. Determinados precedentes recentes da jurisprudência pátria, inclusive do STJ1, tem adotado o entendimento de que o prazo prescricional começaria a fluir a partir do pagamento da indenização ao segurado. Essa posição, entretanto, não é isenta de críticas, especialmente quando o instituto é analisado sob a ótica sistemática e principiológica do Direito Civil e da função econômica do contrato de seguro.
Levando em consideração os termos do art. 349 do CC, tem-se que a sub-rogação transfere à seguradora os direitos e ações do segurado em face do terceiro causador do dano, de modo que o crédito antes pertencente ao segurado é transmitido à seguradora, que o deve exercer dentro dos mesmos limites e condições da parte segurada. Sob o prisma lógico-jurídico, a pretensão jurídica subjacente não nasce com o pagamento da indenização, mas já existe desde o evento danoso, pois o direito material de ressarcimento surge no momento em que o dano é causado. O pagamento apenas condiciona o exercício da pretensão pela seguradora, funcionando como elemento de legitimação ativa, e não como fato constitutivo do direito.
A doutrina de Ernesto Tzirulnik2, é elucidativa ao afirmar que “aplica-se o mesmo raciocínio desenvolvido para a determinação do termo inicial pertinente ao segurado”, isto é, “o termo inicial do prazo será o dia em que se der o conhecimento, pelo terceiro, do dano sofrido e do nexo de causalidade entre esse dano e o fato lesivo de responsabilidade do segurado.” Assim, “a prescrição destas pretensões regula-se pelo prazo que possuíam quando de titularidade do credor original.”
Apesar da coerência teórica dessa construção, conforme exposto, o STJ tem consolidado seu entendimento em sentido diverso, firmando-se no sentido de que o prazo prescricional da ação regressiva da seguradora sub-rogada tem início apenas com o efetivo pagamento da indenização ao segurado. O fundamento central dessa orientação é de natureza prática: antes do pagamento, a seguradora não deteria legitimidade para propor a ação regressiva, uma vez que a sub-rogação ainda não se teria operado. Sob essa perspectiva, não seria possível iniciar a contagem do prazo prescricional contra quem ainda não é titular do direito.
Tal raciocínio, contudo, confunde a legitimidade processual com o nascimento da pretensão material, gerando evidente distorção jurídica. Como exposto, o direito de ressarcimento não surge com o pagamento, mas tão somente muda de titular. O segurado já o detinha desde o momento do dano e a seguradora, ao se sub-rogar, adquire o crédito no estado em que ele se encontra, inclusive quanto ao prazo prescricional.
Como bem observa Arnoldo Wald, “no caso da sub-rogação, mantém-se a relação jurídica obrigacional originária, transferindo-se a quem pagou todos os direitos e garantias anteriormente pertencentes ao credor, não ocorrendo a extinção da obrigação nem a liberação do devedor, mas simplesmente uma modificação de credor.”3
Fixar o termo inicial da prescrição apenas com o pagamento da indenização implica, em última análise, conferir um prazo artificialmente ampliado à seguradora, em detrimento do suposto devedor. Tal consequência vulnera o princípio da segurança jurídica e o caráter objetivo da prescrição, que visam à estabilidade das relações e à proteção da confiança legítima. O pagamento é ato interno à relação entre segurador e segurado e não deveria repercutir na esfera jurídica de terceiro estranho a essa relação.
Maria Helena Diniz4, ao tratar da função da prescrição, leciona que:
“A prescrição tem por objeto a pretensão à prestação devida em virtude de um descumprimento legal ou obrigacional, que gera o direito para obter a tutela jurisdicional (CC, art. 189); por ser uma exceção oposta ao exercício da ação (em sentido material), tem por escopo extingui-la, ante a inércia do titular, deixando escoar o prazo legal para exigi-la, tendo por fundamento um interesse jurídico-social. Esse instituto foi criado como medida de ordem pública para proporcionar segurança às relações jurídicas, que seriam comprometidas diante da instabilidade oriunda do fato de se possibilitar o exercício da ação por prazo indeterminado”.
