Olhares Interseccionais

A neurose cultural brasileira e o julgamento do habeas corpus 208.240 no STF

O ponto de partida, portanto, é uma provocação que serve como pavio para evidenciar os entraves ao cumprimento da promessa constitucional de promoção da igualdade material, que resulta na negação da cidadania plena ao povo negro.

15/5/2023

Marcando a minha chegada a esta coluna especial, busco acrescer mais uma lente aos múltiplos olhares a partir de uma perspectiva interseccional. A largada neste escrito fica por conta de uma passagem que ouvi há muito tempo, e que me marcou, ainda que não consiga precisar a autoria: "o Brasil tem problemas de memória e de divã". Essa constatação revela a existência de estratégias de apagamento da memória coletiva brasileira que relega parte do corpo social à vivência de uma neurose cultural.

O ponto de partida, portanto, é uma provocação que serve como pavio para evidenciar os entraves ao cumprimento da promessa constitucional de promoção da igualdade material, que resulta na negação da cidadania plena ao povo negro. Na sequência, daremos continuidade à reflexão iniciada por André Nicolitt1, percebendo os modos de legitimação nos sistemas de justiça e de segurança pública a diligências discriminatórias e de controle social, mimetizados também por agências privadas. Com isso, poderemos avançar ao adequado enfrentamento destes problemas.

Entre abordagens por "fundada suspeita", uso da força policial para retirar "figuras de perigo" em aviões, abordagens "aleatórias" que funcionam como um jogo de cartas marcadas, álbuns de "suspeitos" circulando em grupos de trocas de mensagens, e prisões preventivas fundamentadas pela "garantia da ordem pública", são sempre os mesmos corpos que seguem flagelados pelas múltiplas formas de opressão da existência negra. As pessoas que ostentam a cor da noite vivem sob o peso do estereótipo utilizado para inspirar o medo e instigar a repressão, ao passo em que, aos olhos do poder, não são cidadãs suficientes para receber medidas de reparação diante das violências a que são cotidianamente submetidas.

Esta 'neurose cultural brasileira', fenômeno através do qual coletivamente se constroem modos de ocultação do sintoma, visando a manutenção de privilégios e o alívio da angústia de se defrontar com o recalcamento2, leva-nos ao cenário, no sistema de justiça, onde o óbvio precisa ser reiterado. Como exemplo concreto, há a discussão atualmente em curso no Supremo Tribunal Federal, por meio do Habeas Corpus (HC) n.º 208.240.

No caso desse Habeas Corpus, discute-se a impossibilidade de busca pessoal fundada em filtragem racial, e a pele-alvo da vez é a de Francisco Cícero, que foi encontrado com quantidade insignificante de drogas (1,53g) e condenado, na primeira instância, a sete anos e onze meses de reclusão. A pena foi reformada, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), para dois anos e onze meses; contudo, um dos ministros da Corte apresentou dois argumentos para absolver Francisco da acusação: 1º) a ínfima quantidade de droga apreendida remete à insignificância jurídica, e 2º) uma abordagem a partir do racismo invalida toda a prova daí derivada3.

Aberta a discussão no Supremo Tribunal Federal, o Relator, Ministro Edson Fachin, expôs o entendimento de que "não se pode ter como elemento ensejador da fundada suspeita a convicção do agente policial despertada a partir da cor da pele"4. O que causa espécie, nessa discussão, é que três dos quatro ministros votantes até a presente data se manifestaram pela denegação da ordem do HC, sob o argumento de que "o caso concreto não é um bom caso para se discutir perfilamento racial". Pretendem, portanto, que aguardemos outro caso mais explícito do que esse – no qual o agente de segurança pública realizou a busca pessoal e afirmou que a fundada suspeita emergiu quando, ao passar pela rua "avistou ao longe um indivíduo de cor negra, que estava em cena típica de tráfico de drogas"5 – para, só então, termos o “caso certo” para discutirmos a inconstitucionalidade da realização de diligências de segurança pública motivadas pela cor da pele.

