Não pegue no peito de Julieta!
sexta-feira, 5 de dezembro de 2025
Atualizado em 4 de dezembro de 2025 09:40
Viajar amplia horizontes, mas, às vezes, também escancara aquilo que já sabemos, que a violência contra as mulheres e meninas não conhece fronteiras.
Ao entrar na casa de Julieta, em Verona (Itália), me deparei com uma cena terrível: um homem pegando no peito dela.
Mas não era somente ele. Na visita à famosa estátua de Julieta é impossível não notar o ritual turístico que se consolidou, que é ver pessoas passando a mão no peito de Julieta como promessa de sorte no amor.
O desconforto que senti, assim que entrei no pátio da casa, ao ver um homem tocando no peito da estátua de julieta (uma criança de 13 anos), é uma lembrança incômoda que carrego. E, por isso, aqui escrevo. E faço isso no período dos 21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra a Mulher.
Trago o exemplo de Julieta como emblemático de práticas que parecem inofensivas, mas que carregam forte simbolismo e produzem efeitos concretos. E o faço porque obviamente esse padrão não aparece apenas em Verona. Ele se repete quando meninos levantam saias de meninas, sob o pretexto de brincadeira; ou quando homens tocam mulheres em micaretas, sob a falsa escusa de que isso faz parte da festa.
Apesar do meu desconforto, o gesto de pegar no peito de Julieta se repete todos os dias, diante de milhares de câmeras, sem constrangimento, como se fosse inofensivo. Mas não o é porque produz e reproduz problemas sociais. Não custa lembrar que Julieta era uma criança que, no romance de Shakespeare, tinha somente 13 anos.
Portanto, o que se vende como folclore romântico é, na verdade, a naturalização da agressão e da objetificação sexual do corpo de uma menina, se reproduzindo a ideia de que o corpo está disponível ao toque, ao desejo e à fantasia dos outros (e dos pedófilos)!
Não sei a origem dessa prática, mas sei que ela é inaceitável. Afinal, a estátua é a representação de uma criança, que está sendo erotizada por meio de uma tradição turística extremamente reprovável! E, ainda que mulher adulta fosse, seria reprovável da mesma forma, pois não há consentimento.
E não estou sendo alarmista, pois esse tipo de conduta influencia o imaginário e é terreno fértil para todas as outras violências - ainda mais quando o contexto social é marcado por índices assustadores de feminicídio, violência sexual, assédio e pedofilia.
Por exemplo, no Brasil, as denúncias de abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes no Brasil cresceram 195% nos últimos quatro anos. Segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos, os registros recebidos pelo Disque 100 passaram de 6.380 em 2020 para 18.826 em 2024. Ou seja, no país, 13 meninas e meninos são vítimas de violência sexual, física ou psicológica a cada hora1.
Em nível mundial, a ONU alerta que cerca de 840 milhões de mulheres já sofreram violência física ou sexual ao longo da vida, e 316 milhões foram vítimas apenas no último ano2.
Para ilustrar a gravidade e a atualidade do problema, basta recordar dois episódios ocorridos recentemente no Brasil: 1) a prisão de um padrasto após criança de 7 anos relatar estupro3; 2) e o episódio em que um homem, marcado por um comportamento masculinista tóxico, agrediu violentamente sua então namorada e tentou estuprá-la4.
Não tenho dúvidas de que o gesto de passar a mão no peito da estátua fortalece sim o imaginário de que o corpo das mulheres é acessível, tocável e disponível. Ao romantizar essa agressão sexual em tom de brincadeira e convertê-la em atração turística, naturaliza-se uma lógica de violência que transborda para as vidas reais, reforçando a ideia de que a violação do corpo feminino pode ser tratada como algo trivial ou divertido.
Enquanto uma multidão ri, tira fotos e reforça a fantasia de que aquele toque trará sorte no amor, milhares de meninas e mulheres sofrem e lutam para provar que foram tocadas violentamente no mundo real (na rua, no transporte público, no trabalho, em casa...).
A fronteira entre o inofensivo e o violento é mais tênue do que parece. E esse é exatamente o ponto que não podemos ignorar, nem muito menos o Direito. No Brasil, inclusive, do ponto de vista jurídico, a proteção integral de meninas e mulheres é um dever constitucional e convencional.
Nesse sentido, o art. 227 da CF/88 impõe prioridade absoluta à proteção da criança e do adolescente. E o ECA erige a dignidade sexual como bem jurídico essencial - arcabouço que dialoga diretamente com o sistema internacional de proteção dos direitos humanos, que estabelece parâmetros para o combate a todas as formas de violência contra mulheres e meninas.
Por exemplo, a CEDAW - Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, ratificada pelo Brasil, obriga os Estados a adotar medidas para prevenir, investigar, punir e erradicar práticas discriminatórias que violem a integridade física, psíquica e sexual das mulheres.
Da mesma forma, a recomendação geral 35 do Comitê CEDAW reconhece que a violência de gênero, inclusive a violência sexual contra meninas deve ser enfrentada com políticas de prevenção, reparação e responsabilização.
Igualmente, a Convenção Interamericana de Belém do Pará reforça que toda mulher, independentemente da idade, tem direito a viver livre de violência, pública ou privada, e impõe ao Estado o dever de agir com a devida diligência para prevenir, sancionar e erradicar violações, incluindo abusos sexuais, exploração e práticas culturalmente naturalizadas que reforcem a desigualdade.
Em razão disso, temos a obrigação de modificar padrões socioculturais baseados em estereótipos de gênero, o que abrange, justamente, combater a erotização precoce, a objetificação de corpos femininos e a trivialização de atos não consentidos.
Afinal, quando tratamos como entretenimento aquilo que seria crime na vida real, perpetuamos um imaginário que legitima violências. E o enfrentamento passa, também, justamente por romper com essas narrativas, de modo a garantir que meninas e mulheres tenham o direito básico de existir sem medo.
__________________________
1 YAMAGUTI, Bruna. Denúncias de abuso e exploração sexual infantil crescem 195% nos últimos 4 anos. GloboNews, Brasília, 18 maio 2025. Disponível aqui. Acesso em: 25 de nov. 2025.
2 UNITED NATIONS. ONU diz que 840 milhões de mulheres já sofreram violência sexual ou física. ONU News - Perspectiva Global, Reportagens Humanas, 2025. Disponível aqui. Acesso em: 25 nov. 2025.
3 G1 BAURU E MARÍLIA. Padrasto é preso após criança de 7 anos relatar estupro em Promissão. 30 nov. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 3 dez. 2025.
4 O GLOBO. Influenciador Thiago Schutz é alvo de novo pedido de prisão após denúncia de agressão e tentativa de estupro. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 3 dez. 2025.

