Ordem na Banca

Na gestão legal, chame o bom senso pra jogo

“Na gestão de escritórios, bom senso é essencial”. Lara Selem explica o conceito a partir da experiência, leitura humana, mentalidade crítica e flexibilidade, considerando pessoas, contexto, consequências e o equilíbrio entre regras e realidade. (Clique aqui)

19/11/2025

Nos escritórios de advocacia, não faltam números, relatórios financeiros, indicadores de desempenho, políticas e contratos. Tudo isso pode até trazer alguma sensação de segurança aos sócios, mas existe um fator invisível que, muitas vezes, pesa mais do que qualquer cláusula ou planilha: o bom senso.

Na gestão, o bom senso não é “achismo”. É a capacidade de interpretar o contexto, projetar consequências e equilibrar técnica com realidade. Sem ele, a decisão pode ser coerente com a regra escrita, mas inviável na prática, seja porque compromete a equipe, desgasta o cliente ou enfraquece a sociedade.

De onde vem o bom senso na gestão?

Ele não nasce de intuição pura, e sim do resultado de quatro elementos combinados:

  1. Experiência acumulada. Profissionais que passaram por crises, negociações difíceis ou reestruturações sabem que números contam apenas parte da história. O histórico de decisões vividas cria um repertório que orienta escolhas mais equilibradas no presente.
  2. Leitura do contexto humano. Planilhas não medem motivação, confiança ou esgotamento. O bom senso do gestor aparece quando ele consegue traduzir sinais sutis da equipe, clientes e sócios em decisões ajustadas à realidade das pessoas.
  3. Mentalidade crítica. O bom senso é fortalecido quando o gestor se recusa a aceitar soluções automáticas. Ele se pergunta: “isso resolve o problema ou só transfere o risco?”, “essa decisão gera resultados sustentáveis ou apenas um alívio temporário?”, “qual será o impacto sobre a cultura do escritório?”.
  4. Equilíbrio entre regras e flexibilidade. Contratos, políticas internas e KPIs são importantes, mas não captam todos os cenários. O bom senso é a bússola que ajuda a aplicar regras sem perder de vista as exceções necessárias para manter a saúde do negócio.

Vejamos algumas situações concretas.

Quando só a planilha não resolve. Imagine um sócio que analisa o desempenho da equipe apenas pela tela do dashboard. Ele vê que uma advogada entregou menos petições no mês. O instinto imediato é pressionar, talvez até cortar um bônus. Mas, numa conversa rápida, ele descobre que essa profissional passou semanas concentrada em um caso estratégico, de altíssima complexidade, que exigiu horas de estudo. A planilha dizia “queda de produtividade”. O bom senso dizia “trabalho de alto valor agregado”.

A cláusula que pode virar tiro no pé. Outro exemplo: um cliente importante atrasa o pagamento. O contrato prevê multa automática e suspensão dos serviços. O advogado pode acionar a cláusula no mesmo dia, pois estaria amparado juridicamente. Mas bom senso pede pensar além: se esse cliente atravessa uma crise momentânea e o escritório endurece demais, a relação pode ruir. Cobrar a multa agora é certo no papel, mas pode custar milhões em negócios futuros.

O sócio que “produz menos”. É comum ouvir nas sociedades: “fulano não produz como eu”. Os números confirmam: um sócio fatura menos, outro carrega mais casos. A solução fria seria dividir resultados proporcionalmente. Mas quem olha só isso esquece o intangível: aquele sócio que “produz menos” pode ser justamente o que abre portas, garante a reputação da banca e traz estabilidade nos bastidores. Bom senso aqui é reconhecer que valor não se mede só em horas faturadas.

A tentação das modas. De tempos em tempos, surge a nova ferramenta que promete revolucionar o mercado jurídico. Muitos escritórios correm para adotar, gastam horas e recursos, mas depois descobrem que a novidade não dialoga com sua realidade. O bom senso ajuda a segurar o ímpeto: antes de aderir, vale perguntar se aquilo resolve um problema real do escritório ou só alimenta a ansiedade de “não ficar para trás”.