O julgamento segue paralisado em razão do pedido de vista de um dos Ministros, feito no mês de março, sem previsão de continuidade do julgamento. É assim que, em maio, no mês em que se demarca a abolição formal da escravatura, percebe-se que ainda há um caminho muito longo para a emancipação da população negra e para que, enfim, possam reverberar os cânticos de verdadeira liberdade.

Importante neste momento assinalar um aspecto ao qual não se dedica muita atenção, embora fundamental na discussão: a suposta ignorância quanto ao modo como as questões raciais atravessam as relações no Brasil é utilizada como escudo para evitar o enfrentamento da discriminação e do racismo, sob o argumento de que não é o momento/caso correto, ou de que não houve intenção por parte do autor da violência racial, ou mesmo sem sequer uma justificativa, simplesmente através da concretização dos atos discriminatórios ou da omissão diante da prática destes atos. Daí assentamos: é preciso que aprofundemos a compreensão do fenômeno da ignorância como escudo cultural que impede o tratamento das questões raciais, e a chave para isso é o estudo da agnotologia6.

A sociedade brasileira está imersa em um cenário onde, para além das negações coletivas do passado, as pessoas são encorajadas a agir como se não conhecessem o presente. No país onde é institucionalizado o "racismo sem racistas", a existência é baseada em formas de crueldade, discriminação, repressão ou exclusão, que são conhecidas, mas nunca reconhecidas abertamente, reforçando as hierarquias raciais socialmente arquitetadas.

Charles Mills aponta que há uma negação da centralidade do racismo como ideologia constituinte do pensamento Ocidental, fruto de um trabalho de apagamento histórico realizado por elites intelectuais. Para o autor, a superação da ignorância branca (white ignorance) no passado e no presente requer um aprofundamento na análise das teorias sociais e de humanidades, além das implicações na prática (no direito, nas políticas públicas e no governo), bem como uma investigação do que o legado destas práticas, na contemporaneidade, relega-nos, nacional e internacionalmente, como consequências7.

Impossível, portanto, que o antirracismo siga somente como plataforma discursiva. O clamor político e social na luta pela promoção da igualdade racial é por ações e políticas públicas efetivas, e pela consciência e comprometimento sociais, afinal: "cientes de que não haverá nenhum tipo de paz e ou concordata, enquanto não forem revistos os termos de um pacto social que aposta na inviabilidade no segmento negro no Brasil, parece mesmo que sobra muito pouco espaço para meias palavras e meias convicções (...) com as legendas devidamente registradas, agora, parece ter chegado o tempo derradeiro das filiações"8. Não há caminho outro que não a revisão do próprio pacto social que sustenta essas assimetrias raciais, e que nutre a perpetuação de desigualdades através do sistema de justiça criminal brasileiro.

__________

1 NICOLITT, André. STF - HC 208240: O que une Francisco e Luiz Justino? Disponível aqui. Acesso em: 10. mai. 2023

2 GONZALEZ, Lelia. Racismo e Sexismo na cultura brasileira. In: Por um feminismo afrolatinoamericano: ensaios, intervenções e diálogos. Org: Flavia Tios, Marcia Lima. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 84.

3 NICOLITT, André. O Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus 208.240-SP. Conjur, 12 de março de 2023. Acesso em: 10.mai.2023 .

4 MIGALHAS. STF: Para 3 ministros, caso em pauta não trata de perfilamento racial. Disponível aqui. Acesso em: 03 mai. 2023.

5 Idem.

6 A agnotologia  foi um termo cunhado, em 1995, por Robert Proctor, professor de História da Ciência da Universidade de Stanford, que define o estudo da produção política e cultural da ignorância.

Mills, Charles. W.. Global white ignorance. In Routledge International Handbook of Ignorance Studies, 2015, p. 221. Taylor and Francis Inc. Disponível aqui. Acesso em: 03 mai. 2023. Tradução livre.     

8 FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: O sistema penal e o projeto genocida do Estado Brasileiro. 2ª ed. Brasília: Brado Negro, 2017, p. 139.

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