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A liquidez baumaniana da Constituição brasileira

A única saída para reconstruir a verdadeira rigidez constitucional e tornar a Carta Magna menos suscetível às intempéries desta pós-modernidade baumaniana vai muito além da formulação de cláusulas pétreas. É preciso guiar o barco para fora da corrente.

sábado, 7 de setembro de 2013

Atualizado em 6 de setembro de 2013 11:49

Lembro-me da minha primeira aula na faculdade de Direito. Um sujeito alto, nos seus cinquenta e alguns anos, entra na sala envergando um paletó marinho de seis botões, daqueles dos anos 90, e uma gravata vermelha - a qual ele usaria durante todo o meu curso - impecavelmente ajustada à gola. À mão, possuía um exemplar da Constituição. Puxou a cadeira, sentou, abriu o livreto e cruzou as mãos sobre a boca. Com sua voz rouca e seu sotaque polaco, começava a falar um dos maiores admiradores da Constituição que já conheci.

A paixão daquele homem ao discorrer sobre os valores humanos que inspiraram a Constituição cidadã de 1988 era inebriante, contagiosa. Tratava sobre direitos fundamentais e direitos sociais, sobre a dignidade da pessoa e as diferentes gerações que conquistaram estas marcas. Era nostálgico e romântico ao narrar as conquistas de um povo oprimido, ainda que estas fossem meramente formais. E eu ali, aos meus dezessete anos, começava a sentir florescer no peito o verdadeiro significado da democracia: não se trata do governo da maioria, mas sim da defesa das minorias, e neste aspecto faço expressa referência à judicatura de Celso de Mello.

No dia seguinte, um senhor já de certa idade entra pela mesma característica porta laranja (esta cor é uma das peculiaridades da Estadual de Londrina). Desta vez, o paletó era de corte inglês, e o relógio brilhava quando aparecia sob a manga esticada nas hiperbólicas gesticulações. Seu tom era austero, quebrado apenas por uma extrema cordialidade que poucas vezes testemunhei na vida. Falou de hermenêutica, e de como ela poderia ser usada para o bem e para o mal. Disse que era juiz aposentado e que militara na juventude estudantil católica. Contou de uma viagem à Cuba na qual testemunhou livrarias e bibliotecas forradas de prateleiras, porém pobres de livros - as obras que (timidamente) ocupavam as estantes eram tão-somente as permitidas pelo regime.

Percebi que, apesar das diferenças diametrais entre um e outro, a devoção pela Constituição era algo que os aproximava como nada poderia fazer. Do mesmo modo, bradavam inflamados quando mencionavam os ataques incessantes à Carta Magna por aqueles que tentavam moldá-la aos seus interesses, não respeitando a perenidade sadia que deve possuir a lei fundamental de um país.

Assim como meus professores, o legislador constituinte tinha plena ciência da instabilidade democrática de um Brasil que não estava tão acostumado assim à democracia. Por isso, engendrou uma Constituição que possuísse a rigidez correspondente ao nosso histórico conturbado.

Uma Carta Magna rígida é aquela que exige que o procedimento para a alteração de seu conteúdo seja mais complexo e mais severo do que o aplicável às leis infraconstitucionais. Através da imposição de um modelo especial e rigoroso de modificação, a Constituição erigiu para si um arcabouço contra o influxo de anseios efêmeros ou de subterfúgios incompatíveis ao Estado Democrático de Direito. Assim, pretendeu-se proteger muito mais que o texto escrito, mas a Constituição material, ou seja, a parte essencial do Texto Maior, compreendida como as normas garantidoras de direitos fundamentais e aquelas que definem os contornos do Estado.

Mas a história constitucional brasileira revela uma grande fluidez da ordem vigente, em contraposição à estabilidade que deveria vigorar sobre a Lei Fundamental. Prova disto são as diversas emendas à Constituição em apenas 25 anos de existência (até agora foram 74 - quase três por ano - sem mencionar as PECs em tramitação). A que se deve esta constante e incessante modificação?

Zygmunt Bauman, notável sociólogo polonês, discorre sobre a pós-modernidade que vivenciamos, a qual ele prefere denominar Modernidade Líquida. Segundo Bauman, "os fluidos [.] não fixam espaço nem prendem o tempo. Enquanto os sólidos têm dimensões espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significação do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo ou o tornam irrelevante), os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-la"1. É por isto que Bauman representa os tempos atuais como líquidos. A primeira modernidade, que veio a colocar todos os sólidos no cadinho, transformou-se numa pós-modernidade que não possui mais nada de sólido: nem indivíduo, nem sociedade. Todas as barreiras foram derrubadas não para a conquista de territórios, mas para o livre fluxo dos novos poderes e para o trânsito do ser numa corrente líquida que o carrega sem que ele possa - ou queira - definir o destino.

