Política, Direito & Economia NA REAL

A década em que a esperança precisa de método

O texto é um ensaio interpretativo e crítico sobre o mundo contemporâneo (especialmente 2025 e a década atual), usando o filme A Juventude (La Giovinezza), de Paolo Sorrentino, como metáfora central.

29/12/2025

O planeta precisa de cooperação para enfrentar as suas ameaças mais estruturais.

No filme A Juventude (Título Original: La Giovienezza, 2015, Itália, Reino Unido, França e Suíça, com Michael Caine, Harvey Keitel, Rachel Weisz, Paul Dano e Jane Fonda) há um hotel nos Alpes onde o mundo parece ter sido suspenso numa cápsula de oxigênio: um lugar de cura, de rotinas impecáveis, de silêncio bem administrado, onde corpos são medidos como se fossem projetos e o tempo, esse animal inquieto e inaudito, fosse mantido à distância pela elegância dos rituais. É um cenário ideal para pensar 2025 e esta década, porque ele expõe - sem precisar gritar - a nossa fantasia contemporânea de proteção. Como se, cercados por tecnologia, mercados sofisticados, políticas monetárias, fronteiras e algoritmos, pudéssemos transformar a história num serviço de quarto: disponível quando solicitada, invisível quando inconveniente. Mas o que o filme insinua, e o presente confirma, é que o “lado de fora” sempre está a adentrar nas acomodações mais elegantes e confortáveis. A realidade corriqueira entra como ruído, como ansiedade, como uma notícia que atravessa o vidro, como um corpo que envelhece apesar dos cuidados, como um pedido que não pode ser recusado. A metáfora dirigida por Sorrentino é cortante na essência e suave na forma.

O ano de 2025 se desenhou sob a forma de uma estabilidade nervosa. Não houve um colapso unificador que desse ao planeta a simplicidade cruel de uma única narrativa. Houve, em vez disso, a multiplicação de fraturas por ora administráveis: crescimento morno, inflação que não desaparece como se esperava, juros que viram hábito, cadeias de suprimento redesenhadas por desconfiança geopolítica, guerras que se prolongam como doenças crônicas, e uma sensação difusa de que a normalidade voltou - mas voltou diferente, mais cara, mais curta, mais referenciada por asteriscos. No resort de Sorrentino, a vida se organiza em torno de tratamentos e distrações. Na realidade, reorganiza-se em torno de defesas. Defender o orçamento, defender o emprego, defender a reputação, defender a fronteira, defender a verdade, defender-se do próximo choque. A década, até aqui, tem a textura de uma sucessão de “quase”: quase recuperação, quase estabilidade, quase consenso. Saímos do fim da história e caminhamos na história sem fim.

A dimensão social desse tempo é talvez a mais reveladora, porque nela se percebe o desgaste do pacto de convivência. A figura do deslocamento forçado - pessoas arrancadas de casa por guerra, perseguição, colapso institucional, catástrofes - não é apenas um tema humanitário: é um retrato do século. Um mundo que produz massas em movimento, vidas sem endereço, identidades sem garantia, é um mundo que perdeu o controle sobre a sua própria promessa de pertencimento: a terra, a nação e o Estado. E quando o pertencimento se torna precário, tudo se torna mais agressivo: a política, a economia, a moral cotidiana. A desigualdade, por sua vez, deixou de ser apenas um problema distributivo para se tornar uma arquitetura: ela organiza espaços, expectativas, linguagens, oportunidades e até a capacidade de imaginar o futuro. Afora isso, o populismo, perigoso e solto. Alguns vivem em andares altos, com vista, com tempo para cuidar de si. Outros sobrevivem no térreo da urgência, onde o amanhã é uma pergunta indecente: o que acontecerá de ruim? Essa separação não acontece só entre países. Acontece dentro das cidades, dentro das empresas, dentro das famílias. E ela tem um efeito psíquico: normaliza a indiferença individual e coletiva. A indiferença é uma tecnologia social poderosa, porque permite que a vida continue funcionando sem que o sofrimento interrompa o entretenimento.

A solidão, respirada intransitivamente em A Juventude, fenômeno que se apresenta como experiência íntima, mas é produto de organização coletiva. Nesta década transmuta-se em indicador político. Há mais conexão e menos vínculo, mais informação e menos sentido compartilhado, mais opinião e menos escuta. O resultado é um ruído permanente no qual a empatia se desgasta. Em A Juventude, as pessoas circulam como se estivessem em órbita: próximas, mas sem gravidade comum. O mundo contemporâneo se assemelha a isso quando transforma a comunidade em um conjunto de indivíduos que se toleram por cansaço, não por projeto. Falta-nos utopia, sobram devaneios.

