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O ensino online e a lei de locações

Em um cenário de insegurança jurídica criado pelos novos serviços prestados por aplicativos e plataformas online de streaming, é importante que os contratos a serem celebrados sejam detalhados e evitem menções genéricas tais como "serviço educacional".

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Atualizado em 24 de setembro de 2019 16:41

Os avanços tecnológicos têm desafiado os interpretes do direito, que cada vez mais deparam-se com casos não abrangidos expressamente pelos diplomas legais, exigindo um esforço do ordenamento jurídico em responder aos novos casos que são postos diante dos juristas e trazer segurança às relações empresariais, que tornam-se cada vez mais dinâmicas, com empresários motivados pelo vasto desenvolvimento das mais diversificas startups nos mais variados setores, desde transporte particular de pessoas, locação de imóveis até no setor financeiro.

Campo peculiar diz respeito ao aumento exponencial do ensino online, sendo aquele oferecido por plataformas de streaming e cloud computing de cursos profissionalizantes ou mesmo ensino superior, que passam a utilizar de referidas ferramentas para reduzir seus custos operacionais e oferecer um serviço educacional que atinja um mercado estudantil em escala nacional, independentemente da existência de um local físico no qual existam salas de aula.

Entretanto, interessante que se observe as implicações jurídicas para uma instituição de ensino de ensino que preste seus serviços de forma exclusivamente online e seja inquilina de imóvel.

Aqui, o recorte temático será sob a perspectiva da lei de locações.

As instituições de ensino desfrutam de regime especial originado dos artigos 53 e 63, §3º da lei 8.245/91, o qual restringe as hipóteses de despejo/rescisão de contrato de inquilinos em condições especiais, incluindo nessas condições hospitais, entidades religiosas, asilos, estabelecimentos de saúde:

Art. 53 - Nas locações de imóveis utilizados por hospitais, unidades sanitárias oficiais, asilos, estabelecimentos de saúde e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Público, bem como por entidades religiosas devidamente registradas, o contrato somente poderá ser rescindido

Art. 63. Julgada procedente a ação de despejo, o juiz determinará a expedição de mandado de despejo, que conterá o prazo de 30 (trinta) dias para a desocupação voluntária, ressalvado o disposto nos parágrafos seguintes. (.) § 3º Tratando-se de hospitais, repartições públicas, unidades sanitárias oficiais, asilos, estabelecimentos de saúde e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Público, bem como por entidades religiosas devidamente registradas, e o despejo for decretado com fundamento no inciso

IV do art. 9º ou no inciso II do art. 53, o prazo será de um ano, exceto no caso em que entre a citação e a sentença de primeira instância houver decorrido mais de um ano, hipótese em que o prazo será de seis meses.

Assim, os estabelecimentos das instituições de ensino desfrutam de uma interessante salvaguarda legal que visa, em análise última, a proteção de vulneráveis que são, efetivamente, os destinatários finais dos serviços enunciados nos referidos diplomas legais.

Com essa interpretação, a jurisprudência tem expandido o conceito legal de "estabelecimentos de ensino" para além do conceito de mera sala de aula, mas abrangendo espaços de recreação infantil e berçários (Tribunal de Justiça de São Paulo, Recurso de Apelação nº 1047987-84.2015.8.26.0100, 38ª Câmara Extraordinária de Direito Privado, j. 31.01.2018.; Tribunal de Justiça de São Paulo, Recurso de Apelação nº 0077756-81.2006.8.26.0000, julgado em 12.08.2011).

De fato, a aplicação das benesses legais da Lei de locações exige o cumprimento cumulativo de dois elementos cernes: a configuração da prestação de serviços educacionais e a sujeição daquela atividade específica à fiscalização do poder pública competente.

A lei é interpretada sopesando o interesse social quanto a atividade desenvolvida e o direito de propriedade do efetivo dono do imóvel locado, sendo certo, pela interpretação dos tribunais, que a utilização de imóvel locado por instituição de ensino clandestina que opera ao arrepio de qualquer fiscalização, não está sujeita à proteção legal (TJSP, AC 1110726-93.2015.8.26.0100, rel. Campos Petroni, 27ª Câmara de Direito Privado, j. 04.04.2017).

