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A coleta de DNA do preso em flagrante: Notas críticas à lei 15.272/25

A coluna aborda como a lei 15.272/25 amplia a coleta de DNA na custódia, mas gera fortes dúvidas constitucionais por violar presunção de inocência, privacidade e a vedação à autoincriminação.

19/12/2025

Importantes alterações em matéria processual penal foram recentemente introduzidas ao ordenamento brasileiro com a promulgação da lei 15.272/25, sancionada no último dia 26 de novembro de 2025.

Em síntese, a lei apresenta novas disposições relacionadas ao ato processual da audiência de custódia, incluindo: (a) a criação de um rol exemplificativo de circunstâncias que recomendam a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva; (b) a previsão de novas regras para coleta de material biológico do preso em flagrante, com o fim de obtenção e armazenamento de seu perfil genético; e (c) o estabelecimento de critérios para aferição da periculosidade do agente, indicada como “geradora de riscos à ordem pública” e, portanto, autorizadora da decretação da prisão preventiva.

Parte dos dispositivos referentes à imposição da prisão preventiva tem suscitado críticas e controvérsias - relacionadas, por exemplo, a sua possível inconstitucionalidade por incompatibilidade com o princípio basilar da presunção de inocência. No presente texto, todavia, a análise se centrará no tema da coleta do material biológico do custodiado.

Breve exposição sobre a coleta de material biológico para fins criminais na legislação e jurisprudência brasileiras

A possibilidade de coleta do material biológico do indivíduo para obtenção de seu perfil genético, no âmbito criminal, foi trazida, inicialmente, pela lei 12.654/12. A norma introduziu dispositivos na lei 12.037/09 (lei que regulamenta a identificação criminal) e na LEP - Lei de Execução Penal. Posteriormente, a alcunhada lei anticrime (lei 13.964/19) firmou algumas alterações em ambos os diplomas legais.

A lei 12.037/09 prevê que a identificação criminal, na hipótese em que for essencial às investigações policiais, poderá incluir a coleta de material biológico para a obtenção do perfil genético, determinando o seu armazenamento em banco de dados de perfis genéticos, de caráter sigiloso, a ser gerenciado por unidade oficial de perícia criminal. Dentre outras determinações, a norma afirma que as informações genéticas a serem armazenadas não poderão revelar traços somáticos ou comportamentais das pessoas, exceto indicação genética de gênero. Ainda, após advento da lei anticrime, a exclusão dos perfis genéticos dos bancos de dados tornou-se obrigatória em caso de absolvição do acusado, ou, nos casos de condenação, após decorridos 20 (vinte) anos do cumprimento da pena, mediante requerimento do condenado.

Por sua vez, a lei de execução penal institui como obrigatória a submissão à identificação do perfil genético daqueles que forem condenados nas seguintes hipóteses:

  • por crime doloso praticado com violência grave contra a pessoa;
  • por crime doloso contra a vida; 
  • por crime contra a liberdade sexual;
  • por crime sexual contra vulnerável.

A coleta do material biológico, segundo a LEP, deverá ser realizada por perito oficial, e a obtenção do perfil genético ocorrerá mediante extração de DNA (ácido desoxirribonucleico), por técnica adequada e indolor, no momento do ingresso no estabelecimento prisional ou, em sua falta, durante o cumprimento da pena.

O diploma também estabelece o armazenamento das informações genéticas do condenado em banco de dados sigiloso, o qual poderá ser acessado por autoridade policial mediante requerimento à autoridade judiciária. O titular dos dados genéticos também tem direito a acessar suas informações constantes dos bancos de dados, inclusive aquelas relacionadas à respectiva cadeia de custódia, até mesmo para fins de impugnação pela defesa.

Caso o apenado se recuse a ter seu material biológico colhido, estará sujeito a falta grave.

Não obstante a inclusão da coleta de material biológico para fins criminais na legislação brasileira, sua constitucionalidade foi submetida à apreciação do STF no RE 973.837, cuja repercussão geral foi reconhecida no Tema 905, sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes.

O recurso foi interposto pela Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais contra acórdão proferido pelo TJ/MG em que foi debatida, em plenário, a constitucionalidade da extração compulsória de material genético de condenados. Na oportunidade, mencionada Corte sustentou não existir conflito entre a norma introduzida pela lei 12.654/12 e o princípio da não autoincriminação, previsto no art. 5°, inciso LXIII, da Constituição da República.

