Reforma do Código Civil

A disciplina da responsabilidade civil por risco da atividade na reforma do Código Civil

Autor trata da responsabilidade civil pelo risco da atividade, tema que é parte integrante de um consenso entre os membros da comissão – ministra Isabel Gallotti e juíza Patricia Carrijo – e os relatores gerais da reforma, Flavio Tartuce e Rosa Nery.

21/5/2024

No mês de fevereiro redigi uma coluna no Migalhas de Responsabilidade Civil sobre a estruturação das propostas da Comissão de Responsabilidade Civil para a Reforma do Código Civil . Agora, trato especificamente da responsabilidade civil pelo risco da atividade, tema que é parte integrante de um consenso entre os membros da comissão – Ministra Isabel Gallotti e Juíza Patricia Carrijo – e os relatores gerais da reforma, Professores Flavio Tartuce e Rosa Nery.

Por se tratar de uma reforma legislativa e não de um novo Código Civil, corroboramos as diretrizes da operabilidade, socialidade e eticidade, tão caras a Miguel Reale. Temos em mente que um sistema equilibrado de responsabilidade civil requer uma convergência entre a proteção da economia de mercado e a mais ampla tutela das vítimas de danos e da coletividade perante toda a sorte de ilícitos. Outrossim, reputamos essencial a harmonização entre as cláusulas gerais e critérios decisórios objetivos, parametrizando a atuação de juízes e tribunais.

Como frisou Stefano Rodotá em um de seus últimos escritos, a responsabilidade civil atua como a campainha de um alarme.1 A final, ela exerce o importante papel de repositório de todas as disfuncionalidades de um certo ordenamento. O Código Civil de 2002 é a fotografia de uma responsabilidade civil exclusivamente atrelada às patologias da propriedade e do inadimplemento contratual. Contudo, hoje ela não apenas abraça múltiplas e complexas situações patrimoniais, recebendo também efeitos danosos da violação de direitos fundamentais e direitos da personalidade, da crise da parentalidade e conjugalidade e das consequências lesivas do emprego das tecnologias digitais emergentes, em todos os níveis.

Diante do desafio da construção de uma codificação que esteja em sintonia com as demandas atuais, sempre resta a opção de manter íntegro o Código Civil de 2002, apostando-se no protagonismo da jurisprudência como atualizador normativo. Contudo, com recorte na reforma do Código Civil, como apontou em recente publicação o Ministro Luiz Edson Fachin, "Há, porém, limites estruturais e textuais. A tarefa hermenêutica precisa da norma formal a interpretar. A insuficiência textual e estrutural pode reduzir a relevância do Código, e dificultar a construção de sentido, limitando-o, e o condenando à obsolescência".2

Tais limites interpretativos são sentidos de forma intensa na responsabilidade civil, que se encontra em um momento muito distante do estado da arte dos anos setenta do século XX, Fato é que a quase totalidade dos dispositivos do Código Reale projeta o conteúdo do Código Civil de 1916, apenas com pequenas alterações. Em cotejo com o seu antecessor, de relevante o CC/2002 tão somente inovou na cláusula geral do risco (parágrafo único do art. 927) e na redução equitativa da indenização (parágrafo único, art. 944). Acresça-se a isto que, diferentemente da fertilidade legislativa atuante sobre vários setores do direito civil nos últimos 20 anos, na temática da responsabilidade civil não houve sequer uma inovação legal. Em resumo, verifica-se um desajuste temporal de mais de 100 anos.

Com efeito, a oportunidade de modificação da lei civil não surge a todo momento, razão pela qual é necessário aproveitar o ensejo e realizar as reformas que se fizerem necessárias a colocar o Código Civil brasileiro em linha com o que há de mais atual em outros sistemas e, acima de tudo, em consonância com as necessidades da vida social contemporânea.

