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A propósito da Trial Advocacy - Entrevista com Tatiana R. Martins

Tatiana R. Martins, promotora e advogada de destaque, compartilha experiência em litígios complexos e corrupção, revelando estratégia, ética e maestria na advocacia contenciosa.

26/11/2025

Nesta edição, temos a satisfação de entrevistar Tatiana R. Martins, brasileira, filha de pais cujas raízes remontam à Dinamarca, Alemanha e Portugal, e que fez – e ainda faz – muito sucesso no meio jurídico norte-americano. Mudou-se ainda criança para os Estados Unidos - primeiro para San Diego, aos seis anos de idade, e posteriormente para Chatham, Nova Jersey -, trajetória que marca o início de um percurso pessoal e acadêmico verdadeiramente internacional.

Atualmente, Tatiana é sócia do prestigiado escritório Davis Polk & Wardwell LLP, em Nova York, onde integra o grupo de defesa penal empresarial e investigações. Antes de ingressar na advocacia privada, desempenhou relevante papel público como promotora Federal na Procuradoria dos Estados Unidos para o SDNY - Distrito Sul de Nova York, tendo chefiado a respeitada Unidade de Corrupção Pública. Nessa função, conduziu casos de elevada complexidade - envolvendo crimes financeiros, corrupção de agentes públicos, fraude e lavagem de dinheiro - que figuraram entre as mais importantes ações criminais federais de sua época.

Formada em Direito pela Yale Law School, após concluir sua graduação na University of California, Berkeley, com distinção summa cum laude, Tatiana é amplamente reconhecida por sua acuidade técnica, discernimento estratégico e rigor ético. Sua prática atual concentra-se na representação de empresas multinacionais, conselhos de administração e executivos em investigações transnacionais, procedimentos administrativos e litígios de grande repercussão, com atuação destacada nas Américas, Europa e Ásia.

Nesta conversa, ela compartilha conosco reflexões sobre sua trajetória, o ofício da advocacia contenciosa em disputas de primeira instância e os desafios de atuar em casos de alta complexidade sob o escrutínio das cortes federais dos Estados Unidos.

1.

Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Poderia nos contar sobre sua trajetória na advocacia contenciosa [trial law] e o que inicialmente a atraiu para essa área?

Tatiana R. Martins: Minha experiência inicial com o contencioso se deu quando eu era advogada júnior no escritório Davis Polk, em meados dos anos 2000. Integrei uma equipe de advogados que defendeu os interesses de uma grande empresa farmacêutica em uma ação que a acusava de publicidade enganosa relativa a um importante medicamento para osteoporose. O julgamento ocorreu perante a Justiça Federal, em Manhattan, e foi uma experiência estimulante, ainda que eu, na condição de jovem advogada, tenha desempenhado apenas um papel de apoio aos advogados mais experientes. Obtivemos êxito nessa causa, afastando a responsabilidade da cliente, apesar de nossa equipe não ser especializada na legislação específica discutida no caso, enquanto os advogados da parte contrária eram especialistas na matéria. Esse foi o meu primeiro contato com a advocacia contenciosa, que me mostrou o quão empolgante, recompensador e desafiador pode ser trabalhar com litígios judiciais. Posteriormente, atuei como promotora Federal na Procuradoria dos Estados Unidos para o Distrito Sul de Nova York, onde passei grande parte do tempo em audiências e julgamentos criminais perante a Justiça Federal, representando o governo dos Estados Unidos. Conduzi processos sobre diversas matérias, abrangendo desde crimes violentos até casos complexos de corrupção envolvendo o poder público e fraudes de grande escala.

2.

Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: De que modo sua experiência como advogada de contencioso moldou sua compreensão acerca do funcionamento do Poder Judiciário em seus mais altos níveis?

