STF vs. Supreme Court

O uso de precedentes estrangeiros pela Suprema Corte dos EUA e pelo Supremo Tribunal Federal

O uso de precedentes estrangeiros pela Suprema Corte dos EUA e pelo Supremo Tribunal Federal.

23/6/2021

O uso de precedentes estrangeiros pelas Cortes Constitucionais é tendência que se alastra nas democracias ocidentais. Independentemente do valor normativo que se dê ao uso de tais decisões alienígenas na jurisdição constitucional, é inegável que os estudos acerca da migração de ideias constitucionais indicam o crescimento exponencial de um diálogo global entre juízes constitucionais de todo o mundo, tornando-os mais próximos uns dos outros com uma frequência maior do que no passado. Assim é que as Cortes Constitucionais, no desempenho de suas funções judicantes, encontram inspiração na jurisprudência estrangeira, envolvendo-se em um verdadeiro diálogo entre juízes constitucionais.

No ponto, o instrumental da migração de ideias constitucionais pode ser utilizado como a ferramenta de base para a análise comparativa das opções jurídicas e políticas das Cortes Constitucionais e das sociedades em que se situam. Em uma perspectiva global, o que se vê é a predominância da utilização do referido instrumental no mundo de língua inglesa, sendo certo afirmar a emergência recente de uso da metodologia em países da América Latina e Ásia, por exemplo. No Brasil, pois, a utilização do instrumental já encontra algum eco no âmbito do Supremo Tribunal Federal, ainda que careça de maior sistematização metodológica.

Em outras palavras, não houve, até o momento, um debate sobre metodologia de direito comparado e acerca da temática específica do uso de precedentes estrangeiros na jurisdição constitucional no âmbito do STF. Também não há, de forma minimamente analítica, um exame sobre a validade e os limites do uso de precedentes estrangeiros na atuação do Tribunal. Assim, nossa Corte Constitucional atua de forma casuística e, no mais das vezes, aceita tal uso sem muito questionamento ou discussão metodológica a respeito dos valores normativos das decisões estrangeiras invocadas. Restam, assim, os questionamentos: qual é o valor normativo desses precedentes no STF e no ordenamento jurídico brasileiro em geral? Qual peso há de se dar a tais precedentes? Devem ser invocados apenas como um viés confirmatório das ilações do Tribunal a partir do direito nacional? Hão de ser vistos como um fator meramente informacional em termos de cultura constitucional? Há, enfim, algum nível mínimo de persuasão possível a ser aplicado a tais precedentes?

De fato, parece-nos claro que inexiste uma cultura de direito comparado no Direito Público brasileiro. Como regra geral amplamente notada – e com raras exceções –, não há, nos cursos de graduação em Direito ou mesmo no âmbito dos Programas de Pós-Graduação, uma preocupação acentuada com debates de forma e de conteúdo eminentemente ligados à metodologia e à aplicação das técnicas e instrumentais do direito comparado. Tudo isso denota, também, o caráter hermético do direito nacional e o pouco espaço que os estudos de direito comparado recebem na academia e na práxis jurídicas.

O mesmo debate acerca do uso de precedentes estrangeiros foi travado de forma bastante clara e direta na Suprema Corte dos EUA. Apesar de menções esporádicas anteriores, o assunto foi alvo de grande repercussão a partir do ano de 2003 com o julgamento pela Suprema Corte do caso Lawrence v. Texas.1 Em breve síntese, a Corte reverteu precedente anterior (Bowers v. Hardwick)2 e encerrou a possibilidade de criminalização, pelos Estados da federação, de condutas homossexuais consentidas entre adultos. É que, na decisão lavrada em nome da maioria (6 x 3), o Justice Anthony Kennedy fez uso de um precedente de 1981 do Tribunal Europeu de Direitos Humanos que, em suma, consagrava que a criminalização de condutas homossexuais pelos Estados aderentes violava a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (Dudgeon v. The United Kingdom).3 Em seu voto vencido, o Justice Antonin Scalia indicava expressamente o perigo do uso de visões estrangeiras no direito nacional, eis que a Suprema Corte não teria legitimidade para impor temperamentos, modismos ou interpretações estrangeiras aos americanos.

De fato, a discussão havida em Lawrence v. Texas sobre o uso de precedentes estrangeiros pela Suprema Corte dos EUA acendeu o debate acadêmico americano acerca da validade de uso e da força normativa de tais decisões. Assim é que, mais tarde, em 2005, a invocação de precedentes estrangeiros foi novamente objeto de controvérsia no caso Roper v. Simmons.4 Abandonando o precedente anterior firmado em Stanford v. Kentucky no ano de 1989, a Suprema Corte decidiu em Roper pela inconstitucionalidade da imposição de pena de morte para condutas cometidas quando o agente tinha menos de 18 anos de idade. Mais importante para o presente debate, a opinião da maioria em Roper (5 x 4), por parte do Justice Anthony Kennedy, indicava uma mínima metodologia para a utilização de precedentes estrangeiros pela Suprema Corte dos EUA: em um primeiro passo, a Corte chegaria a uma conclusão a partir da análise do direito constitucional americano; em um segundo passo, a Corte buscaria opiniões estrangeiras respeitáveis que pudessem confirmar seu entendimento.

