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Cabeça de juiz, relações humanas e um pouco de vida selvagem

No ambiente civilizado das demandas judiciais há algo da vida selvagem. Ali, um deslize do predador pode transformá-lo em presa.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Atualizado às 10:54

Em meados de 1995, eu estava começando minha carreira como advogado, trabalhando no departamento jurídico de um banco, em Fortaleza, e fui designado para passar uma temporada no núcleo jurídico de Teresina, onde deveria substituir um colega que estava de férias.

Os advogados mais novatos sempre eram mandados para esse tipo de seviço, sob o argumento de que era uma ótima oportunidade para se adquirir experiência. E foi assim mesmo que encarei a missão de exercer a advocacia em outra cidade, capital de outro Estado, sem conhecer as pessoas ou os costumes do local.

Encontrei menos dificuldades do que imaginava, mas tremi quando o meu chefe em Teresina mandou que eu fosse para mais longe ainda:

- É uma audiência em Caxias - disse ele. - Você pode ir no seu carro. Dorme lá e no dia seguinte faz a audiência, às nove da manhã.

A cidade de Caxias fica no Maranhão, mas é muito longe da capital, São Luís - uns trezentos e cinquenta quilômetros - por isso era atendida pelos advogados de Teresina, distante apenas setenta quilômetros.

Recebidas as instruções, fiz cara de "deixe comigo" e, na véspera da audiência, peguei a estrada. O coração ia apertado, reconheço. Pela primeira vez, eu não teria um colega mais experiente por perto. Se algo desse errado, se surgisse alguma dúvida, eu não teria a quem recorrer. Telefone celular e Internet já existiam, mas não tinham a cobertura que têm hoje.

Pouco antes do sol se por, cheguei a Caxias. Acomodei-me em um hotel onde passaria a noite e, no dia seguinte, compareci ao fórum. Aguardava a chamada para a audiência, quando chegou o advogado da outra parte no processo, acompanhado de seu cliente.

Ali estava meu colega e meu adversário. Uns vinte anos mais velho (eu tinha vinte e nove), falava e se movimentava como se estivesse em seu próprio escritório. Demonstrava estar à vontade e conhecer a todos, desde o porteiro do fórum ao servidor mais graduado.

Senti que a situação me era desfavorável. Não bastasse a minha inexperiência, eu era apenas um estranho, vindo sabe-se lá de onde, defendendo o odiado sistema financeiro contra um empresário local, provavelmente dotado de influência econômica e política na cidade.

Mas, não tive tempo de pensar muito nessas coisas. Poucos minutos depois da hora marcada, foi feita a chamada e entramos na sala de audiência. Acomodei-me por ali, no lado da mesa indicado pelo servidor que auxiliava o juiz.

Meu colega-adversário, prosseguindo em sua demonstração de bons relacionamentos forenses, cumprimentou efusivamente o juiz, apertando-lhe a mão enquanto lhe dava tapinhas em um dos ombros.

Apesar do pouco entusiasmo do magistrado em corresponder ao cumprimento, o advogado falava com ele como se fossem velhos amigos e, antes que a audiência começasse, começou a comentar sobre outro processo, aparentemente, a cargo de outro juiz. Depois de falar alguma coisa quase sussurrando, disse sorridente ao juiz, elevando novamente a voz:

- Sabe como é, né, excelência? De cabeça de juiz e de bunda de menino, a gente não sabe o que é que vem...

O juiz não sorriu. Também não se mostrou irritado. Simplesmente, olhou para o advogado com total indiferença e disse, lenta e pausadamente:

- Desses dois aí, doutor, mais cedo ou mais tarde, acaba vindo sempre alguma merda...

O advogado ficou sem graça. Percebi que ele tentava dizer alguma coisa que afastasse o mal estar gerado pela situação, mas, nada lhe ocorria.

O juiz aproveitou o silêncio que se fez e iniciou a audiência. Eu, percebendo o desconforto que se instalou em meu colega-adversário, recuperei a auto-confiança e passei a defender os meus pontos de vista com tranquilidade e segurança. No final do ato, o caso não foi julgado, mas as provas ficaram bem favoráveis à tese do banco.

Mais tarde, quando estava na estrada, novamente sozinho, pensei sobre tudo aquilo e senti que não havia gostado da conduta do advogado. Apesar de o dito popular ser bem conhecido, não é o tipo de coisa que um juiz gosta de ouvir, ainda mais na hora em que se prepara para começar uma audiência.

Se bem que o juiz também não precisava ser tão seco na resposta. A audiência é um momento que, por si só, já é tenso, pelo fato de haver ali interesses contrários sendo discutidos. Não precisava aumentar mais ainda essa tensão, só porque o advogado foi infeliz ao tentar ser engraçado ou espirituoso.

A minha grande lição naquele dia foi me portar nas audiências de maneira afável, mas, mantendo sempre certa formalidade no tratamento. Se é inevitável algum tipo de animosidade, que esta se limite aos que têm o seu direito sendo decidido, sem envolver os profissionais que estão cuidando disso.

Mas, confesso que gostei de ver o meu experiente colega escorregar e perder a desenvoltura que exibia no começo. Isso é algo que me fascina até hoje na vida forense. No ambiente civilizado das demandas judiciais há algo da vida selvagem. Ali, um deslize do predador pode transformá-lo em presa.

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* Marcos Mairton é escritor, compositor e juiz Federal.

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