Uma vez reconhecida a repercussão geral, o caso foi levado a julgamento na sessão plenária do dia 7 de agosto do corrente ano. Contudo, após a realização das sustentações orais das partes e das entidades habilitadas como amicus curiae, o julgamento foi suspenso e, até a presente data, não há previsão para sua retomada.

Tanto nas manifestações das entidades admitidas como amicus curiae, quanto nas sustentações orais proferidas em plenário, foram formuladas críticas de elevada relevância ao texto normativo. Sintetiza-se as principais a seguir.

A Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, representando o réu, ao requerer a declaração de inconstitucionalidade da norma, sustentou que a coleta compulsória do material biológico configura violação à dignidade da pessoa humana, ao devido processo legal e ao direito à não autoincriminação, além de configurar medida autoritária e estigmatizante, incompatível com a finalidade ressocializadora da pena, e carecer de garantias quanto ao uso, sigilo e exclusão das informações coletadas.

Já o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais aduziu que a exigência da coleta obrigatória retrata o quadro de constante expansão do aparato repressivo e sua institucionalização ao estabelecer a obrigação do condenado de produzir provas contra si, para uso futuro e indeterminado, as quais permanecerão sob guarda exclusiva e unilateral dos próprios órgãos de persecução. No mais, pontuou que a afirmação de que a extração compulsória de material genético de condenados resultaria em maior segurança pública afigura-se mais uma crença do que um dado objetivo, em razão da ausência de evidências que suportem essa hipótese, visto ainda que existem formas menos lesivas para alcançar o fim desejado.

A Defensoria Pública da União manifestou-se de forma crítica, ressaltando os riscos de desvio de finalidade e de vazamento de dados, além de chamar atenção para a precariedade da infraestrutura da perícia técnica no Brasil, circunstância que agrava a possibilidade de comprometimento da cadeia de custódia da prova.

O Conselho Federal da OAB, por sua vez, chamou a atenção para o fato de que o DNA coletado não é utilizado apenas como forma de identificação criminal, uma vez que a coleta é utilizada também para estabelecer conexão entre o indivíduo e a autoria de delito, seja em persecuções penais em andamento, futuras ou de crime pretérito distinto da condenação. Ainda, ressaltou a firme tendência na jurisprudência dos tribunais superiores contra a intervenção corporal coercitiva, sendo a relativização possível, desde que não afete o seu núcleo essencial, isto é, não se pode obrigar o investigado ou réu a agir ativamente na produção de prova contra si próprio.

Observa-se que não são poucas as ressalvas quanto à inconstitucionalidade da coleta de material biológico para fins criminais; contudo, em razão da suspensão do julgamento, a definição da matéria permanece pendente.

As novas previsões da lei 15.272/25

Diferentemente da lei de execução penal, que prevê a obrigatoriedade da coleta do material biológico em casos de condenação definitiva, a nova lei 15.272/25 institui tal procedimento no âmbito da prisão em flagrante, devendo ser efetuado na própria audiência de custódia, preferencialmente, ou no prazo de 10 (dez) dias a partir de sua realização. Nos termos do novo art. 310-A, adicionado ao CPP, o Ministério Público ou a autoridade policial deverá requerer ao juiz a identificação do perfil genético do custodiado na ocasião das seguintes hipóteses de prisão em flagrante:

  • por crime praticado com violência ou grave ameaça contra a pessoa;
  • por crime contra a dignidade sexual;
  • por crime praticado por agente em relação ao qual existam elementos probatórios que indiquem integrar organização criminosa que utilize ou tenha à sua disposição armas de fogo;
  • por crime praticado por agente em relação ao qual seja imputada a prática de crime previsto no art. 1º da lei 8.072/1990 (lei dos crimes hediondos).

O caput do dispositivo indica que a coleta do material biológico deverá ocorrer segundo os preceitos da lei 12.037/09. Por outro lado, enquanto a LEP afirma que a coleta deverá ser realizada por perito oficial, o art. 310-A, em seu § 2º, determina a sua execução por “agente público treinado”, condicionando-a ao cumprimento dos procedimentos de cadeia de custódia definidos na legislação e nas normas dos órgãos oficiais de perícia criminal.

