Registralhas

Sistemas de transmissão da propriedade imobiliária - Parte IV

Sistemas de transmissão da propriedade imobiliária - Parte IV.

13/9/2021

Sistema inglês 

Inicialmente, o sistema de transmissão de direitos reais sobre bens imóveis no direito inglês fundava-se na denominada livery of seisin, isto é, a tradição simbólica (similar à traditio simbolica do direito romano) da terra, consistente na desocupação do imóvel e na entrega de algum objeto – tais como um graveto, a trava de uma porteira, um anel, uma cruz ou uma faca – ligado ao terreno. Com o passar do tempo, o direito inglês passou a reconhecer, tal como fizera o direito romano, a transferência de direitos reais sobre bens imóveis mediante a exclusiva entrega de documentos (livery at law)1.

O primeiro sistema de arquivo de títulos foi implantado nos antigos condados de Yorkshire2 e Middlesex3, na Inglaterra, em 1703 e 1708, respectivamente. Até 1976 – ano em que o dever de arquivar o título nesses arquivos foi extinto –, a lei estabelecia o requisito da inscrição do título, sob pena de nulidade do negócio jurídico imobiliário e da presunção de cometimento de fraude. A doutrina inglesa considera que esse sistema, apesar de ter sido revogado, constituiu um mecanismo intermediário entre o modelo privado e o modelo estatal de transferência de títulos imobiliários4.

O registro imobiliário inglês – que de per si já implica uma significativa alteração dos modos tradicionais de transmissão imobiliária inglesa5 – começou a se estruturar em âmbito nacional com a promulgação da Lei de Registro Imobiliário de 1862 (Land Registry Act 1862)6. O sistema continuou a se desenvolver, a partir de 1925, com base em três modalidades de registro de negócios translativos sobre bens imóveis: o Registro Central de Ônus Imobiliários (Central Land Charges Register), o Registro de Títulos (Registration of Titles) e o Registro Local de Ônus Imobiliários (Local Land Charges Register)7. Esses constituem os primeiros esforços destinados a promover o registro oficial dos negócios jurídicos referentes a bens imóveis.

O sistema de registro de instrumentos foi substancialmente reformado com a promulgação, em 16 de fevereiro de 2002, de uma nova Lei de Registro Imobiliário (Land Registration Act). Trata-se da implantação de um novo sistema registral inspirado nos princípios que regem o sistema Torrens8 de registro imobiliário9, em muito facilitada pelo pressuposto que atribui à Coroa a titularidade originária de todos os bens imóveis em território inglês10.

Devido a essa nova iniciativa registral, os direitos reais imobiliários (estates) hoje se dividem em registrados (registered) e não registrados (unregistered), a depender de o respectivo imóvel já estar matriculado, ou não, no registro imobiliário11.

Na atualidade, é obrigatória a abertura de matrícula no momento da transmissão ou constituição do direito real de propriedade por tempo indeterminado (freehold), na hipótese de locação enfitêutica por prazo superior a sete anos (leasehold), bem como no momento da constituição de ônus real hipotecário (mortgage)12, entre outros. Qualquer limitação ao poder de disposição ou fruição do titular deve, para produzir efeitos perante terceiros, ser anotada na matrícula por meio de um sistema de notificações (notices) e restrições (restrictions)13.

Percebe-se que o sistema registral imobiliário inglês hoje em vigor não adota a imutabilidade do título, nem lhe confere inatacabilidade absoluta, na medida em que o registro pode ser alterado diante de certas situações excepcionais taxativamente previstas em lei, mesmo sem o consentimento do titular. Trata-se de um sistema constitutivo em que a dita "inatacabilidade qualificada" (qualified indefeasibility) se consubstancia em uma forte presunção de titularidade em benefício da pessoa indicada como tal no registro.

A Lei de Direito Imobiliário de 1989 simplificou algumas das formalidades que o direito costumeiro exigia (tais como a exigência de selar a escritura14) e aboliu certas restrições que podiam ser impostas pela vontade das partes (tais como o material em que o documento podia ser lavrado15).

