Há dezoito anos em vigor, a lei 11.340, de 07 de agosto de 2006 (lei Maria da Penha, aqui referida como LMP) revolucionou o enfrentamento à violência doméstica no Brasil. Todo e qualquer ato de violência baseado no gênero feminino, seja em relação íntima de afeto, atual ou passada, e independente de coabitação, seja no contexto de relações familiares, com ou sem laço sanguíneo, está abrangido pela lei.
Um de seus principais méritos foi reconhecer um espectro completo de violências contra a mulher: física, psicológica, sexual, moral e patrimonial.
Apesar desse avanço conceitual, os debates jurídicos ainda se concentram nas formas mais visíveis de agressão - especialmente a física e a psicológica -, negligenciando uma modalidade que registra números crescentes: a violência patrimonial.
O art. 7º, inciso IV, da LMP define a violência patrimonial como qualquer conduta que implique retenção, subtração, destruição ou controle de bens, valores, documentos, instrumentos de trabalho, recursos econômicos ou objetos pessoais, inclusive os de valor meramente afetivo.
Na prática, essa forma de violência se manifesta de diversas maneiras: pelo confisco de cartões bancários, restrição de acesso a contas, apropriação de documentos pessoais e profissionais, venda ou ocultação de bens ou, ainda, destruição de pertences, como celulares, computadores, joias e outros objetos de valor pessoal.
Os números revelam a gravidade do fenômeno: entre 2022 e 2023, a violência patrimonial disparou 35%, registrando o maior crescimento entre todas as modalidades de violências não letais - foram 22 mulheres vitimadas diariamente, segundo o Instituto Igarapé1 2. O DataSenado confirma a tendência: em 2017, representava 17% dos casos; em 2023, o índice dobrou para 34%3.
O ordenamento jurídico, porém, impõe obstáculos significativos à tutela penal dessa modalidade de violência.
Tenha-se em mente que a LMP não criou tipos penais, assim como não previu majorantes de pena para as hipóteses em que a mulher, em razão desta sua condição, seja vítima de delitos patrimoniais.
Desta forma, o conceito de violência patrimonial previsto na LMP deve ser compatibilizado com as previsões anteriores do CP. A pergunta que então se coloca é se os arcabouços legais estão em harmonia ou se existem pontos de antinomia e, nesta hipótese, como deve ser solucionado o conflito aparente de normas.
Para responder a esta indagação, é preciso examinar a disciplina nos Crimes contra o Patrimônio (Título II), onde estão catalogadas as infrações penais que materializam as principais hipóteses de violência patrimonial, como é o caso do furto, do roubo, da extorsão, do dano e da apropriação indébita.4
São estas as figuras que incriminam as ações de subtração, destruição e retenção de bens, direitos e valores que podem vir a ser praticadas pelo agressor contra a mulher no contexto doméstico e familiar.
E é justamente aqui que surge o primeiro obstáculo: o art. 181 do CP estabelece duas hipóteses de isenção de pena, também conhecidas como escusas absolutórias: quando o delito for cometido contra o cônjuge, na constância da sociedade conjugal (inciso I), ou contra o ascendente ou descendente (inciso II).
De forma complementar, o art; 183 do CP estipula que as escusas absolutórias não se aplicam ao roubo, à extorsão, “ou, em geral, quando haja emprego de grave ameaça ou violência contra a pessoa”.
Daí decorrem dois problemas centrais de compatibilização entre as previsões do CP e da LMP, ao regrar a violência patrimonial.
O primeiro diz respeito à divergência conceitual: enquanto o CP restringe o conceito de “violência contra a pessoa” à agressão física, a LMP adotou concepção ampliada e polissêmica, abarcando também a violência psicológica, moral e patrimonial.
No conflito aparente das normas penais, questiona-se se a LMP ampliou o conceito de “violência contra a pessoa” do art. 183 do CP, afastando as escusas absolutórias de toda forma de violência patrimonial contra a mulher no contexto doméstico ou familiar, ou se a Lei, na verdade, se submeteu ao regime do CP, permitindo a punição do agressor apenas nos casos em que se valer da agressão física ou da grave ameaça para se assenhorar de bem, valor ou objeto pertencente à vítima - isentando-o nos casos de furto, dano e apropriação indébita.
A jurisprudência tem decidido em favor da segunda hipótese, reconhecendo a aplicabilidade do art. 181 do CP5. Na doutrina, há entendimento divergente, como o de Maria Berenice Dias6.
Em reforço à posição majoritária da jurisprudência está a expressa previsão, no art. 41 da LMP, da inaplicabilidade da lei 9.099/95 e seus institutos despenalizadores. Pode-se, assim, argumentar que, se a mens legis fosse a de afastar as escusas absolutórias patrimoniais, teria inserido semelhante previsão em relação ao art. 181 do CP.
Por outro lado, não se há de ignorar o anacronismo da disciplina das escusas absolutórias, que remonta ao CP do Império, de 1830, e foi mantida no CP de 1940, alinhando-se a um CC que ainda conferia ao homem, como chefe da sociedade conjugal e titular do pátrio poder, “a administração dos bens comuns e dos particulares da mulher”, bem como “prover a manutenção da família”7.
O segundo problema na integração dos arcabouços normativos está no alcance das escusas absolutórias, que nas relações de afeto beneficia apenas o cônjuge atual e, nas relações familiares, o ascendente e o descendente.
Não há, portanto, na literalidade da lei, isenção de pena ao namorado, ao convivente e ao divorciado. Nem aos parentes colaterais. No entanto, na disciplina da LMP, a proteção à mulher não encontra os mesmos limites, atingindo, indistintamente, todos esses vínculos afetivos ou familiares.