Para os fins aqui propostos, o Código Civil brasileiro de 2002 cuida da responsabilidade civil subjetiva no art. 927, caput, em combinação com os artigos 186 e 187, que tratam dos atos ilícitos. Além disso, contém várias previsões relativas à distintos nexos de imputação, especialmente nos casos de responsabilidade por fato de terceiro, por fatos dos produtos postos em circulação e por fato das coisas e dos animais, a partir do art. 931. Por fim, o parágrafo único do art. 927 esboça uma cláusula geral de responsabilidade civil objetiva, nos seguintes termos:

Art. 927. (...)

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Não há dúvida sobre a relevância dessa previsão. Todavia, a regra sempre pareceu incompleta, a começar pela ausência de critérios objetivos que auxiliem os magistrados a concretizar a cláusula geral do risco da atividade. Além disso, o adverbio "normalmente" e a locução adverbial "por sua natureza" suscitam dúvidas sobre o verdadeiro sentido da norma.

No dia 12 de abril de 2024, a Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para Revisão e Atualização do Código Civil apresentou um Anteprojeto de Lei que introduz importantes modificações em todos os capítulos do Código.3

Abre-se o estudo da função reparatória, identificando-se as três vigas mestras do nexo de imputação da obrigação de indenizar: Art. 927. Aquele que causar dano a outrem fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único: Haverá dever de reparar o dano daquele:  I – cujo ato ilícito o tenha causado; II – que desenvolve atividade de risco especial; III - responsável indireto por ato de terceiro a ele vinculado, por fato de animal, coisa ou tecnologia a ele subordinado.

O referido dispositivo concede racionalidade e coerência aos fatores de atribuição da obrigação de indenizar: ilícito, risco da atividade (art. 927-B) e responsabilidade pelo fato de terceiro ou da coisa (art. 932). Dessa forma, enfatiza-se a coexistência não hierarquizada das regras de responsabilidade subjetiva e objetiva.

Relativamente à responsabilidade civil por risco da atividade, a CJCODCIVIL redesenhou o parágrafo único do art. 927, agora renumerado como artigo 927-B, disciplinando a matéria de maneira mais abrangente.

Art. 927-B. Haverá obrigação de reparar o dano independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

§ 1º A regra do caput se aplica à atividade que, mesmo sem defeito e não essencialmente perigosa, induza, por sua natureza, risco especial e diferenciado aos direitos de outrem. São critérios para a sua avaliação, entre outros, a estatística, a prova técnica e as máximas de experiência.

§ 2º Para a responsabilização objetiva do causador do dano, bem como para a ponderação e a fixação do valor da indenização deve também ser levada em conta a existência ou não de classificação do risco da atividade pelo poder público ou por agência reguladora, podendo ela ser aplicada tanto a atividades desempenhadas em ambiente físico quanto digital.

§ 3º O caso fortuito ou a força maior somente exclui a responsabilidade civil quando o fato gerador do dano não for conexo à atividade desenvolvida pelo autor do dano.

Antes de justificarmos o conteúdo proposto para o art. 927-B, cumpre ressaltar que o risco da atividade não é enfrentado na reforma do Código Civil apenas pelo prisma da essencial função compensatória da responsabilidade civil, mas também pelo viés da função preventiva do dano potencial. Conforme se extraí do caput do proposto art. 927-A: "Todo aquele que crie situação de risco, ou seja responsável por conter os danos que dela advenham, obriga-se a tomar as providências para evitá-los".

Ou seja, tratando-se de atividade de risco, a responsabilidade do agente existe por antecipação, a partir do momento em que a atividade é colocada em curso e não apenas após a efetivação do dano. Atualmente danos não mais ostentam um perfil meramente individual e patrimonial, porém, manifestam-se como metaindividuais, extrapatrimoniais e por vezes anônimos e irreparáveis. Para evitar que prevaleça a aplicação jurisprudencial desordenada de respostas aos novos desafios que não são solucionados pela função compensatória, adequa-se a responsabilidade civil aos mais avançados ordenamentos, para que seja compreendida como um sistema de gestão de riscos e de restauração de um equilíbrio injustamente rompido.