A natureza da prescrição, como bem reconhece a doutrina, é de ordem pública e deve ser encarada como instituto concebido para garantir segurança jurídica - não em favor do credor, mas em benefício do devedor, assegurando que este não permaneça indefinidamente exposto à incerteza de uma demanda.
Em certa medida, a função limitadora da prescrição contrasta com o drama humano narrado por Victor Hugo em Os Miseráveis. Jean Valjean, ainda que redimido de seus fatos pretéritos, permanece eternamente aprisionado ao passado, condenado a carregar a marca de um erro que o Direito - se aplicado ao plano jurídico e não moral - jamais permitiria eternizar. Sua perseguição por Javert simboliza o ideal de uma justiça absoluta e incessante, que não se curva ao tempo nem à possibilidade de esquecimento, mas que, por isso mesmo, perde o sentido de humanidade.
A prescrição, ao revés, representa o triunfo do tempo sobre a pretensão: é o reconhecimento de que a ordem jurídica, diferentemente da moral trágica, impõe limites à perpetuação da responsabilidade. Enquanto o universo literário de Victor Hugo se alimenta da ideia de uma responsabilidade que jamais cessa, o Direito busca estabilizar relações e encerrar conflitos, substituindo a condenação eterna pela paz social.
Nesse contraste, evidencia-se a razão de ser da prescrição: impedir que o devedor viva como um “Jean Valjean jurídico”, eternamente sob o peso de um passado que o sistema normativo deve, em algum momento, declarar superado. O que jamais ocorrerá caso se permita que a seguradora renasça o prazo prescricional a qualquer momento em que, por sua conveniência e oportunidade, resolver realizar o pagamento da indenização securitária.
Sob essa ótica, o início do prazo prescricional não pode sofrer alterações em razão da mudança de titularidade do crédito, na medida em que a sub-rogação não cria um novo direito, apenas transfere o existente, com todos os seus contornos e limites. Alterar o termo inicial da prescrição em razão do pagamento da indenização, significa, portanto, desrespeitar o princípio da continuidade da relação obrigacional e da impessoalidade da prescrição.
Em outras palavras, a seguradora, ao se sub-rogar, não ingressa na relação obrigacional como nova parte dotada de direito autônomos, mas assume a exata posição jurídica do segurado, com os mesmos direitos, ônus e limitações temporais.
A posição jurisprudencial acima citada, embora prática, revela-se dogmaticamente questionável. A contagem do prazo prescricional a partir do pagamento da indenização ignora a natureza sucessória da sub-rogação e concede tratamento desproporcional ao devedor. A interpretação mais adequada, em consonância com a doutrina civilista clássica e com os princípios que regem a prescrição, é a de que o prazo tem início no momento do evento danoso, permanecendo o segurador sujeito ao tempo já transcorrido na esfera do segurado, sem que isso represente um reset do prazo.
Nesse sentido, o próprio C. STJ e diversos Tribunais de Justiça já enfrentaram situações análogas, assentando que o prazo prescricional se inicia na data do evento danoso, e não no pagamento da indenização, conforme demonstram os precedentes a seguir:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO REGRESSIVA DE RESSARCIMENTO DE DANOS MATERIAIS EM TRANSPORTE AÉREO. (...)
Nos contratos de seguro de dano, o segurador, ao pagar a indenização decorrente do sinistro, sub-roga-se nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o causador do dano, consoante a literal disposição do art. 786, caput, do CC/02. (...) Sub-rogando-se a seguradora nos direitos do segurado, o prazo de prescrição da ação contra a seguradora para cobrar a indenização será o mesmo estabelecido para a ação que poderia ter sido manejada pelo titular originário dos direitos.
(REsp 1.745.642/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/2/2019, DJe 22/2/2019)
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AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. SEGURO VIAGEM. (...)
A seguradora, ao ressarcir os prejuízos ocasionados pela perda da mercadoria, sub-roga-se nos direitos do segurado, podendo ajuizar ação contra o terceiro. A sub-rogação, entretanto, confere à seguradora o mesmo prazo prescricional previsto na relação jurídica originária, previsto para o segurado. (...)
(AgInt no AREsp 891.044/MS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 15/12/2016, DJe 2/2/2017)
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AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CONDENATÓRIA. (...)