No plano econômico, a década se comporta como um corpo que resiste, mas cobra. Há sinais de adaptação, mas também de exaustão: dívida alta, crise fiscal, investimento pressionado por incerteza, mercados de trabalho que se transformam mais rápido do que os sistemas educacionais e de proteção conseguem acompanhar. A economia global parece ter aceitado uma condição de “manutenção”: manter a máquina rodando, evitar o acidente, administrar a transição - tecnológica, energética, demográfica - sem uma visão comum de destino. A fragmentação geoeconômica, com blocos e redes de confiança restritas e frágeis, encarece o comércio, reconfigura a produção e produz uma política industrial que se confunde com política de segurança. É um mundo em que eficiência cede lugar à prudência, e a prudência, muitas vezes, vira pretexto para protecionismo e captura – America First. Há algo de paradoxal nessa fase: o planeta precisa de cooperação para enfrentar as suas ameaças mais estruturais, mas organiza-se em torno de suspeitas. Como se o hotel, em vez de acolher, passasse a selecionar hóspedes com base em alianças, e cada ala criasse as suas regras, o seu menu, a sua versão da realidade.

E então há a política, que nesta década parece ter incorporado o espetáculo como modo de existência. Não se trata apenas de propaganda; trata-se de uma mudança de ecossistema. As democracias, já pressionadas por desigualdade, por medo e por expectativas frustradas, enfrentam uma erosão lenta, uma corrosão que muitas vezes não exige tanques, apenas a repetição de gestos: desacreditar instituições, desmoralizar adversários, reescrever a ideia de verdade como preferências tribais. A desordem informacional opera como um solvente: dissolve o básico - o que aconteceu, quem fez, por quê - e, ao dissolver, libera uma política de ressentimento e cinismo. A tecnologia, especialmente com imagens e vozes manipuláveis, adiciona ao espetáculo um componente novo: a possibilidade de fabricar “evidência” como se fosse arte. O real passa a competir com a sua simulação. E quando o real vira apenas uma versão, abre-se espaço para a autoridade do grito, para a soberania do algoritmo, para a tirania do “isso me parece”.

O clima, por fim, é o grande personagem que não negocia. A paisagem alpina de Paolo Sorrentino parece eterna, mas o próprio fascínio do filme depende da fragilidade: do corpo que envelhece, do desejo que se desloca, do tempo que não volta. A década expõe essa mesma fragilidade em escala planetária. Não há mais a tranquilidade de pensar a natureza como pano de fundo. Ela se tornou protagonista: infiltra-se na economia por meio de choques de oferta, no social por meio de migrações e perdas, no político por meio de conflitos por recursos, na cultura por meio de uma ansiedade que, mesmo quando não é nomeada, modela comportamentos. O mundo aprendeu que a “normalidade climática” era, em grande parte, um privilégio histórico.

Seria fácil terminar aqui, com a elegância mórbida de uma conclusão inevitável. Mas o filme, como esse artigo, não concede esse conforto. A Juventude sugere que a esperança não é um sentimento espontâneo: é uma disciplina. Ela não nasce da negação da decadência, mas da decisão de não transformar a decadência em desculpa. A cena do maestro que retorna ao palco é significativa porque não é triunfalista: é o gesto de alguém que sabe o peso do passado e, ainda assim, escolhe organizar o caos - não para apagar a dor, mas para dar-lhe forma. O que falta ao nosso tempo não é consciência dos problemas. É a coragem cotidiana de traduzir consciência em arquitetura: instituições que funcionem, pessoas que cumpram os seus deveres, proteção social que não humilhe, educação que prepare para o mundo real, e não para um ideal nostálgico, uma economia que inove sem expulsar, uma política que recupere o pudor diante dos fatos, um pacto climático que seja executado como infraestrutura, não repetido como liturgia.

A esperança que vale para 2026 e e para esta década não é a promessa de que tudo ficará bem: é a recusa de viver como se nada pudesse ficar melhor. Ela exige ação, e a ação exige uma certa imaginação moral: imaginar o outro como parte do mesmo edifício, imaginar o futuro como algo que pode ser construído, não apenas temido, imaginar que a dignidade não é um prêmio, mas um piso. Se o hotel do filme A Juventude é o planeta, então a questão não é se teremos mais conforto, mais estímulos, mais distrações. É, indubitavelmente, se teremos um sentido comum forte o suficiente para que o conforto não vire indiferença, o estímulo não vire vício, e a distração não vire abandono. O mundo pode continuar funcionando como um spa - tratando sintomas, administrando tensões - ou pode escolher o gesto mais difícil: encarar a doença estrutural e reorganizar a vida em torno do que realmente sustenta a civilização. A juventude, aqui, não é uma idade. É a capacidade de recomeçar sem mentir para si mesmo. Isso, sim, ainda está ao nosso alcance. O bom, o belo e o justo, como na Paideia grega de outrora.

Colunista

Francisco Petros Advogado, especializado em direito societário, compliance e governança corporativa. Também é economista e MBA. No mercado de capitais brasileiro dirigiu instituições financeiras e de administração de recursos. Foi vice-presidente e presidente da seção paulista da ABAMEC – Associação Brasileira dos Analistas do Mercado de Capitais e Presidente do Comitê de Supervisão dos Analistas de Investimento. É membro do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo e do Corpo de Árbitros da B3, a Bolsa Brasileira, Membro Consultor para a Comissão Especial de Mercado de Capitais da OAB – Nacional. Atua como conselheiro de administração de empresas de capital aberto e fechado.

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