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Comentários sobre os reflexos do RESp1.608.005/sc no contexto da reprodução assistida e multiparentalidade

Constata-se que nada obstante o avanço da jurisprudência e da legislação, parte da sociedade ainda não compreendeu a extensão e a relevância das transformações e expansões do conceito de família.

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Atualizado em 12 de agosto de 2019 16:54

O presente artigo exibe breve análise do acórdão prolatado pela terceira turma do STJ, sob a relatoria do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, no âmbito do RESp 1.608.005-SC1, cuja tese foi objeto de publicação no Informativo de Jurisprudência 06492, datado de 21 de junho de 2019, e se revela esclarecedor da atual conjuntura do ordenamento jurídico brasileiro no que diz respeito à reprodução assistida e multiparentalidade. 

 A decisão em comento restou sumariada da seguinte forma: 

EMENTA: RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. UNIÃO HOMOAFETIVA. REPRODUÇÃO ASSISTIDA. DUPLA PATERNIDADE OU ADOÇÃO UNILATERAL. DESLIGAMENTO DOS VÍNCULOS COM DOADOR DO MATERIAL FECUNDANTE. CONCEITO LEGAL DE PARENTESCO E FILIAÇÃO. PRECEDENTE DA SUPREMA CORTE ADMITINDO A MULTIPARENTALIDADE. EXTRAJUDICICIALIZAÇÃO DA EFETIVIDADE DO DIREITO DECLARADO PELO PRECEDENTE VINCULANTE DO STF ATENDIDO PELO CNJ. MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. POSSIBILIDADE DE REGISTRO SIMULTÂNEO DO PAI BIOLÓGICO E DO PAI SOCIOAFETIVO NO ASSENTO DE NASCIMENTO. CONCREÇÃO DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. 

1. Pretensão de inclusão de dupla paternidade em assento de nascimento de criança concebida mediante as técnicas de reprodução assistida sem a destituição de poder familiar reconhecido em favor do pai biológico.

2. "A adoção e a reprodução assistida heteróloga atribuem a condição de filho ao adotado e à criança resultante de técnica conceptiva heteróloga; porém, enquanto na adoção haverá o desligamento dos vínculos entre o adotado e seus parentes consangüíneos, na reprodução assistida heteróloga sequer será estabelecido o vínculo de parentesco entre a criança e o doador do material fecundante." (Enunciado n. 111 da Primeira Jornada de Direito Civil).

3. A doadora do material genético, no caso, não estabeleceu qualquer vínculo com a criança, tendo expressamente renunciado ao poder familiar. 

4. Inocorrência de hipótese de adoção, pois não se pretende o desligamento do vínculo com o pai biológico, que reconheceu a paternidade no registro civil de nascimento da criança.

5. A reprodução assistida e a paternidade socioafetiva constituem nova base fática para incidência do preceito "ou outra origem" do art. 1.593 do Código Civil. 

6. Os conceitos legais de parentesco e filiação exigem uma nova interpretação, atualizada à nova dinâmica social, para atendimento do princípio fundamental de preservação do melhor interesse da criança. 

7. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento RE 898.060/SC, enfrentou, em sede de repercussão geral, os efeitos da paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, permitindo implicitamente o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseada na origem biológica. 

8. O Conselho Nacional de Justiça, mediante o Provimento n. 63, de novembro de 2017, alinhado ao precedente vinculante da Suprema Corte, estabeleceu previsões normativas que tornariam desnecessário o presente litígio.

9. Reconhecimento expresso pelo acórdão recorrido de que o melhor interesse da criança foi assegurado.

10. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. 

Na origem, os fatos envolveram o desejo de dois homens, que conviviam em união estável, em ter um(a) filho(a). Com esse objetivo em mente, procuraram uma clínica de fertilização e realizaram a inseminação artificial. Para tanto, a irmã de um deles se voluntariou para ser a mãe de substituição, bem como para doar parte do material genético necessário. O restante do material genético foi fornecido pelo outro parceiro (cunhado da doadora). 

Importante destacar que, a irmã, doadora do material genético e, ao mesmo tempo, gestante por sub-rogação, declarou estar cedendo o material genético para seu irmão e seu cunhado e renunciou expressamente ao seu poder familiar em relação ao nascituro, por meio de escritura pública.  

Após o nascimento da criança, o pai biológico e o pai socioafetivo postularam o reconhecimento da sua dupla paternidade, mantendo-se em branco os campos relativos aos dados da genitora, na medida em que a concepção ocorreu através de inseminação artificial heteróloga e, a gestação, por substituição. 

O juízo de primeira instância julgou procedente o pedido inicial, inclusive reconhecendo os genitores do pai biológico e do pai socioafetivo como avós paternos da criança. 

Irresignado, o Ministério Público de Santa Catarina interpôs recurso de Apelação3, reiterando o principal argumento levantado em sua contestação, de que a demanda se trataria de adoção unilateral e, portanto, deveria ser resolvida por uma Vara de Infância e Juventude, não pela Vara de Família. Sob a ótica do parquet, a demanda teria que ser tratada como adoção, pois o gameta da genitora deveria ter sido fornecido por doadora anônima para adequação à hipótese de reprodução heteróloga assistida. 