Como, então, compatibilizar tais disciplinas? Deve-se, em alguma medida, promover interpretação extensiva ou analógica em benefício do réu cuja situação não foi expressamente prevista entre as escusas absolutórias?
Na jurisprudência, a extensão à união estável tem sido reconhecida sem maiores dificuldades dada a equiparação promovida pela própria Constituição Federal, em seu art. 226, §3º8. O mesmo não tem se dado em relação a irmãos, enteados9, namorados e ex-cônjuges, com situação legal regularizada10.
A exclusão da punibilidade pelas escusas absolutórias compromete, ainda, a legitimidade das medidas cautelares patrimoniais previstas no art. 24 da lei 11.340/06. É verdade que tais medidas não dependem da existência de inquérito ou processo criminal - entendimento consolidado pelo STJ no Tema repetitivo 1.249. Essa autonomia se justifica nos casos de violência física ou psicológica, em que o risco à integridade da vítima subsiste mesmo diante do arquivamento ou da absolvição.
No entanto, a lógica não se sustenta plenamente nas hipóteses de violência patrimonial: a prevalecer o entendimento de que certos agressores estão isentos de responsabilidade penal, soa contraditório manter restrições sobre seu patrimônio originadas da mesma relação familiar que impede sua punição.
Além disso, a aplicação dessas medidas enfrenta o desafio de não desbordar para discussões sobre partilha de bens, o que extrapola a competência do juízo de violência doméstica (art. 14, §1º, da lei 11.340/06).
Para superar essas dificuldades, tramitam no STF e no Congresso Nacional iniciativas voltadas a compatibilizar a disciplina dos crimes patrimoniais na LMP e no CP.
No STF, a ADPF 1.185, ajuizada pela CONAMP11 e sob relatoria do ministro Dias Toffoli, busca declarar a não recepção da aplicação das escusas absolutórias aos crimes patrimoniais cometidos no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher.
No Legislativo, dois projetos de lei no Senado tratam diretamente do tema: o PL 2.235/22 propõe a revogação do art. 181 e a alteração do art. 182 do CP, eliminando as imunidades penais nos crimes patrimoniais praticados no âmbito familiar12; e o PL 4.411/21 garante atendimento prioritário às vítimas de violência patrimonial na reemissão de documentos, aceitando como prova o boletim de ocorrência, a medida protetiva ou o encaminhamento multidisciplinar.13
A expressiva presença da violência patrimonial nas relações domésticas e familiares impõe a necessidade de garantir segurança jurídica no tratamento da matéria. As iniciativas legislativas e judiciais em curso representam passo essencial para superar as antinomias entre o CP e a lei Maria da Penha e construir um sistema coerente, que garanta proteção efetiva às vítimas e estabilidade jurídica na aplicação da lei.
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1 Disponível aqui.
2 O levantamento é baseado em dados oficiais e de segurança pública. O aumento expressivo nos registros não permite afirmar se houve crescimento real da violência patrimonial ou se o fenômeno, antes naturalizado e invisibilizado, passou a ser reconhecido e denunciado pelas vítimas. A histórica normalização da subordinação econômica feminina no ambiente doméstico sugere que a elevação dos números reflete, ao menos parcialmente, maior conscientização sobre direitos e rompimento com padrões culturais que legitimavam o controle masculino sobre recursos e bens familiares.
3 Disponível aqui.
4 Dada a abrangência da noção de violência patrimonial da LMP, é possível caracterizar como tal condutas tipificadas em outras figuras do Código Penal, como a sonegação de correspondência (art. 151, §1º, inc. I, do Código Penal) e a supressão de documento (art. 305 do Código Penal), que não se submetem à disciplina dos crimes contra o patrimônio.
5 STJ, RHC 42.918, 5ª turma, Relator Ministro Jorge Mussi, DJe 14.08.2014; TJRS Apel. Crim. n. 0054292-95.2018.8.21.7000, 8ª Câmara Criminal, Relator Desembargador Dálvio Leite Dias Teixeira, julgado em 25/7/2018;
6 DIAS, Maria Berenice. Lei Maria da Penha: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, pp. 52 e 71. No mesmo sentido: OLIVEIRA, Adriana Vidal; BERNARDES, Márcia Nina; COSTA, Rodrigo de Souza. A aplicação das medidas protetivas de urgência nos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher do Estado do Rio de Janeiro. In.: Violência doméstica, discriminação de gênero e medidas protetivas de urgência. Curitiba: Juruá, 2016, p. 131.
7 Artigo 223, incisos II e IV da Lei n. 3.071 de 1º de janeiro de 1916.
8 STJ, RESP n. 1361518, Ministro Rogério Schietti Cruz, julgado em 7/5/2014; TJSP Apel. Crim. 0000009-54.2014.8.26.0136, 5ª Câmara de Direito Criminal, Relator Desembargador Sérgio Ribas, julgado em 19/11/2015.
9 STJ, RESP n. 1.709.971, 6ª Turma, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 1/3/2018, DJe 9/3/2018.
10 Em precedente do STJ, a separação de corpos e a separação de fato foram declaradas incapazes de afastar a incidência das escusas absolutórias, por não extinguirem o vínculo matrimonial: RHC 42.918, 5ª Turma, Relator Ministro Jorge Mussi, DJe 14/8/2014.
11 Associação Nacional dos Membros do Ministério Público.
12 Disponível aqui.
13 Disponível aqui.