Não se trata aqui de inibir um ilícito, porém de ampliar o escopo da função preventiva para as atividades de risco especial, cuja imputação objetiva da obrigação de indenizar dispensa a aferição de condutas antijurídicas, sendo suficiente a maior probabilidade de causação de dano pela própria natureza intrínseca da atividade. Isto é, não basta estipular o dever de prevenção no bojo da responsabilidade civil, mas é preciso dotar as vítimas potenciais de instrumentos para preservação de seus bens e interesses em face dos riscos que emanam das atividades desempenhadas por outrem. A vítima potencial poderá requerer ao juiz que obrigue o responsável pela atividade de risco a adotar medidas de prevenção, incluindo a mitigação dos riscos e dos danos. Com base em um juízo de ponderação o magistrado poderá exigir do legitimado passivo ações ou abstenções concretas tendentes à evitação de danos previsíveis. Os trágicos eventos de Minas Gerais envolvendo barragens e o recente episódio do "afundamento da mina" em Maceió evidenciam a importância de uma regra especial voltada à contenção do risco da atividade. No particular, cite-se o Enunciado 446 (V Jornada de Direito Civil): "A responsabilidade civil prevista na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do Código Civil deve levar em consideração não apenas a proteção da vítima e a atividade do ofensor, mas também a prevenção e o interesse da sociedade". A bipartição entre função preventiva do ilícito e do dano também encontra guarida na reforma do Código Civil da França: Art. 1268 (n. 678, Sénat/2020) – "En matière extracontractuelle, indépendamment de la réparation du préjudice éventuellement subi, le juge peut prescrire les mesures raisonnables propres à prévenir le dommage ou faire cesser le trouble illicite auquel est exposé le demandeur".

Já no tocante a tutela ex post do risco da atividade, o caput do art. 927-B é praticamente idêntico ao atual parágrafo único do art. 927 do Código Civil, apenas com a supressão do termo "normalmente", que já se infere pelo fato de se tratar de atividade "desenvolvida" pelo agente, com habitualidade e reiteração.

Os três parágrafos introduzidos no proposto art. 927-B minudenciam a definição do que é risco da atividade e de critérios objetivos para a sua identificação, mitigando a discricionariedade na atribuição deste fator objetivo de atribuição, em prol da segurança jurídica, tendo-se como parâmetros os enunciados 38,4 4485 e 5556 e do CJF

O paragrafo 1º do art. 927-B prevê a comprovação que a atividade represente risco especial e diferenciado, por todos os meios de prova admitidos em direito e, nomeadamente, por meio de estatística, de perícia e das máximas da experiência.  O que há de positivo no novo dispositivo é o esclarecimento a respeito dos critérios para avaliação da natureza da atividade. O primeiro indício acerca do grau de risco de determinada atividade é a existência de classificação pelo poder público ou agência reguladora, para fim de autorização de funcionamento. Ao lado disso ou na ausência de classificação de risco, a natureza da atividade pode ser demonstrada por todos os meios de prova admitidos em direito, mas a lei se refere expressamente à estatística, à prova técnica e às máximas da experiência. Com efeito, a combinação desses meios de prova pode compor um conjunto apto a formar a convicção judicial acerca do risco de determinada atividade.

O § 2º aperfeiçoa o critério inicialmente estipulado na Súmula 351 do STJ: "A alíquota de contribuição para o Seguro de Acidente do Trabalho (SAT) é aferida pelo grau de risco desenvolvido em cada empresa, individualizada pelo seu CNPJ, ou pelo grau de risco da atividade preponderante quando houver apenas um registro".