A esta modernidade líquida não interessa a rigidez constitucional, justamente porque entrava a articulação dos interesses que naquele - e provavelmente somente naquele - momento interessam a um grupo ou até mesmo à sociedade integralmente considerada. Se hoje o brasileiro vivente dos tempos fluidos julga a rechaçada PEC 37 inconcebível, amanhã a corrente líquida irresistível poderá tragá-lo a abraçar Lourival Mendes como um visionário republicano - assim como o tragou à promessa militar em 64.

A patologia da fluidez constitucional das inúmeras emendas afeta a classe política porque afeta o eleitor. A liquidez dos tempos é endêmica, e o modo de contágio é a ausência de educação sólida. Luc Ferry, pensador francês e ex-ministro da educação no governo Raffarin, entende que o indivíduo deve ser educado através das obras, da lei e do amor2. Para ele, a ausência das grandes obras literárias e filosóficas na educação priva o homem de compreender a si e ao mundo e o impede de desenvolver os esquemas intelectuais que o fariam se localizar; a falta da educação na lei o exclui do espaço público da civilidade; e, por fim, a inexistência do amor nos primeiros anos dificultará a capacidade de resistência diante das dificuldades.

No Brasil, a educação - desnecessário dizer - é inócua e relegada a quinto plano. Todos os três vetores educacionais descritos por Ferry são deficientes, se não inexistentes. Não tecerei considerações sobre o que leva o Poder Público a tratar a educação com tamanho descaso, pois confiarei no tato do leitor. O que importa, aqui, são os efeitos desta educação não-sólida para a estabilidade constitucional.

Com efeito, o indivíduo que não se constrói numa base educacional fundante torna-se protagonista e fantoche da modernidade líquida baumaniana. Assim, no Brasil, eleitor e parlamentar estão no mesmo barco, embora não o saibam: a diferença é que um abre as velas enquanto o outro maneja o timão - o eleitor, que poucas vezes sabe o que quer e menos ainda reivindica o que for de seu eleito (isto se se lembrar de quem elegeu, pois a escolha também é fluida) - outorga ao parlamentar o poder de mutilar a rigidez constitucional em nome dos interesses líquidos que transitam como relevantes para um grupo ou para o povo naquele momento. Se, de um lado, o eleitor transfere o poder ao parlamentar para que defenda as ideias e projetos que o seduziram, por outro, o eleito se aproveita da liquidez políticossocial para alterar o seio da Constituição e modificar as figuras que se contraponham àquilo que seja de alguma inspiração volátil. E, desta forma, a Constituição brasileira torna-se uma colagem de vários pedaços provenientes de diferentes estágios da liquidez. Em síntese literária, um monstro de Frankenstein jurídico.

O grande risco da liquidez em matéria constitucional é mesmo este: tornar a Lei Maior um documento tão absorvente desta fluidez que, em determinados momentos, direitos e garantias venham a ser suprimidos em prol de um interesse efêmero como borboleta. E, uma vez encurralados ou expurgados da Constituição e superado aquele interesse, dificilmente estes direitos serão restabelecidos, deixando desprotegidos principalmente aqueles que não têm nem a vela nem o timão ao alcance.

A única saída para reconstruir a verdadeira rigidez constitucional e tornar a Carta Magna menos suscetível às intempéries desta pós-modernidade baumaniana vai muito além da formulação de cláusulas pétreas. É preciso guiar o barco para fora da corrente.

Garantir ao político e, principalmente, ao cidadão eleitor a educação sólida nos moldes que Ferry tão bem descreveu ensejará a construção de uma sociedade formada por indivíduos mais hidrofóbicos. E, se a própria sociedade repele o líquido, sua Constituição está protegida.

Hoje, os fluidos ajudaram a destinar 75% dos royalties do petróleo à educação. Mas as manifestações que orquestraram esta conquista já escorreram, como tudo nesta pós-modernidade. Resta saber por quanto tempo aqueles que estão por detrás do timão vão mantê-lo guinado nesta direção.

Enquanto isto, a Constituição permanece à deriva dos influxos torrenciais.

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1 Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001 p. 8.

2 Revolução do Amor. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. p. 220.

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* Gustavo Rossetto Mendes Batista é acadêmico de Direito da Universidade Estadual de Londrina.

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