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A política exige o diálogo

As manifestações de rua em junho de 2013 foram verdadeiro apelo desesperado de diálogo da população com os governantes.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Atualizado em 16 de agosto de 2013 12:07

Desde que desceu ao Hades, Sófocles não foi citado com tanta propriedade como no artigo de Carlos Melo e Eugênio Bucci publicado na Folha de S.Paulo em 13 de agosto passado:

"Só o governante que respeita as leis de sua gente e a divina justiça dos costumes mantém sua força porque mantém sua medida humana. Em mim só manda um rei: o que constrói pontes e destrói muralhas."

As manifestações de rua em junho de 2013 não passaram de um apelo desesperado de diálogo da população com os governantes de plantão. Não estava em jogo o aumento irrisório das passagens de ônibus, e sim o desamparo do povo com as medidas de faz-de-conta das autoridades entregando os habitantes da cidade e do país ao Deus-dará. "Assim como a liberdade exige as ruas e as praças, a política exige o diálogo" (Melo e Bucci).

Como é que respondeu o governo ao apelo desesperado das ruas? Teria que apurar sua capacidade de ouvir e estabelecer um diálogo de verdade, com espírito desarmado, como quem se indaga "onde foi que eu errei?" Não foi o que aconteceu. A presidente Dilma, instruída pelo seu marqueteiro, respondeu - como dizem os articulistas - com o sectarismo ideológico em forma de propaganda, demonstrando total frieza, insensibilidade e falta de senso de oportunidade. Em vez de construir pontes com as ruas, reforçou as muralhas que separam o governo da sociedade. Recaiu no monólogo da autossuficiência, em vez de se abrir ao diálogo entre correntes diversas.

Para demonstrar a possibilidade do diálogo entre pontos de vista diversos e diferentes posições ideológicas, os autores do texto dão eles mesmos o exemplo: "Este artigo só foi possível graças ao diálogo entre pontos de vista distintos", maneira elegante de reconhecerem que não lêem rigorosamente pela mesma cartilha, mas mesmo assim podem colaborar na mesma tese.

Concórdia não significa consenso. A concórdia nasce e é produzida pelo atrito das divergências dentro do denominador comum das mesmas crenças, por exemplo, a democracia.

Já que se começou invocando o nome de Sófocles, vamos lembrar aqui outro grego: Políbio (208-126 a.C), o genial historiador grego que explicou a história de Roma aos romanos. Quem interpreta seu feito é Ortega: "Enquanto os Estados helênicos constituíram-se quase sempre por obra de um só homem - Licurgo em Esparta, Sólon em Atenas - sacando de suas cabeças as instituições pátrias, mediante a magia da razão raciocinante, 'os romanos - diz Políbio - lograram a perfeição de sua constituição pátria, não em virtude de raciocínios e sim através de numerosas lutas e no manejo dos assuntos, extraindo o conselho melhor da clara intuição das peripécias' (Ortega y Gasset, Del Imperio Romano).".

Em outras palavras, a luta de classes em Roma e a falta de segurança social que dela resultou, forçou o pacto entre o povo e os poderosos, do qual resultou relativa paz social. Cícero, discípulo de Políbio, aprendeu a lição, reconhecendo nas "dissenções civis" a condição mesma em que se funda e da qual emerge a saúde do Estado. Por onde se vê, historicamente, que é do embate entre as divergências que brota e floresce a concórdia social, fruto da luta entre os dissensos.

Por fim, permito-me reparar ainda que a denúncia da "corrupção" gritada e escrita nas manifestações de junho não se limita a receber ou dar propina, não envolve forçosamente dinheiro. Refere-se à outra corrupção mais profunda e danosa: a deterioração das relações dos governantes com o Estado, apropriando-se do público em seu proveito, como se privado fosse, e pior ainda, provocando a degeneração do projeto de país em projeto de poder, sem limite no tempo e no arbítrio.

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* Gilberto de Mello Kujawski é procurador de Justiça aposentado, escritor e jornalista.

 

 

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