Previdencialhas

A análise atuarial do RPPS Federal sem reposição de servidores - A solidariedade de mão-única

A análise atuarial do RPPS Federal sem reposição de servidores - A solidariedade de mão-única.

25/10/2021

Desde o advento da EC 41/03, o art. 40, caput da CF/88 explicita o caráter contributivo obrigatório dos regimes previdenciários de servidores públicos, apesar de muitos, como o RPPS Federal, já serem dotado desta natureza há anos. A reforma previdenciária de 2003 também inseriu adjetivo adicional, pois os regimes seriam contributivos e "solidários". A mesma dicção foi mantida com a EC 103/19.

A inclusão da natureza "solidária" do sistema previdenciário do servidor, ao lado do viés contributivo, sempre possuiu uma finalidade evidente: subsidiar, normativamente, a contribuição previdenciária de servidores inativos e pensionistas, afastada pelo STF desde o advento da EC nº 20/98.  A estratégia funcionou e, desde então, a tributação toma lugar, agora escancaradamente majorada pela EC 103/19.

Um fundamento onipresente na discussão é, justamente, a solidariedade. Tendo em vista a necessidade de preservar o direito de gerações futuras, os inativos, mesmo já afastados de suas atividades e, muitos, desprovidos de empregabilidade para recomposição de remuneração, tiveram de suportar redução indireta de seus proventos pela via da tributação. A ADI 3.105-8, em algumas passagens, aborda a questão da repartição simples como fundamento adicional da solidariedade e consequente tributação de inativos, tendo em vista os encargos previdenciários entre gerações presentes, passadas e futuras.

No entanto, como sugere o título da coluna, a solidariedade desejada parece ter “mão-única”. Enquanto é usada como topos argumentativo de forma a reduzir proventos de inativos e pensionistas sem qualquer contraprestação particular, é mitigada na análise de déficits atuariais nas notas técnicas desenvolvidas pelo Ministério da Previdência Social, atual Ministério do Trabalho e Previdência.

A Nota Técnica nº 03/2015/DRPSP/SPPS/MPS, de 03 de março de 2015, com particular crueza, expõe a parcialidade do tema, ao dispor, no item 47 que: "O art. 40 da Constituição Federal informa a previdência dos servidores efetivos à luz do caráter contributivo e solidário. Essa solidariedade não se caracteriza, estritamente, como intergeracional, na qual os atuais servidores (juntamente com recursos do orçamento do ente público) se responsabilizariam por pagar todos os benefícios já concedidos e ficariam na expectativa de que os futuros servidores e os futuros recursos de orçamentos públicos (cada vez mais escassos) venham a ter capacidade de prover suas aposentadorias e pensões. A par da solidariedade intergeracional existem estruturas atuariais que, com o auxílio da capitalização, permitem que cada geração de servidores constitua as próprias reservas previdenciárias e fundos garantidores, de modo também solidário, em um regime previdenciário, que além de tudo, atenderá aos princípios constitucionais da economicidade e da eficiência na alocação dos recursos." (grifos no original)               

E a mesma nota técnica, no item 53, ainda arremata que "Pode-se extrair desses conceitos que, de forma simplificada, o que for arrecadado deve ser suficiente para o pagamento dos benefícios oferecidos pelo RPPS, quer no curto ou no longo prazo. Pontue-se que aqui se busca o valor justo - nem maior, nem menor - de forma a que se arrecade apenas o suficiente para o pagamento dos compromissos (benefícios previdenciários e despesas administrativas). Tais valores são aferidos por meio do cálculo atuarial, que considera períodos em geral superiores a 70 (setenta) anos, os quais se iniciam com a vinculação do segurado a um regime previdenciário e terminam com a previsão de pagamento do último pensionista depois da morte do segurado titular da aposentadoria". (grifos no original)

A Nota Técnica nº 12/2016/CGACI/DRPSP/SPPS/MF, sob os mesmos fundamentos, conclui que "A utilização da hipótese atuarial de gerações futuras como instrumento que permita subestimar os compromissos atuariais e reduzir o plano de custeio do RPPS não atende ao princípio do equilíbrio financeiro e atuarial e atualmente encontra-se vedada pela Portaria MPS nº 403, de 2008, no art. 17, § 7º" (item 21.1).

Não por outro motivo, a nota técnica atuarial dos impactos da reforma previdenciária de 2019, elaborada pelo Ministério da Economia, no Apêndice 1, voltado ao RPPS Federal, explicitamente afirma que "Avaliou-se o grupo como fechado, ou seja, sem reposição de servidores para a avaliação atuarial procedida, tendo em vista que ainda não foi publicada, pela Secretaria de Previdência, a Instrução Normativa que complementa as orientações sobre a expectativa de reposição de servidores"1 (g.n.).

Ou seja, sob um fundamento irrazoável, apresentou-se, na discussão da mais importante reforma previdenciária já realizada, uma premissa, no mínimo, questionável. Como considerar o regime previdenciário de servidores federais fechado? Além da óbvia contradição com o princípio da continuidade do serviço público, contraria todas as premissas defendidas pela União Federal no âmbito da solidariedade, incluindo a tributação de inativos.

Tudo isso deixando de lado, ainda, o natural custo de transição entre regimes previdenciários não somente financiados por repartição simples, mas historicamente deficitários, os quais, agora, teriam de capitalizar-se de forma que "o que for arrecadado deve ser suficiente para o pagamento dos benefícios oferecidos pelo RPPS, quer no curto ou no longo prazo". A dinâmica não é somente contraditória com a própria aplicação do princípio da solidariedade no âmbito do STF, mas, também, injusta.

A discussão volta a ter relevância em razão de recente decisão do STF no Tema 933 de Repercussão Geral, a partir do ARE nº 875.958, ao dispor pela validade do incremento da contribuição previdenciária de servidores estaduais na hipótese de comprometimento financeiro e/ou atuarial. Não é razoável que a análise atuarial se faça sem a adição de ingressos futuros de servidores. Sem dúvida, a medida produz riscos de avaliações equivocadas e afrouxamento dos ajustes necessários, mas, ao mesmo tempo, não podem induzir a erro analistas e julgadores em temas previdenciários.

__________

1 Disponível aqui.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunista

Fábio Zambitte Ibrahim é advogado, doutor em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre em Direito pela PUC/SP. Membro fundador da Academia Brasileira de Direito da Seguridade Social. Professor Associado de Direito Tributário e Financeiro da UERJ, árbitro do Comitê Brasileiro de Arbitragem - CBAr. Foi auditor fiscal da Secretaria de Receita Federal do Brasil e Presidente da 10ª Junta de Recursos do Ministério da Previdência Social.