Considerações sobre a coleta de DNA do preso em flagrante

O primeiro aspecto digno de nota consiste no fato de que a lei 15.272/25 amplia a disciplina, mas com ainda menor rigor normativo, de instituto cuja constitucionalidade já se encontrava sob relevante questionamento no ordenamento jurídico brasileiro. Até então, a obrigatoriedade da coleta de material biológico para fins de identificação genética restringia-se a indivíduos definitivamente condenados, isto é, após o trânsito em julgado da sentença penal. A nova disciplina, contudo, desconsiderando as controvérsias já existentes sobre a compatibilidade desse mecanismo com garantias fundamentais, avança para prever a coleta de DNA de pessoas presas em flagrante - portanto, em condição de prisão provisória -, em momento processual extremamente inicial e ainda muito distante da formação definitiva de culpa, circunstância que suscita significativos tensionamentos com o princípio da presunção de inocência.

Por outro lado, a compulsoriedade da medida, que é expressa no art. 9º-A da LEP (“O condenado... será submetido, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético”) não está posta do mesmo modo no art. 310-A do CPP. A análise dos termos da lei revela um comando requisitório dirigido apenas ao Ministério Público ou à autoridade policial (que deverá requerer ao juiz a coleta de material biológico”), ausente, porém, uma prescrição igualmente explícita em relação ao magistrado. Uma vez que a redação legal deixa de prever se o requerimento deve ser automaticamente deferido ou se subsiste espaço para juízo de ponderação judicial diante das circunstâncias do caso concreto, inclusive na hipótese de oposição manifestada pelo custodiado, evidencia-se lacuna relevante quanto aos critérios e limites do controle jurisdicional desse ato.

Acrescenta-se, ainda, uma problemática técnica importante no que se refere a uma das hipóteses autorizadoras do requerimento de coleta do material biológico, qual seja, a imputação de crime praticado por agente em relação ao qual existam “elementos probatórios” indicativos de integração a organização criminosa que utilize ou tenha à sua disposição armas de fogo. No contexto da prisão em flagrante, o que ordinariamente se dispõe são elementos de natureza eminentemente indiciária, sem investigação policial desenvolvida e, menos ainda, sem qualquer produção probatória submetida ao crivo do contraditório. A utilização, pelo legislador, da expressão “elementos probatórios” nesse estágio procedimental, portanto, mostra-se conceitualmente inadequada, além de ampliar medidas sensíveis com base em juízos ainda precários.

No mais, retoma-se as já conhecidas ressalvas quanto à coleta compulsória de DNA no âmbito criminal.

A principal delas é, sem dúvida, a inequívoca violação ao princípio do nemo tenetur se detegere, consagrado no art. 5º, inciso LXIII, da Constituição da República, que assegura o direito ao silêncio e veda a autoincriminação forçada. A garantia constitucional reforça o direito do acusado de não produzir prova contra si mesmo, bem como de não sofrer qualquer prejuízo em razão da recusa ou omissão em colaborar com a atividade probatória. A nova lei em nada resolveu esse problema já posto anteriormente.

Embora o novo art. 310-A se refira à coleta de material genético para a “obtenção e armazenamento do perfil genético”, é inegável que a identificação do DNA do preso em flagrante viabiliza a utilização do padrão genético como meio de prova, a subsidiar investigações criminais em andamento.

O STF já se mostrou, em inúmeras oportunidades, intransigente diante das ofensas ao direito à não autoincriminação, considerando inadmissível a imposição a qualquer indivíduo da produção de prova em afronta à sua vontade. Veja-se, a título de exemplo, as ressalvas do ministro Celso de Mello no julgamento do habeas corpus 96.219:

“O Estado - que não tem o direito de tratar suspeitos, indiciados ou réus, como se culpados fossem, antes do trânsito em julgado de eventual sentença penal condenatória (RTJ 176/805-806) - também não pode constrangê-los a produzir provas contra si próprios (RTJ 141/512), em face da cláusula que lhes garante, constitucionalmente, a prerrogativa contra a autoincriminação. Aquele que sofre persecução penal instaurada pelo Estado tem, dentre outras prerrogativas básicas, (a) o direito de permanecer em silêncio, (b) o direito de não ser compelido a produzir elementos de incriminação contra si próprio nem de ser constrangido a apresentar provas que lhe comprometam a defesa e (c) o direito de se recusar a participar, ativa ou passivamente, de procedimentos probatórios que lhe possam afetar a esfera jurídica, tais como a reprodução simulada (reconstituição) do evento delituoso e o fornecimento de padrões gráficos ou de padrões vocais para efeito de perícia criminal.” (STF, HC 96.219-MC/SP, rel. min. Celso de Mello, j. em 9/10/2008).

Evidentemente, a coleta compulsória de material genético, ainda na fase preliminar da investigação, configura a produção de elementos passíveis de, futuramente, serem utilizados para a incriminação do acusado.

