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Não é empatia, é escárnio

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Atualizado às 08:38

Interessante observar como assuntos íntimos e particulares ganham cada vez mais a atenção das pessoas, fazendo com que haja a presença "da vida do outro" na "minha vida", em especial quando se trata das "ditas celebridades". 

O que mais espanta é que a desenvoltura utilizada para acompanhar a vida alheia não é a mesma utilizada para lidar com os problemas da vida cotidiana, demonstrando que a pulverização da informação, que se justifica como um instrumento de autonomia dos sujeitos porque se apropriam da realidade, não garante a temperança e o bom senso na tomada de decisão. 

Os casos são múltiplos e as variáveis ainda mais numerosas. Há décadas vivemos a comentar break news. Lembramos de uma semana, em 2010, quando pulverizaram nos meios de comunicação as denúncias do desaparecimento de Eliza Samudio: se configurava os primeiros indícios do assassinato (naquela época ainda havia dúvidas) da jovem que teria engravidado de um jogador de futebol para transformar a criança em objeto de negociação. O feminicídio de uma jovem mulher é muito gravoso jurídica, moral e socialmente e aponta para a leviandade presente nas relações e para a vulnerabilidade das mulheres em relações íntimas. Só a possibilidade de se ceifar a vida de um ser humano para evitar o pagamento de uma pensão alimentícia a um filho é demasiadamente tosca para que seja banalizada. 

Mais de uma década depois, na semana passada, lemos e ouvimos dois jogadores de futebol protagonizarem falas e comportamentos execráveis (nenhuma novidade até aqui, mas gera espanto, ainda!). Um, com histórico de excessos e gostos extravagantes trai a namorada grávida, às vésperas da festa onde se saberia o sexo do bebê (agora há nome para isso: chá revelação) e a expõe publicamente pedindo desculpas em uma de suas redes sociais: "Vi o quanto você foi exposta, o quanto você sofreu com tudo isso e o quanto quer estar ao meu lado". Não há: "eu a expus sem pudor e irresponsavelmente", há o deslocamento da responsabilidade para o abstrato, para uma espécie de entidade amorfa e infantilizada, típica daquele que muitos teimam em chamar de "menino Neymar". E completa: "Se um assunto privado se tornou público, o pedido de perdão tem que ser público". 

O outro, que já superou a barreira dos 40 anos, é protagonista de entrevista veiculada pelo jornal espanhol La Vanguardia, na qual ele afirma ser inocente e diz perdoar a suposta vítima de estupro: "Eu a perdoo. Ainda não sei porque ela (a vítima) fez tudo isso, mas a perdoo". O Ministério Público espanhol requereu a prisão de Daniel Alves, sob a acusação de ter estuprado uma mulher de 23 anos, em uma boate em Barcelona, na noite do dia 30 de dezembro, logo após seu depoimento em 20 de janeiro. O jogador está preso desde então, uma vez que os três pedidos feitos pelos seus advogados para responder ao processo em liberdade foram negados. Peculiar a autorização que o acusado se dá para mencionar a suposta vítima como mentirosa, uma vez que, como dissemos, ele está preso, sem direito à fiança e com três negativas sucessivas, aos seus pedidos para responder ao processo em liberdade. Além disso, não se constrange ao publicizar, mais uma vez, sua traição, porque ele não nega (não mais) a relação sexual, "apenas" que foi forçada. Justifica, ainda, que a esposa merece um pedido de desculpas público, uma vez que o caso é público e que ela foi exposta publicamente. 

A frase de ambos os jogadores é quase idêntica ao dizerem que vão a público se desculpar pois a situação se tornou pública, como se a ação deles tivesse ocorrido no privado, sob sigilo e cautela, alheias à deslealdade, à violência e à traição. É claro que a repulsa ao crime de estupro é muito maior (sem minimizar os danos, inclusive psíquicos, que uma traição pode causar) do que uma traição, não estamos numa corrida para saber o que é mais danoso às pessoas. 

O que nos instiga a falar sobre esses episódios é a sensação de que reforçamos, a cada oportunidade, uma espécie de "banalização do mal", de diminuição dos que nos torna humanos, que a razão e o livre arbítrio.  Experimentamos a conivência do poder estatal, da opinião pública e dos meios de comunicação com os despautérios cometidos por figuras públicas que têm sempre espaço de destaque nos horários nobres das emissoras e presença na imprensa escrita. 

Não fosse assim, a declaração concedida pelo goleiro Bruno, há quase 15 anos, condenado pelo homicídio (hoje feminicídio) de Eliza Samúdio sobre a normalidade de se praticar violência contra mulheres, ao defender um colega de clube que teria agredido fisicamente a noiva, não teria passado incólume aos olhos das autoridades, dos seus patrocinadores e do clube em que trabalhava, tampouco teria lhe rendido novos convites de contratação tão logo saiu do cárcere e talvez, apenas talvez, sem tanta chancela e leniência para o absurdo, o destino de Eliza tivesse sido outro. 

A legitimação do vil é tão corrosiva e tóxica quanto os crimes, os abusos e as traições praticados, porque quando distorcemos a realidade, embotamos "a visão" de jovens meninas e meninos, que cada vez mais se lançam de forma irresponsável em relações superficiais e oportunistas.

Ainda nos vemos obrigadas a informar e afirmar a humanidade das mulheres, precisando falar o óbvio: mulheres e homens gozam do mesmo direito fundamental a viver uma vida livre de violência física, psíquica e ética.