Migalhas Notariais e Registrais

Retificação de área e o provimento CNJ 195/25 - Grilagem de terras e controle da malha imobiliária - Parte 7

Reflete sobre o poder-dever do registrador de imóveis de denunciar os casos de grilagem de terra nos procedimentos de retificação de área.

3/11/2025

Continuando a série de publicações1, passamos a tratar do problema de grilagem de terras e controle ad malha imobiliária.

Uma das funções inerentes à atividade do registrador de imóveis é o controle da malha imobiliária. Esse poder-dever passou a constar categoricamente no texto do provimento CNJ 195, em diversas passagens, inclusive, ao tratar do IERI-e - inventário eletrônico estatístico e do SIG-RI - sistema de informações geográficos.2

O princípio fiscalizatório insculpido no § 9º do art. 440-AX do Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial, determina que “Havendo indícios de grilagem de terras, fraude procedimental, declaração falsa ou cometimento de qualquer outro ato ilícito pelo requerente ou pelo profissional técnico, o oficial de registro comunicará o fato ao juízo competente e ao Ministério Público com as cópias dos documentos necessários à análise”.

A “grilagem de terras” é a prática ilegal de apropriação de terras públicas ou de terceiros por meio da falsificação de documentos ou títulos de propriedade, com o objetivo de dissimular a legitimidade da posse.

Diz a história que a expressão “grilagem” vem de um antigo artifício utilizado para dar a documentos novos a aparência de velhos, buscando simular um título legítimo e um certo tempo de posse. Para tanto, os fraudadores de títulos imobiliários colocavam os falsos documentos recém-elaborados em uma gaveta ou caixa metálica ou de madeira juntamente com diversos grilos, fechando-a em seguida. Depois de algumas semanas, os documentos já apresentavam manchas amarelo-fosco-ferruginosas, decorrentes dos dejetos dos insetos, além de ficarem corroídos nas bordas e com pequenos orifícios na superfície, tudo a indicar a suposta ação do tempo, dando aspecto de documentos antigos e verdadeiros.3

Atualmente, no entanto, o termo “grilagem” é usado de forma mais ampla, para indicar qualquer ação ilegal que vise regularizar a propriedade de imóvel em nome de pessoas que não são os verdadeiros possuidores ou proprietários. As formas de grilagem de terra, portanto, são hoje ainda mais sofisticadas e criativas, muitas vezes valendo-se de meios oficiais, que, em tese, deveriam dar segurança jurídica e inviabilizar fraudes.

Exemplo disso é a utilização indevida do SIGEF - Sistema de Gestão Fundiária do INCRA para certificar a inexistência de sobreposição com outros imóveis, gerando documentos de terra com área muito acima do original ou mesmo criando imóveis inexistentes, buscando esquentar o imóvel no registro imobiliário. Outro exemplo de fraude moderna à brasileira se dá como o uso indevido do CAR - Cadastro Ambiental Rural para tentar validar terras públicas como propriedade privada. Tal utilização irregular destes cadastros é possível porque ambos são autodeclaratórios e, não havendo outro polígono total ou parcialmente cadastrado no mesmo local indicado pelos profissionais técnicos que fizeram o georreferenciamento do imóvel ou da parcela, é possível a inclusão dos dados unilateralmente nos respectivos sistemas.

Para citar mais dois exemplos, também se enquadram como hipóteses de grilagem as concessões ou doações irregulares de terras devolutas discriminadas pelos estados ou a venda de sentenças judiciais reconhecendo terras para grileiros, as quais se dão mesmo quando não existe comprovação dos requisitos legais para a devida ocupação dos imóveis.

Outrossim, sob o aspecto da finalidade da grilagem de terra, podemos classificá-la em duas modalidades: a grilagem comum, física ou expropriatória e a grilagem virtual ou cybergrilagem.

A grilagem comum é aquela que decorre da apropriação física do território, ocorre por meio da fraude documental aliada à ocupação física da possessão de terras, isto é, a invasão ou tomada de imóvel alheio, normalmente pelo uso da força ou ameaça. Em geral, após falsificar ou manipular documentos, os grileiros invadem a terra, desmatam a área e iniciam alguma atividade produtiva, como criação de gado ou plantio, para dar aparência de uso legítimo e justificar a posse.

No entanto, a modalidade mais moderna de grilagem não demanda necessariamente conflitos diretos dos grileiros com os verdadeiros ocupantes. A grilagem virtual (ou cybergrilagem) é a fraude que apenas cria um título de propriedade para colocá-lo como ativo no mercado, seja para vendê-lo, seja para conseguir financiamentos dando o suposto imóvel em garantia para instituições financeiras. Nesta hipótese, basta ter um título registrado, uma matrícula no cartório de registro de imóveis, dando a aparência de legalidade aos documentos de domínio. Ou seja, o imóvel em si sequer precisa existir de fato, bastando que exista “no papel” (em geral com a descrição georreferenciada, mas que não corresponde a um imóvel existente).

Essa forma de grilagem geralmente não provoca confronto violento entre grileiros e legítimos ocupantes (possuidores ou proprietários), mas ainda assim causa gravíssimos prejuízos. Ela gera sobreposição de áreas, impedindo a regularização dos imóveis dos legítimos proprietários ou possuidores junto ao Incra e ao registro de imóveis, além de prejudicar terceiros de boa-fé, devido a possibilitar vendas a non domino ou inviabilizar a execução de garantias imobiliárias na prática inexistentes.