Tatiana R. Martins: O exercício da advocacia contenciosa expõe o profissional a toda a amplitude do processo judicial - desde os procedimentos relativos à obtenção e utilização de provas para a acusação ou defesa de um cliente, passando pela análise de questões jurídicas (inclusive questões inéditas), até a atuação combativa perante os tribunais e, nos Estados Unidos, também perante os jurados. Há um conjunto intrincado de normas processuais civis e penais que se aplica a todos os aspectos dos julgamentos e dos recursos interpostos contra veredictos do júri ou decisões judiciais.

3.

Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Quais foram alguns dos casos mais desafiadores em que você trabalhou e como você lidou com as complexidades atreladas a esses casos?

Tatiana R. Martins: Trabalhei em muitos casos desafiadores e, de fato, um dos motivos que me levaram a advogar no Davis Polk, após deixar a Procuradoria dos Estados Unidos, foi justamente o tipo de casos complexos e de grande relevância que conduzimos como advogados no escritório. No que se refere à advocacia contenciosa, um dos casos mais desafiadores que tive foi uma ação criminal de defesa da concorrência ajuizada contra nosso cliente pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos. Tratava-se de um processo extremamente complexo, com múltiplos réus e centenas de milhares de documentos. Tínhamos convicção de que nosso cliente era inocente e a responsabilidade de defendê-lo era enorme, pois ele corria o risco de ser condenado a vários anos de prisão caso o veredito fosse desfavorável.

Duas semanas antes do início do julgamento, o juiz da causa realizou uma audiência de um dia inteiro, com testemunhas, para decidir sobre a admissibilidade de determinadas provas que o governo pretendia apresentar. Em razão de decisões estratégicas adotadas quanto à forma de conduzir essa audiência - e de todo o trabalho prévio desenvolvido na elaboração de manifestações escritas submetidas em juízo -, o magistrado acabou por impedir o governo de utilizar centenas de elementos probatórios durante o julgamento. Na prática, a decisão do juiz desmantelou a tese acusatória e o Departamento de Justiça foi compelido a retirar todas as acusações contra nosso cliente. Foi uma vitória extraordinária, fruto de muitas noites sem dormir!

4.

Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Na sua opinião, quais são as principais habilidades que um advogado de contencioso bem-sucedido deve desenvolver?

Tatiana R. Martins: Um advogado de contencioso bem-sucedido começa a tomar decisões estratégicas muito antes de o julgamento propriamente estar no horizonte. Cada etapa do litígio, desde o seu início, deve ser conduzida tendo em vista a possibilidade de um futuro julgamento. É necessário avaliar quais provas devem ser obtidas, se tais provas serão admissíveis em juízo, quais argumentos devem ser apresentados nas fases iniciais do processo de modo a não restringir posições que se pretenda sustentar no eventual julgamento futuro, e assim por diante. Em outras palavras, o bom advogado de contencioso está sempre pensando cinco ou dez passos à frente, mesmo quando o julgamento pode ainda estar distante.

No que se refere ao próprio julgamento, o advogado deve, acima de tudo, dominar por completo as provas - sejam documentais, sejam testemunhais. É imprescindível ser um verdadeiro conhecedor dos fatos, para poder reagir de forma ágil a todos os imprevistos que surgem em audiência - seja uma decisão do juiz sobre a admissibilidade de uma prova, um argumento do adversário ou uma linha inesperada de questionamento de uma testemunha.

E, quando se está diante de um júri, é essencial estabelecer uma conexão com seus membros. Isso exige a capacidade de narrar a história do caso de modo que ela ressoe junto a pessoas comuns. Na maioria das vezes, isso significa: simplificar, simplificar e simplificar.

5.

Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: Como você se prepara para litígios de alta complexidade e relevância, e quais estratégias considera mais eficazes em audiências?

Tatiana R. Martins: Como disse, a preparação para litígios de grande relevância exige conhecer os fatos do caso com absoluta profundidade - é indispensável estar plenamente preparado nesse sentido. Mas não se pode ficar preso aos detalhes. O sucesso em um litígio costuma depender de quem consegue apresentar a narrativa mais convincente - uma história que, além de compatível com as provas, também se harmonize com o senso comum. Isso significa que, para ser bem-sucedido, é necessário desenvolver temas e linhas narrativas que permitam expor sua versão dos fatos de forma coerente com as provas, mas que também seja persuasiva para o juiz ou para o júri.