Aqui vale destacar, em síntese, que na reprodução assistida homóloga é utilizado somente o material biológico dos pais, pacientes da técnica. Já na inseminação intrauterina heteróloga, há a doação por terceiro de material biológico ou do próprio embrião. 

O apelo, entretanto, foi rejeitado, pois, para o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, seria irrelevante o fato de a doadora do óvulo, que também gestou a criança, não ser anônima. Segundo o Tribunal, tal formalidade não poderia representar um óbice para o reconhecimento do "status de filha [da criança gerada] e integrante legítima do núcleo familiar formado pelos pares homoafetivos". 

Mais uma vez inconformado, o Ministério Público interpôs RESp perante o Superior Tribunal de Justiça, sustentando violação aos dispositivos dos artigos 25, caput; 41, §1º; 50, §13º, I, todos da lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente); dos artigos 4º, I e II; 535, II, do revogado Código de Processo Civil, assim como do artigo 1.597, V, do Código Civil

À unanimidade de votos, a terceira turma do STJ negou provimento ao recurso, por entender que o caso diria respeito a uma reprodução assistida heteróloga, razão pela qual inexiste vínculo de parentesco ou filiação com o doador do material genético.  

Na decisão, a Corte da Cidadania mencionou o enunciado 111 da I Jornada de Direito Civil da Justiça Federal4, segundo o qual a reprodução assistida heteróloga é semelhante à adoção no que diz respeito à condição de filho(a) atribuída à criança gerada por meio da técnica conceptiva heteróloga, tal como se verifica no processo adotivo.  

O citado enunciado, porém, diferencia os institutos, pois na adoção são desligados os vínculos familiares entre o adotado e seus parentes consanguíneos, ao passo que na reprodução assistida heteróloga sequer será estabelecida a ligação entre a criança e o doador do material fecundante. 

O Superior Tribunal de Justiça ainda destacou a necessidade de se interpretar de forma extensiva o termo "ou outra origem", do artigo 1.593 do Código Civil, para abarcar os fenômenos sociais e tecnológicos da reprodução assistida e paternidade socioafetiva, por exemplo, como fontes de parentesco. 

Tal adequação da interpretação às realidades sociais, como bem pontuado pelo Eminente Relator, foi provocada em decisão anterior, proferida no ano de 2016 pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de Repercussão Geral, ao julgar o mérito do RE 898.060/SC5

Na oportunidade, o Pleno do STF, sob a relatoria do min. Luiz Fux, assentou que "a compreensão jurídica cosmopolita das famílias exige a ampliação da tutela normativa a todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar, a saber: (i) pela presunção decorrente do casamento ou outras hipóteses legais, (ii) pela descendência biológica ou (iii) pela afetividade", incluindo no polo de discussões as questões da parentalidade socioafetiva e da reprodução assistida. 

E, inspirado nesse posicionamento do Supremo, o Conselho Nacional de Justiça, visando à extrajudicialização e à efetivação dos direitos declarados pela Suprema Corte, editou em 2017 o provimento 636, dispondo, dentre outros temas, sobre a paternidade e maternidade socioafetivas e o registro de filhos havidos por reprodução assistida. 

Ou seja, após ao advento do provimento 63 do CNJ, demandas similares à resolvida no REsp  1.608.005-SC já possuíam solução na seara extrajudicial, de forma prática e eficiente. Inclusive, é importante observar que o citado provimento estabelece que devem ser adotadas medidas para responsabilização disciplinar dos oficiais registradores que se negarem a promover o registro de nascimento de filhos havidos por técnica de reprodução assistida quando presentes os requisitos do provimento. 

Portanto, constata-se que nada obstante o avanço da jurisprudência e da legislação, parte da sociedade ainda não compreendeu a extensão e a relevância das transformações e expansões do conceito de família. Todavia, o formalismo permeado de preconceitos não pode preponderar sobre fatos sociais, degringolando direitos já reconhecidos, nem sobre a existência de relacionamentos diversos do tradicional casamento heterossexual ou sobre a existência de organizações familiares diversas da clássica. 

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1 STJ, REsp 1.608.005/SC, Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 14/05/2019, publicação DJe em 21/5/19, por unanimidade.

2 Disponível aqui. Último acesso em 05/08/2019. 

3 TJ/SC, Apelação Cível nº. 2014.079066-9, relator: desembargador Domingos Paludo, Primeira Câmara de Direito Civil, julgado em 12/3/15. 

4 Disponível aqui. Último acesso em 05/08/2019.

5 STF, RE 898.060, repercussão geral reconhecida, relator:  ministro Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 21/9/16, publicação DJE em 24/8/17. 

6 Publicado no DJe em 17 de novembro de 2017, sob a lavra do ministro João Otávio de Noronha. Disponível aqui. Último acesso em 05/08/2019.

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*Fábio Antônio Correia Filgueira Filho é sócio-fundador do escritório Filgueira & Araújo Advogados.

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