Nas palavras do Justice Anthony Kennedy, a opinião da comunidade internacional, ainda que não controle o resultado da análise da Corte, fornece uma confirmação respeitável e significativa para suas próprias conclusões. Tinha-se, assim, a explicitação de um verdadeiro viés confirmatório para os precedentes estrangeiros dentro da análise da Suprema Corte. Mais uma vez criticando tal sorte de entendimento, o Justice Antonin Scalia apontava para impossibilidade de que a Constituição americana fosse interpretada a partir de olhos alienígenas, o que representaria um ataque à soberania nacional. Mais do que isso – e enfatizando sua recusa no uso de precedentes estrangeiros –, Scalia expressava sua irresignação acerca do fato de que, enquanto as opiniões dos próprios cidadãos americanos eram consideradas essencialmente irrelevantes para a decisão da Corte, as opiniões de outros países e da chamada comunidade internacional ocupavam o centro do palco.

Cinco anos mais tarde, em 2010, a Suprema Corte dos EUA julgou o caso Graham v. Florida5, concluindo pela impossibilidade de prisão perpétua sem liberdade condicional para crimes distintos do homicídio cometidos enquanto o agente era menor de 18 anos. Pela maioria (6 x 3), o Justice Anthony Kennedy entendia que as leis e práticas de outras nações na mesma matéria – e, bem assim, os precedentes estrangeiros – seriam interessantes à Suprema Corte como forma de demonstrar que o resultado alcançado no julgamento detinha um suporte argumentativo respeitável na comunidade internacional. Isso, via de consequência, legitimaria o uso de precedentes internacionais com um valor normativo distinto: não mais com um viés confirmatório, conforme exposto em Roper v. Simmons, mas, sim, como um mero suporte argumentativo. Em opinião minoritária, o Justice Clarence Thomas fez questão de apresentar, em nota de rodapé, seu repúdio formal à utilização de material estrangeiro pela Suprema Corte, eis que seriam irrelevantes à significação da Constituição americana ou ao discernimento sobre as tradições nacionais.

Vê-se, assim, que nos Estados Unidos da América o debate sobre a utilização de precedentes estrangeiros na Suprema Corte foi revigorado a partir de 2003 (com Lawrence v. Texas) e vem sendo travado com base em discussões fortemente polarizadas em termos ideológicos e políticos (por exemplo, decisões sobre pena de morte e direitos relativos à sexualidade). Isso tudo tornou a questão explosiva (a favor e contra o uso de precedentes estrangeiros), inclusive com interessantes debates acadêmicos entre o Justice Antonin Scalia e o Justice Stephen Breyer em fóruns públicos e faculdades, o que é bastante raro no contexto americano.

Por aqui, no Brasil (e no STF), inexiste até o momento um debate verdadeiro acerca da metodologia a ser empregada para a efetiva utilização de precedentes estrangeiros e, mais do que isso, para a delimitação dos valores normativos incidentes em tal utilização. De qualquer forma – e em termos metodológicos práticos –, é possível afirmar que o diálogo entre juízes constitucionais é viabilizado a partir de dois parâmetros distintos: 1) por intermédio de citações e invocações diretas de precedentes estrangeiros ou de sua ratio decidendi quando a matéria discutida é análoga (ex.: a invocação de um precedente estrangeiro sobre aborto em um julgamento nacional também sobre aborto), e; 2) com a utilização de ideias e estruturas racionais derivadas de precedentes estrangeiros que auxiliem a construção do argumento no direito nacional, ainda que o caso invocado não trate de matéria análoga à discutida na Corte que o invoca.

Diante de tal perspectiva – e após a introdução sobre as discussões ocorridas na Suprema Corte dos EUA –, importa notar que o objetivo primordial da presente coluna ("STF vs. Supreme Court") é o de debater, a partir de casos concretos, a utilização de precedentes da Suprema Corte dos EUA pelo Supremo Tribunal Federal do Brasil. Ainda que não se pretenda realizar uma análise eminentemente acadêmica do diálogo entre as duas Cortes Constitucionais, é fato que, vez por outra, algumas discussões de metodologia em estudos jurídicos comparativos poderão vir à tona. Ocasionalmente, é possível que em algum momento o foco da coluna seja direcionado para outros tribunais brasileiros que façam uso de decisões da Suprema Corte dos EUA. Isso não retira, no entanto, o escopo maior da empreitada ora iniciada: dissecar os casos e temas em que o STF faz uso de precedentes da Suprema Corte dos EUA. Até a próxima!

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1 Lawrence v. Texas, 539 U.S. 558 (2003).

2 Bowers v. Hardwick, 478 U.S. 186 (1986).

3 Dudgeon v. United Kingdom, Appl. No. 7525/76, Council of Europe: European Court of Human Rights, 22 October 1981.

4 Roper v. Simmons, 543 U.S. 551 (2005).

5 Graham v. Florida, 560 U.S. 48 (2010).

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Colunista

Bruno Santos Cunha é procurador do município do Recife e sócio do escritório Urbano Vitalino Advogados. Bacharel pela UFSC, mestre em Direito pela USP, Master of Laws pela University of Michigan e doutorando em Direito pela UFPE. Professor de Direito Constitucional e Direito Administrativo.