Percebe-se que o direito imobiliário inglês, adota, especificamente16 no que diz respeito à aquisição derivada de direitos reais sobre bens imóveis17, o princípio da tradição, na medida em que a simples conclusão de um contrato não transfere a propriedade ou qualquer direito real sobre o bem imóvel. É necessário praticar um ato de disposição que equivale, para todos os efeitos, à tradição do imóvel. Sem esse ato formal de alienação não há transferência válida, muito embora o contrato produza efeitos que extrapolam a esfera obrigacional.

Tradicionalmente, o direito inglês concebe a transferência dos direitos reais sobre bens imóveis como um complexo de atos concatenados dirigidos à aquisição de algum direito imobiliário oponível a terceiros. Esse conjunto de atos, em regra, se desenvolve em três fases bem definidas: (i) negociações preliminares e investigações acerca da qualidade do título, das condições pessoais do alienante e do efetivo estado do imóvel, (ii) conclusão do contrato imobiliário, e (iii) disposição do direito real18 e registro.

É nítido que o direito inglês adota o princípio da separação, na medida em que há a necessidade de emitir duas manifestações sucessivas da vontade para que a propriedade se transfira do alienante ao adquirente. Embora a outorga da escritura (deed) não constitua propriamente um negócio jurídico, e sim um simples ato formal, a verdade é que o alienante deve manifestar a sua vontade de forma autônoma e específica no sentido de alienar o bem em favor do adquirente. Não há, para todos os efeitos, transmissão de direitos reais imobiliários pela mera conclusão do contrato.

É notoriamente árduo classificar o sistema de aquisição imobiliária derivada inglesa com base no critério causalidade/abstração, muito provavelmente porque o direito inglês, diferentemente do direito continental, não se formou a partir da análise e discussão das fontes romanas19, e sim com base no acúmulo de decisões judiciais emanadas dos tribunais (case law)20.

É perceptível que o direito inglês não desvincula o ato de disposição dos motivos que lhe deram origem. Nesse sentido, pode-se dizer que o direito imobiliário inglês tradicional tem um forte viés causal. Com efeito, a máxima nemo dat quod non habet, de fundamental importância no direito imobiliário inglês, reforça a natureza causal das alienações referentes a bens imóveis.

A entrada em vigor da Lei de Registro de Imóveis de 2002, entretanto, significou uma aproximação com o princípio da abstração, na medida em que há situações em que a regra nemo dat quod non habet é, de fato, excepcionada. É o que ocorre com as alienações feitas com base em um título já registrado, desde que todos os requisitos registrais tenham sido devidamente atendidos21. Assim, o adquirente, em regra, se torna titular do direito real (estate) objeto da alienação22, mesmo que o alienante não seja o verdadeiro titular do direito real em questão23.

O direito registral inglês não adota ostensivamente os princípios mais comuns dos sistemas registrais de origem civilista. Seu fundamento teórico remonta, de modo geral, ao sistema Torrens de registro imobiliário. Nesse contexto, são três os princípios que regem o registro inglês na atualidade24: (i) princípio da fidelidade do registro: a matrícula imobiliária deve refletir de forma precisa, completa e incontroversa todos os fatos relevantes para determinar o conteúdo do direito real imobiliário registrado; (ii) princípio da concentração de direitos na matrícula: os direitos reais imobiliários não registrados (ou pelo menos anotados) na matrícula não produzem, em princípio, efeitos perante terceiros, de tal forma que o adquirente de um direito real sobre um imóvel matriculado possa ter a certeza de que o seu direito prevalecerá sobre qualquer outro que não esteja registrado (ou anotado). (iii) Princípio da garantia indenizatória: o Estado atua como garante da exatidão das informações constantes na matrícula do imóvel, de tal forma que qualquer prejuízo provocado por um erro cometido pelo registrador, ou mesmo pela retificação de algum erro verificado na matrícula do imóvel, deve ser indenizado pelo próprio Estado25. Hoje, a Lei de Registro Imobiliário de 2002 prevê expressamente as hipóteses de indenização por erro ou retificação do registrador26.