SILVIO DE SALVO VENOSA foi um autor que dissertou sobre o tema de forma específica, concluindo que não basta o imóvel ser destinado ao ensino ou sofrer fiscalização genérica do poder público para se beneficiar dos termos da lei, destacando que "embora se amplie o horizonte protetivo, continuam fora dessa proteção os cursos que ministram aulas privadas ou conhecimentos que independem de qualquer autorização ou fiscalização, como corte e costura, cursos livres de informática, de arte, de atividade profissionalizante sem qualquer ligação oficial como escolas de cabelereiros, empregados domésticos, etc., assim como cursinhos preparatórios. Tais locações não albergam 'estabelecimentos de ensino', como quer a lei." (S. SALVO VENOSA, Nova Lei do Inquilinato, Doutrina e Prática, São Paulo, Atlas, 2001, pp. 193/194).

O autor escreveu seu renomado texto em 2001, não tratando do fenômeno da revolução computacional que já estava em curso, mas que hoje já alcança seu auge, mas já adiantando sua interpretação bastante restritiva do artigo 53 e 63.

A questão que se impõe hoje: as instituições de ensino online estão abrangidas pelo conceito de "instituições de ensino" previsto na lei do Inquilinato?

O TJ/SP proferiu entendimento a respeito de estabelecimento voltado para o ensino à distância, afastando a aplicação do artigo 53 da lei de Locações, entendo o legislador que o estabelecimento físico tratar-se-ia de "mero polo de apoio presencial".

O Tribunal entendeu que, no caso concreto, a desocupação do imóvel deveria ocorrer, sem a aplicação do artigo 53, entendo que o referido artigo deveria ser interpretado de forma restritiva: "a locatária se dedica ao ensino a distância, este que é marcado pela ida da escola ao aluno e não pela ida do aluno à escola, a não ser em ocasiões tão raras que ela para ele passa a ser, como bem demonstrou o locador, mero "pólo de apoio presencial mais próximo de sua região". Pois se assim é não incide o favor legal invocado pela recorrente, haja vista que a mudança de mero pólo de apoio e não de estabelecimento de ensino tradicional por força da retomada do imóvel que lhe foi dado em locação pelo recorrido em nada alterará o funcionamento do ensino a distância que promove e, por conseguinte, não trará qualquer prejuízo aos seus alunos (.)"

Note-se que o desembargador igualmente ponderou três pontos de relevância: (i) que a presença esporádica de alunos no estabelecimento não o caracterizaria como um estabelecimento de ensino; (ii) o atendimento de alunos ou a existência mesmo de aulas não o caracterizariam, per se, como incluído no rol do artigo 53 e (iii) o contrato de locação não previu, expressamente, que a atividade a ser desenvolvida no imóvel seria eminentemente de ensino.

No mesmo sentido foi julgado pelo Superior Tribunal de Justiça o Recurso Especial nº 1310960 em 04.09.2014 de relatoria do ministro Paulo de Tarso Sanseverino que, muito embora tenha tratado de estabelecimentos de saúde, assentou que a norma constante do art. 53 da Lei de Locações não alcança o local em que são desempenhadas atividades administrativas de estabelecimentos de saúde. Igualmente relevante destaca-se o Recurso Especial nº 158.856 de relatoria do ministro Hamilton Carvalhindo.

Assim, a locação de imóvel para fins meramente administrativos/burocráticos de instituição de ensino igualmente tem interpretação bastante restritiva, de forma que os empresários do ramo educacional e do ramo de locações deverão se atentar ao serviço a ser desempenhando no imóvel locado, devendo constar um descritivo das atividades a serem exercidas no local nos respectivos instrumentos contratuais, ressaltando se serão exercidos serviços via plataforma online, destacando se alunos frequentarão a unidade e qual a natureza do serviço físico a ser efetivamente prestado no imóvel locado.

Assim, entende-se que o serviço educacional oferecido por plataforma online não se confunde com a proteção conferido ao estabelecimento físico da instituição de ensino, sendo apenas abrangido pela proteção da lei do inquilinato se efetivamente existir atividade de ensino regularmente instalada no local.

Em um cenário de insegurança jurídica criado pelos novos serviços prestados por aplicativos e plataformas online de streaming, é importante que os contratos a serem celebrados sejam detalhados e evitem menções genéricas tais como "serviço educacional", optando por esmiuçar a atividade a ser desempenhada, esclarecendo, principalmente, a forma com que a atividade de ensino será prestada, se predominantemente física ou se predominantemente online.

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*Lucas Morelli é mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, advogado coordenador da equipe de contencioso estratégico do escritório Bueno, Mesquita e Advogados.

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