Advogados que não alcançam êxito em julgamentos, em geral, são aqueles que não compreendem que cada depoimento - seja em exame direto, seja em inquirição cruzada - deve reforçar os temas centrais de sua tese. Muitos profissionais se perdem na tentativa de vencer cada pequeno ponto de debate com a testemunha, ou de explorar assuntos periféricos na esperança de obter uma confissão útil. A verdade é que frequentemente os advogados gastam muito tempo com minúcias, o que faz com que o júri perca de vista os aspectos realmente importantes do depoimento.

Minha estratégia consiste em ser concisa e objetiva com as testemunhas, sobretudo na fase de inquirição cruzada. Se consigo que a testemunha reconheça alguns pontos essenciais que eu possa utilizar de forma eficaz em meus argumentos finais - e se esses pontos são apresentados de modo claro e rápido, permitindo que o júri os compreenda e os registre -, considero que realizei uma inquirição cruzada exitosa.

6.

Flávio Jardim, Rodrigo Becker, Gustavo Favero Vaughn: De que forma sua atuação como chefe da Unidade de Combate à Corrupção Pública da Procuradoria do Distrito Sul de Nova York influenciou sua visão sobre advogar em casos complexos envolvendo corrupção e sua abordagem à advocacia contenciosa [trial advocacy]?

Tatiana R. Martins: Ser promotora Federal foi uma experiência extraordinária por diversas razões - entre elas, o fato de minha principal responsabilidade consistir em fazer o que é certo, pelas razões corretas, dentro e fora do tribunal. Um promotor detém um poder imenso sobre a vida das pessoas - sobre sua liberdade - e, ao exercer tal poder, é essencial que cada afirmação feita em juízo possa ser sustentada por provas confiáveis e admissíveis. Representar o governo no Poder Judiciário impõe ao advogado a obrigação de garantir que sua atuação não se reduza a vencer um argumento ou a obter uma condenação. Vencer não é o objetivo final. O verdadeiro propósito é fazer o que é justo e assegurar justiça às vítimas nos casos em que, após um árduo trabalho de investigação e coleta de provas, se possa demonstrar, além de qualquer dúvida razoável, que o acusado cometeu o crime.

Assim, atuar como promotora criminal federal me proporcionou uma disciplina rigorosa e um profundo senso de responsabilidade na prática forense. Essa é uma lição que levo comigo até hoje, agora no exercício da advocacia privada. Naturalmente, meu papel é o de defender com zelo os interesses de meus clientes; contudo, também sou uma “auxiliar da Justiça” [officer of the court], devendo relacionar-me com magistrados e jurados com o mais elevado grau de integridade.

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Flávio Jardim é desembargador Federal do trf da 1ª Região. Professor da graduação e da pós-graduação do IDP. Doctor of Juridical Science (S.J.D.), Fordham University School of Law, em Nova Iorque, EUA (2018). Mestre em Constituição e Cidadania, Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa – IDP, em Brasília (2012). Master of Laws (LL.M.) in American Law, Boston University School of Law, em Boston, EUA (2003). Bacharel em Direito, Centro Universitário de Brasília – UNICEUB, em Brasília (2001).

Gustavo Favero Vaughn é mestre em Direito Processual pela USP. LL.M. pela Columbia Law School, em Nova Iorque. Auditor do Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol. Relator da Terceira Turma do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP. Professor da pós-graduação do IDP. Advogado, sócio de Cesar Asfor Rocha Advogados.

Rodrigo Becker é doutor em Direito Processual pela UERJ. Mestre em Direito pela UnB. Advogado da União. Ex-procurador-Geral da União. Professor da graduação e da pós-graduação do IDP. Membro fundador da ABPC. Membro do IBDP. Líder do Grupo de Pesquisa "Scotus" sobre a Suprema Corte dos EUA, no IDP.