Referências

Álvarez Caperochipi, Jose Antonio, Derecho Inmobiliario Registral, Pamplona, [s.e.], 2010

Esmaeili, Hossein – Grigg, Brendan (eds.), The Boundaries of Australian Property Law, Cambridge, Cambridge University, 2016

Gray, Kevin –  Gray, Susan Francis, Elements of Land Law, 5ª ed., Oxford, Oxford University, 2009

Land Registration Act 2002

Law of Property (Miscellaneous Provisions) Act 1989.

Manzano Solano, Antonio. Los Sistemas Registrales Inmobiliarios de Inglaterra y Estados Unidos, in Derecho y Opinión, 1 (1992)

MCFARLANE, Ben - Nicholas HOPKINS – Sarah NIELD, Land Law, Oxford, University Press, 2017.

MEGARRY, Robert – WADE, William, The Law of Real Property, 7ª ed., London, Sweet & Maxwell, 2008.

OLCESE, Tomás, Formação Histórica da Real Property Law Inglesa, São Paulo, YK, 2016.

Operative in the British Colonies, London, Cassel/Petter/Galpin & Co., 1882.

RUOFF, Theodore Burton Fox, An Englishman Looks at the Torrens System – Being some provocative essays on the operation of the system after one hundred years, Sydney, The Lawbook of Australia, 1957.

TORRENS, Robert Richard, An Essay on the Transfer of Land by Registration under the Duplicate Method

VAN ERP, Sjef, Comparative Property Law, in REIMANN, Mathias – ZIMMERMANN, Reinhard (coords.), The Oxford Handbook of Comparative Law, Oxford, University Press, 2006.

VAN VLIET, Lars Peter Wunibald, Transfer of Movables in German, French, English and Dutch Law, Nijmegen, Ars Aequi Libri, 2000.

__________

1 Acerca dessas afirmações, cf. T. Olcese, Formação Histórica da Real Property Law Inglesa, São Paulo, YK, 2016. p. 66, nt. 180.

2 Cf. Stat. 2 & 3 Anne (1703), c. 4: "...a memorial of all deeds and conveyances which...shall be made and executed...may at the election of the parties concerned be registered in such a manner as is herein directed and...every deed or conveyance that shall at any time after any memorial is so registered be made and executed...shall be adjud;00  beged fraudulent and void against any subsequente purchaser or mortgagee for valuable consideration unless such memorial thereof shall be registered as by this Act..."

3 Cf. Stat. 7 Anne (1708), c. 20: "...every such deed or conveyance...shall be adjudged fraudulent and void against any subsequent purchasor or mortgagee for valuable consideration unless...registered...before the registering of the...deed or conveyance under which such subsequent purchasor or mortgagee shall claim…".

4 K. Gray – S. F. Gray, Elements of Land Law, 5ª ed., Oxford, Oxford University, 2009, p. 187.

5 R. Megarry – W. Wade, The Law of Real Property, 7ª ed., London, Sweet & Maxwell, 2008, p. 146.

6 Cf. Stat. 25 & 26 Vict. (1862), c. 53.

7 A. Manzano Solano, Los Sistemas Registrales Inmobiliarios de Inglaterra y Estados Unidos, in Derecho y Opinión, 1 (1992), p. 153.