O preço que não cabe no Excel. Honorários são sempre tema delicado. Há planilhas que mostram o custo, a margem e o lucro desejado. Mas alguns casos têm valor que não aparece no cálculo. Atuar em uma causa relevante pode trazer aprendizado, exposição e novos clientes. Um escritório que decide apenas pelo Excel pode recusar oportunidades estratégicas. O bom senso ajuda a calibrar o preço não apenas pelo presente, mas pelo futuro.

Entre visibilidade e credibilidade. No marketing jurídico, a tentação é grande. Publicar resultados, ostentar conquistas, apostar em postagens polêmicas para atrair curtidas. Tudo dentro das regras éticas, em tese. Mas o bom senso serve como régua invisível: essa exposição constrói ou destrói a credibilidade do escritório? Nem sempre mais visibilidade significa mais confiança.

Tecnologia com limite. Softwares organizam fluxos, controlam prazos, emitem relatórios. Mas acreditar que a tecnologia substitui análise humana é perigoso. O sistema pode indicar que um cliente não é rentável; o bom senso mostra que esse mesmo cliente abre portas para outros negócios. Tecnologia é ferramenta, não bússola moral.

Decisões que pedem pausa. Demissões, cortes e mudanças repentinas podem parecer solução diante da pressão. Mas toda decisão tem efeito em cadeia. Ao desligar um advogado por um erro pontual, o escritório pode perder anos de experiência acumulada. Ao cortar orçamento de marketing para reduzir custos imediatos, pode comprometer a prospecção futura. O bom senso ensina a parar antes de agir, projetar consequências e avaliar se a solução alivia ou realmente resolve.

Na advocacia, o gestor que exerce o bom senso adota uma mentalidade baseada em três pilares:

Assim, na gestão de escritórios, o bom senso não é um talento inato. É uma competência que pode ser cultivada e refinada. Quanto mais o gestor exercita a leitura crítica da realidade, a ponderação de cenários e o cuidado com consequências de médio e longo prazo, mais sólido se torna o alicerce das decisões que mantêm a banca em equilíbrio. Advogados que exercitam o bom senso cultivam três hábitos de pensamento:

Muitas decisões parecem óbvias quando vistas pela lente de números, contratos ou indicadores. Mas, na prática, é o bom senso que separa a escolha apressada da decisão realmente sustentável. Ele funciona como um filtro silencioso, que obriga o gestor a olhar além da planilha e considerar pessoas, clientes, sociedade e futuro do negócio. Um bom exercício é adotar perguntas de checagem antes de agir.

Checklist de bom senso na gestão da advocacia

1. Pessoas e equipe

2. Clientes

3. Sociedade 

4. Estratégia e investimentos

5. Finanças

Sendo assim, se a resposta a essas perguntas aponta para riscos de curto prazo, perda de confiança ou desequilíbrio interno, o gestor deve pausar e reavaliar. Bom senso é justamente essa capacidade de parar, refletir e ajustar antes de seguir no automático.

No dia a dia do escritório, a decisão mais segura nem sempre é a mais rápida, a mais barata ou a mais óbvia. É a que resiste ao tempo, preserva relações e mantém o escritório saudável.

Chamar o bom senso pra jogo significa assumir que a prática da advocacia não é feita apenas de normas e números, mas de escolhas humanas que equilibram razão e realidade. Quem ignora isso, corre o risco de vencer no papel e perder no campo.

No fim, é simples: quem decide apenas pela letra fria da planilha ou pela cláusula do contrato pode até estar certo, mas não será sábio. Na advocacia, não basta ter razão, é preciso ter critério. E é aí que o bom senso entra em campo como a peça que vence o jogo.

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Colunista

Lara Selem é advogada, professora, escritora, conselheira consultiva, advisor e mentora especialista em Gestão Legal, Sociedades de Advogados e Planejamento Estratégico para a Advocacia. É membro da Comissão Nacional de Sociedades de Advogados do Conselho Federal da OAB. Foi presidente da Comissão Especial de Gestão, Empreendedorismo e Inovação do Conselho Federal da OAB (2019-2021). Participa ativamente do Comitê de Administração e Ética Profissional (CADEP) do Centro de Estudos de Sociedades de Advogados (CESA). Membro da Association of Legal Administrators (ALA) desde 2009. Coordenadora científica do MBA Internacional em Gestão de Escritório de Advocacia (Faculdade Baiana de Direito e Gestão). Autora de 20 obras sobre gestão de escritórios de advocacia.