Por seu turno, a proposta do § 3º do art. 927-B busca enfrentar o problema dos danos decorrentes de determinadas atividades, mas que são camuflados pela ocorrência de um caso fortuito ou força maior (art. 393, CC). Todavia, abre-se espaço, nas peculiaridades da responsabilidade civil, à inserção do Enunciado 443 do CJF7, delimitando as figuras do fortuito interno e externo, conforme sedimentado doutrinariamente e já sumulado pelo STJ.8

É cediço que o fortuito e a força maior são excludentes de responsabilidade civil, por ruptura do nexo de causalidade, mas há casos em que esses fenômenos se sobrepõem à causa verdadeira do dano, ocultando o verdadeiro responsável. Exemplo disso é o caso das chuvas e enchentes que fazem desabar uma construção realizada sem observância das normas técnicas, a qual provavelmente viria a pique em razão da precariedade de sua estrutura diante de qualquer intempérie. Nesse caso, não há falar em exclusão da responsabilidade civil porque a causa da ruína é a precariedade da estrutura e não a superveniência das chuvas e das enchentes.

As breves justificativas sobre o risco da atividade na reforma do Código Civil sinalizam que, longe de romper com a tradição ou de ameaçar a segurança jurídica, os dispositivos propostos pela Comissão de Juristas responsável pela Revisão e Atualização do Código Civil invocam o diálogo entre o passado e as demandas do presente. As propostas não surgiram de seis meses de debate no seio de uma Comissão Reformista. Elas perfilham a jurisprudência dominante dos tribunais superiores e estabilizam vinte anos de sedimentação doutrinária, canalizada por enunciados do CJF.

__________

1 Entrevista com Prof. Stefano Rodotà, publicada na seção Diálogos com a Doutrina, na Revista Trimestral de Direito Civil, ano 3, vol. 11, jul./set., 2022, p. 287-288.

2 Reforma e atualização do Código Civil brasileiro e o novo Código Civil argentino.

3 Confira-se a íntegra do Anteprojeto e do Quadro Comparativo. Acesso em: 29 Abr. 2024.

4 Enunciado 38 CJF: "A responsabilidade fundada no risco da atividade, como prevista na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do novo Código Civil, configura-se quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa determinada um ônus maior do que aos demais membros da coletividade".

5 Enunciado 448 CJF: "A regra do art. 927, parágrafo único, segunda parte, do CC aplica-se sempre que a atividade normalmente desenvolvida, mesmo sem defeito e não essencialmente perigosa, induza, por sua natureza, risco especial e diferenciado aos direitos de outrem. São critérios de avaliação desse risco, entre outros, a estatística, a prova técnica e as máximas de experiência".

6 Enunciado 555 CJF: "'Os direitos de outrem' mencionados no parágrafo único do art. 927 do Código Civil devem abranger não apenas a vida e a integridade física, mas também outros direitos, de caráter patrimonial ou extrapatrimonial".

7 Enunciado 443: "O caso fortuito e a força maior somente serão considerados como excludentes da responsabilidade civil quando o fato gerador do dano não for conexo à atividade desenvolvida".

8 Em reforço a Súmula 479/STJ, "as instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias".

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Colunistas

Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico. Relator-Geral da proposta da reforma do Código Civil.

Luis Felipe Salomão é ministro do Superior Tribunal de Justiça. Corregedor Nacional de Justiça. Membro da Corte Especial do STJ. Presidente da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil.

Marco Aurélio Bellizze é ministro do Superior Tribunal de Justiça. Membro da 3ª Turma. Membro da 2ª Seção. Membro da Comissão de Jurisprudência. Professor da Fundação Getúlio Vargas desde 2021. Coordenador Acadêmico da FGV/Exame de Ordem. Vice-presidente da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil.

Rosa Maria de Andrade Nery é professora associada de Direito Civil da Faculdade de Direito da PUC/SP. Livre-Docente, doutora e mestre em Direito pela PUC/SP. Árbitra em diversas câmaras de arbitragem do Brasil. Foi Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo por 20 anos e desembargadora do Tribunal de Justiça o Estado de São Paulo por 15 anos. Titular da cadeira de número 60 da Academia Paulista de Direito. Professora do curso de graduação e de pós-graduação em Direito da PUC/SP e professora colaboradora do Centro Universitário Ítalo-Brasileiro. Relatora da proposta da reforma do Código Civil.