Esta Corte Superior firmou posicionamento no sentido de que, ao pagar a indenização ao segurado, a seguradora sub-roga-se nos direitos daquele, conferindo-lhe, inclusive, o prazo prescricional aplicável à relação originária.
(AgInt no AREsp 1.305.024/SP, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 2/4/2019, DJe 5/4/2019)
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TRANSPORTE MARÍTIMO INTERNACIONAL. Ação de regresso da seguradora contra empresa responsável pelo transporte em razão de avarias na carga transportada. Sentença de improcedência, reconhecendo a prescrição. Irresignação da parte autora. Descabimento. Prescrição caracterizada. Prazo anual previsto pelo artigo 8º do Decreto-Lei 116/67 e pela Súmula 151 do E. STF, contado a partir da data da descarga do navio, e não da data do efetivo pagamento pela seguradora. A seguradora sub-roga-se nos direitos e ações do segurado, inclusive no que diz respeito ao prazo prescricional, para, assim, buscar o ressarcimento do valor que desembolsou. A prescrição contra a seguradora sub-rogada flui desde a data da descarga do navio, sendo irrelevante a data do pagamento da indenização do seguro. Sentença mantida. Aplicação do art. 252 do RITJSP (...).
(TJSP; Apelação 1013840-04.2015.8.26.0562; Relator (a): Walter Barone; 24ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 31/07/2018)
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TRANSPORTE MARÍTIMO. AVARIA DE CARGAS. AÇÃO REGRESSIVA DA SEGURADORA CONTRA O TRANSPORTADOR. PRESCRIÇÃO. RECONHECIMENTO. AÇÃO PROPOSTA ALÉM DO PRAZO DE UM ANO PREVISTO NO ART. 8º DO DECRETO-LEI Nº 116/67. PRAZO ÂNUO QUE TEM INÍCIO NA DATA DE DESCARREGAMENTO DO NAVIO. PRESCRIÇÃO OPERADA. PRECEDENTES DO STJ E DO STF. Nos termos do art. 8º do Decreto-Lei 116/1967, é de um ano o prazo para a prescrição da pretensão indenizatória, no caso das ações por extravio, falta de conteúdo, diminuição, perdas e avarias ou danos à carga a ser transportada por via d'água nos portos brasileiros. A Súmula 151 do STF orienta que prescreve em um ano a ação do segurador sub-rogado para haver indenização por extravio ou perda de carga transportada por navio. A seguradora sub-roga-se nos direitos e ações do segurado, após o pagamento da indenização securitária, inclusive no que tange ao prazo prescricional, para, assim, buscar o ressarcimento que realizou. A prescrição contra a seguradora sub-rogada flui desde a data do evento danoso, sendo irrelevante a data do pagamento da indenização do seguro. Apelação não provida.
(TJSP; Apelação 1049524-55.2014.8.26.0002; Relator (a): Sandra Galhardo Esteves; 12ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 16/05/2018)
Essa compreensão preserva a coerência interna do sistema, reforça a função estabilizadora da prescrição e impede que o exercício do direito de regresso dependa da conveniência de quem o adquire por sub-rogação. Trata-se, portanto, de uma leitura mais fiel aos fundamentos do Direito Civil contemporâneo e à necessária harmonia entre as dimensões prática e dogmática do instituto da sub-rogação securitária.
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1 STJ, REsp 1.842.120/RJ, rel. ministra Nancy Andrighi, 3ª turma, julgado em 20/10/20, DJe 26/10/20; STJ, AREsp 982.198/SP, rel. Ricardo Villas Bôas Cueva
2 TZIRULNIK, Ernesto. CAVALCANTI; Flávio de Queiroz B; PIMENTEL, Ayrton. O contrato de Seguro de acordo com o Código Civil brasileiro. 3. ed.. São Paulo: Roncararati, 2016. Págs. 332/333.
3 WALD, Arnoldo. Obrigações e contratos. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983. 211 p. (Curso de Direito Civil Brasileiro. 2).
4 Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral do Direito Civil - v. 1 / Maria Helena Diniz. – 40. ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2023.