Ademais, o extenso prazo - incluído pela lei anticrime e aplicável à nova disposição - de 20 (vinte) anos, contado a partir do fim do cumprimento da pena, para armazenamento dos perfis genéticos, que só serão removidos dos bancos de dados a pedido de seu respectivo titular, pode configurar manifesta vigilância biométrica permanente e violação ao direito à privacidade - o que é ainda mais grave diante da inexistência de uma LGPD em âmbito penal no Brasil.

Como salientado pelo ministro Gilmar Mendes, relator do RE 973.837 na decisão que reconheceu a repercussão geral da matéria, a Corte Europeia de Direitos Humanos, quando do julgamento do caso S. and Marper v. The United Kingdom, que tratou do assunto à luz da Convenção Europeia sobre Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais, afirmou que a manutenção, por prazo indeterminado, dos perfis genéticos de pessoas não condenadas, viola o direito à privacidade, previsto no art. 8º da Convenção Europeia de Direitos Humanos.

Tal como reconhecido pela Corte Internacional, o armazenamento de dados genéticos afeta de forma inequívoca direitos fundamentais muito sensíveis, especialmente a intimidade genética e a proteção de dados pessoais, de maneira que torna imperioso que o período de conservação seja proporcional à finalidade almejada.

Por fim, conforme bem destacado pelos representantes do IBCCRIM no julgamento acima mencionado, além de um etiquetamento evidente do custodiado, inexiste qualquer evidência de que a manutenção de um cadastro de perfis genéticos seja apta a inibir a prática de crimes futuros, razão pela qual o argumento utilizado pelos defensores da medida no sentido de que ela teria o condão de promover maior segurança jurídica carece de adequada fundamentação.

Conclusões

À luz das considerações expostas, constata-se que a lei 15.272/25 avançou de forma prematura ao introduzir novas e sensíveis disposições sobre a coleta de material biológico em um campo cuja constitucionalidade sequer se encontra sedimentada no ordenamento jurídico brasileiro.

A opção legislativa revela-se ainda mais problemática diante da inexistência de uma legislação específica de proteção de dados pessoais no âmbito penal que discipline os limites, as finalidades, as garantias e os mecanismos de controle do tratamento de dados genéticos - sabidamente dotados de elevado potencial lesivo aos direitos fundamentais.

Esse cenário ganha especial gravidade em um contexto social marcado pela intensificação contínua de mecanismos de vigilância estatal. Em um mundo de crescente monitoramento, torna-se imprescindível a reafirmação de limites legais claros, estritos e proporcionais, capazes de conter a expansão acrítica de técnicas invasivas no processo penal.

Como bem advertiu a Corte Europeia de Direitos Humanos, a proteção da vida privada seria inaceitavelmente enfraquecida se o uso de técnicas científicas modernas fosse autorizado a qualquer custo, sem uma ponderação rigorosa entre seus potenciais benefícios e os riscos que impõem a direitos fundamentais.

A isso se soma o fato de que os novos dispositivos afrontam de forma direta o princípio da presunção de inocência, ao autorizarem a coleta de DNA de pessoas presas em flagrante, em momento processual embrionário, extremamente distante da formação definitiva da culpa, no qual a imputação ainda se sustenta em juízos precários e não submetidos ao contraditório.

Autorizar a coleta de DNA do preso em flagrante significa, em última análise, a escolha do legislador de deslocar perigosamente o eixo do processo penal garantista para uma racionalidade de ampliação do punitivismo e da suspeição permanente, tensionando de forma preocupante o núcleo essencial dos direitos fundamentais. É premente, portanto, que a nova lei seja submetida a severo escrutínio constitucional.

Colunistas

Clarissa Höfling é advogada criminalista e sócia fundadora do escritório Höfling Sociedade de Advogados. Especialista em Direito Penal Econômico GVLaw. Pós-graduada em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra (Portugal) e especialista em Direito Penal e Processo Penal pela EPD. Cursou, também, Governança Corporativa e Compliance na INSPER e Gestão de Riscos e Compliance na FIA Business Schooll. Atuou como relatora presidente da 4ª Turma do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP no triênio de 2022 a 2024. Professora de Compliance Criminal no Damásio Educacional.

Claudia Bernasconi é advogada criminalista. Sócia do escritório Joyce Roysen Advogados. Conselheira Estadual da OAB/SP e presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB/SP.

Danyelle Galvão é advogada criminalista e sócia fundadora do escritório Galvão & Raca Advogados. Doutora pela USP. Professora.

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