Os oficiais de registro de imóveis, responsáveis pelo controle da malha imobiliária em suas circunscrições, devem, portanto, realizar qualificação registral rigorosa no procedimento de retificação de área. Situações que indiquem fraudes ou grilagens devem ser coibidas com o indeferimento do procedimento e comunicadas à autoridade judicial e ao parquet, conforme ficou estabelecido pelo provimento CNJ 195/25.

Além da grilagem de terras, quaisquer outras formas de fraude procedimental, declaração falsa, ou cometimento de qualquer outro ato ilícito pelo requerente ou pelo profissional técnico, devem ser comunicados às referidas autoridades.

O § 9º do art. 440-AX determina ao registrador de imóveis um dever próximo àquele estabelecido aos juízes e aos tribunais no CPP (art. 40) e na lei 8.935/1994 (art. 22, parágrafo único). Assim, verificando o cometimento de ato ilícito que possa configurar infração penal pelo requerente e/ou pelo profissional técnico, devem ser comunicados e remetidos os documentos necessários ao juízo competente e ao Ministério Público.

O juízo competente aqui pode ser tanto o juiz corregedor, que eventualmente pode determinar alguma medida acautelatória, caso o ato registral já esteja formalizado no livro imobiliário, como o bloqueio de matrícula ou o cancelamento de um registro, de alguma averbação ou até mesmo da própria matrícula. Também pode ser o magistrado atuando na esfera judicial, especialmente se houver algum processo de conhecimento do registrador com a causa de pedir prejudicada pelo ato ilícito praticado pelo requerente ou pelo profissional (v. g., quando houver averbação da existência de ação judicial na matrícula relacionada com a discussão sobre posse ou propriedade).

Existindo fundada suspeita da ocorrência de crime de ação pública, o registrador de imóveis ainda deverá remeter ao Ministério Público as cópias e documentos necessários ao oferecimento de denúncia. Como não compete ao registrador fazer a análise da tipificação penal, a regra será sempre oficiar o órgão ministerial para que este decida sobre a realização a realização de outras diligências ou mesmo a promoção ou não da denúncia.

A depender do caso concreto, por exemplo, os ilícitos penais podem se enquadrar como crimes de utilização indevida como prova da propriedade de documentos emitidos pelo Incra ou de invasão de terras públicas (arts. 19 e 20 da lei 4.947/1966), falsidade ideológica (art. 299, CP), associação criminosa (art. 288, CP), corrupção ativa e passiva (art. 317 e 333, CP), usurpação e esbulho possessório (art. 161, CP), estelionato por disposição de coisa alheia como própria (art. 171, § 2º, I, CP), ou até mesmo crimes ambientais, dentre outros fatos típicos penais.

Outrossim, o órgão ministerial deverá ser oficiado também nas hipóteses de ilícitos não-penais, cujo processo envolva “litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana” (art. 178, inc. III, do CPC).

Vale lembrar que, quando o caso envolver possível prejuízo ao patrimônio da União, de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, a competência será da Justiça Federal e, assim, deve ser oficiado o Ministério Público Federal (art. 109, I, CF).

A documentação a ser encaminhada pelo registrador será o ofício relatando os fatos, acompanhado da cópia dos documentos necessários para formar a prova indiciária da possível materialidade e dos supostos autores da infração.

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Este é o sétimo e último artigo de uma série dividida em 7 partes relacionados ao art. 440-AX do Prov. CNJ 195/25, que dispõe sobre o procedimento de retificação de área, com os seguintes temas: (i) abertura de nova matrícula após a retificação; (ii) forma de anuência dos confrontantes; (iii) assinaturas eletrônicas no procedimento de retificação de área; (iv) hipóteses de dispensa da anuência dos confrontantes; (v) retificação de área cumulada com desmembramento ou unificação; (vi) critérios para deferimento e indeferimento da retificação de área; e (v) grilagem de terras e controle da malha imobiliária pelo oficial de registro de imóveis.

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1 Disponível aqui.

2 Um dos “CONSIDERANDOS” do Provimento do IERI-e estabelece expressamente que: “[...] o adequado controle da malha imobiliária, da disponibilidade e da unicidade matricial depende da análise técnica dos polígonos dos imóveis descritos no fólio real com coordenadas geodésicas, mediante implementação de um Sistema de Informações Geográficas (SIG), permitindo que os oficiais de registro de imóveis verifiquem a exata localização e descrição dos imóveis georreferenciados, formando um mosaico dos imóveis registrados na serventia predial”.

3 BRASIL. Ministério da Política Fundiária e do Desenvolvimento Agrário. O livro branco da grilagem de terras no Brasil. Brasília: INCRA, 1999, 41 p. Disponível aqui. Acesso em: 10 out. 2025.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é Membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Advogado, parecerista e árbitro. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Ex-assessor de ministro STJ. Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC). Fundador do IBDCont (Instituto Brasileiro de Direito Contratual). Membro da ABDC (Academia Brasileira de Direito Civil), IBDfam (Instituto Brasileiro de Direito de Família),do IBRADIM (Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário) e do IBERC.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.