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Efeitos previdenciários em concubinato de longa duração

Miriam Canegusuco

Relações jurídicas contemporâneas e determinados atores sociais não podem ficar à deriva do Estado-juiz e do Estado-administração, bem como do legislador e do operador do direito e à míngua de qualquer tutela.

sábado, 12 de abril de 2014

Atualizado em 10 de abril de 2014 16:35

No início de março de 2012, o Ministro Relator Luiz Fux, do STF, reconheceu tema de repercussão geral relacionado à possibilidade de haver efeitos previdenciários em concubinato de longa duração, no RExt 669.465.

A questão constitucional suscitada foi provocada pela sentença que reconheceu direitos previdenciários à concubina de segurado do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, que determinou que a pensão por morte fosse rateada entre a concubina e a viúva do falecido, decisão mantida pela turma recursal dos Juizados Especiais Federais do Espírito Santo. No caso, a concubina conviveu por mais de vinte anos com o segurado, em união pública e notória, apesar de ser casado, tendo com ele, inclusive, um filho.

Sem adentrar em questões ideológicas, filosóficas, religiosas etc., fato é que exsurgem da realidade social muitas situações inusitadas não previstas e regradas pelo ordenamento jurídico que, por óbvio, está sempre aquém dessas novas conformações surgidas do substrato fático. Por óbvio, porque resta impossível à atividade estatal legiferante acompanhar, pari passu e a tempo real, todas as vicissitudes que se operam, notadamente, no plano social e cultural. Aliás, muito ao contrário, é de se reconhecer muitas vezes descompassada e bastante serôdia tal atividade.

Cediço que, no plano previdenciário, inexiste proteção de cobertura para a concubina de segurado com quem mantinha relacionamento em razão dos infortúnios morte (pensão por morte) e prisão (auxílio reclusão), nos termos do artigo 16 da lei 8.213/91, especialmente na qualidade de dependente de primeira classe. No inciso I do referido dispositivo apenas se incluem o cônjuge, o companheiro (também aquele oriundo das relações homoafetivas) e os filhos, desde que sejam não emancipados, menores de 21 anos, ou ainda inválidos ou que tenham deficiência mental ou intelectual, declarada judicialmente, que os torne absolutamente ou relativamente incapazes.

Não obstante, relações jurídicas contemporâneas e determinados atores sociais não podem ficar à deriva do Estado-juiz e do Estado-administração, bem como do legislador e do operador do direito e à míngua de qualquer tutela. Nesse passo, é de se reconhecer a existência de muitas relações concubinárias duradouras, contínuas, em que há, inclusive, prole em comum, além de dependência econômica e ampla publicidade.

Se algumas relações familiares não são delineadas e tratadas constitucionalmente e/ou infraconstitucionalmente de forma expressa - como no caso concreto derivado do RExt 669.465 - que ganhou repercussão geral - por outro lado, tais formas familiares e de vida são de reconhecimento público e notório da sociedade.

Ora, se no plano fático a sociedade reconhece várias uniões de natureza concubinária, coexistindo com o casamento ou mesmo com a união estável, o ordenamento jurídico não pode "vendar os olhos" (expressão em nada comparável com a venda dos olhos da deusa da Justiça, Themis, que representava a equidade e a humanidade) para essas relações. Não há que se deixar à margem gama considerável de relações jurídicas, ou seja, sem tutela alguma, ao argumento de ofensa ao § 3º do artigo 226 da Constituição Federal.

Não reconhecer o direito à pensão por morte da concubina que, por longos vinte ou trinta anos conviveu, pública e notoriamente, com o "de cujus", mas que, em vida permaneceu também casado, é instrumentalizar concretamente a violação à máxima multimilenar de Ulpiano: "suum cuique tribuere" (que, do ponto de vista do que seja direito, na equivocidade e multifacetariedade do vocábulo, melhor representa o justo sentido).

Muitas relações concubinárias, como no caso em debate, embora denominadas impuras, adulterinas, não merecem a exclusão da qualidade de dependente do segurado ao fundamento de absoluta ausência de previsão legal, sendo a melhor solução o rateio da renda mensal do benefício, junto com outros integrantes da mesma classe.

Ademais, a partilha da pensão por morte entre a esposa e a concubina somente corrobora a vontade do "de cujus" que, enquanto vivo, partilhou sua vida extrapatrimonial e patrimonial com ambas, verificável pela coexistência "in concreto" do casamento e do concubinato por longos anos.

Dar amparo e operabilidade a certas situações não reguladas expressamente pela ordem jurídica, como, v.g., a do RExt 669.465, não é agasalhar o instituto da poligamia ou aquiescer com as relações denominadas concubinárias, impuras ou espúrias ou, mesmo desprestigiar a "família" em seu conceito tradicional ou vislumbrar minus o casamento.

Em verdade, o que é preciso, daí o reconhecimento providencial da repercussão geral, é não deixar "marginalizadas" do ordenamento jurídico, contemporâneas relações jurídicas que nascem do substrato fático, em razão do sobreprincípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) e da isonomia substancial.

Diante desse quadro:

* Não podemos nos olvidar das grandes transformações que se operam nas relações familiares hodiernas; do conceito de per si do que seja a família na Pós-modernidade; da gama plural das entidades familiares e da plêiade de situações daí advinda; da inserção de valores outrora não judicializados (v. g., a afetividade) etc.

* Diante de tantas vicissitudes, não podemos deixar de nos debruçar reflexivamente para empreender a melhor operabilidade de todos esses consectários que têm gênese nas relações familiares e que, de forma revérbera, atingem a esfera previdenciária, a esfera sucessória etc., também com o sensível cuidado de evitar que o Poder Judiciário se transforme em legislador positivo, ferindo sua competência constitucionalmente estabelecida.

* Por fim, a análise não deve ficar adstrita ao mero debate "contra legem" ou "omissus legem" da controvérsia, mas, sim, ampliar-se em direção a uma hermenêutica sistêmica, axiológica, histórica e teleológica do ordenamento jurídico ora em vigor, à míngua de tratamento expresso. Deve-se levar em conta, notadamente, a causística para realizar, eficaz e proativamente, a melhor justiça e manter a dignidade da pessoa, principalmente, lembrando o fundamental desiderato social do sistema previdenciário em propiciar meios indispensáveis à subsistência e à manutenção do indivíduo e sua prole.

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* Miriam Canegusuco é especialista em Direito Público; mestre em Interesses Difusos e Coletivos e professora em cursos de Pós-graduação.

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