8 O denominado |"sistema Torrens" é um sistema de registro constitutivo de título idealizado por Sir Robert Richard Torrens, cidadão irlandês que emigrou para a Austrália em 1840 e exerceu neste país vários cargos administrativos e políticos. O principal deles foi o de fiscal da alfândega, por meio do qual se familiarizou com as normas do comércio marítimo. Com base no seu conhecimento do registro de navios, arquitetou um sistema de registro imobiliário constitutivo pelo qual o título de propriedade emanava diretamente da Coroa inglesa e substituía toda a cadeia de títulos anteriores ao primeiro registro, cf. J. A. Álvarez Caperochipi, Derecho Inmobiliario Registral, Pamplona, [s.e.], 2010, pp. 39-40. Em 27 de janeiro de 1858, após oito anos de esforços para obter apoio da legislatura, foi promulgada a Lei Torrens (“Torrens Act”) no Austrália do Sul. O sistema foi aperfeiçoado e implantado no restante da Austrália em 1862. Após seu retorno à Inglaterra, Richard Torrens procurou apoio para implantar – sem êxito – o mesmo sistema neste país, sob o argumento de que tornaria as transações imobiliárias mais seguras, simples, céleres, baratas e economicamente vantajosas. Uma das obras de Richard Torrens mais citadas – na qual o autor expõe o sistema registral por ele idealizado com bastante clareza – é R. R. Torrens, An Essay on the Transfer of Land by Registration under the Duplicate Method Operative in the British Colonies, London/Cassel/Petter, Galpin & Co., 1882, pp. 9-58. Embora alguns afirmem que Richard Torrens modelou sua proposta de registro no sistema registral vigente na cidade de Hamburgo havia séculos, a hipótese hoje é considerada improvável, cf. H. Esmaeili – B. Grigg (eds.), The Boundaries of Australian Property Law, Cambridge, Cambridge University, 2016, pp. 31-34.

9 J. A. Álvarez Caperochipi, Derecho cit., p. 44.

10 K. Gray – S. F. Gray, Elements cit., p. 58.

11 K. Gray – S. F. Gray, Elements cit., p. 183.

12 Cf. Land Registration Act 2002, s. 4(1)-(2).

13 J. A. Álvarez Caperochipi, Derecho cit., p. 45.

14 Law of Property (Miscellaneous Provisions) Act 1989, s. 1 (1) (b).

15 Law of Property (Miscellaneous Provisions) Act 1989, s. 1 (1) (a).

16 S. van Erp, Comparative Property Law, in M. Reimann – R. Zimmermann (coords.), The Oxford Handbook of Comparative Law, Oxford, University Press, 2006, p. 1309: "English law, unlike most civil law systems, does not follow a uniform approach with regard to transfer systems. Thus, the Sale of Goods Act of 1979 follows the consensual system. Transfer of a legal estate in land, however, requires a formal act. Also, it should not be forgotten that Equity may intervene; and the result may therefore be that while no transfer has taken place under the common law, it has taken place in Equity".

17 O princípio solo consensu aplica-se, exclusivamente, à transmissão de direitos reais sobre bens móveis e às doações mediante escritura (gifts by deed), cf. L. P. W. Van Vliet, Transfer of Moveables in German, French, English and Dutch Law, Nijmegen, Ars Aequi Libri, 2000, p. 91.

18 K. Gray – S. F. Gray, Elements cit., p. 1034.

19 Nesse sentido, cf. L. P. W. Van Vliet, Transfer cit., p. 111.

20 Acerca da natureza judiciária da formação do direito imobiliário inglês, cf. T. Olcese, Formação cit., pp. 23-32.

21 Land Registration Act 2002, s. 58 (2).

22 Land Registration Act 2002, s. 58 (1).

23 R. Megarry – W. Wade, The Law cit., p. 220.

24 A primeira obra a estruturar esses princípios foi escrita por um registrador inglês com base no sistema australiano de registro imobiliário: T. B. F. Ruoff, An Englishman Looks at the Torrens System – Being some provocative essays on the operation of the system after one hundred years, Sydney, The Lawbook of Australia, 1957, pp. ix-106. Até hoje, a doutrina inglesa não tem elencado nem desenvolvido outros princípios para o registro imobiliário.

25 B. McFarlane – N. Hopkins – S. Nield, Land Law, Oxford, University Press, 2017, p. 108.

26 Land Registration Act 2002, Sch. 8, para. 1.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunista

Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo e doutor em Direito pela USP.