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Crise energética, despacho de termelétricas e regulação por penalidades

Rodrigo Bernardes Braga

Os geradores começam a temer pelas penalidades contratuais, uma vez que o regime de regulação adotado pelo Brasil é o da penalização, e não do incentivo.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Atualizado em 14 de outubro de 2014 13:09

A caixa d'água brasileira, a saber: o subsistema sudeste/centro-oeste, que responde por 70% da capacidade de armazenamento da energia hidrelétrica, anda com os seus reservatórios em níveis muito críticos, semelhantes ao fatídico ano de 2001 quando o país enfrentou talvez a sua pior crise de abastecimento. Para piorar, a nossa capacidade de armazenamento só vem deteriorando nos últimos tempos, sobretudo em função do aumento do consumo. O que o país experimenta é um prolongado período de seca e preços de liquidação de diferença (PLDs) altamente apreciados.

Fundamentalmente, o que mudou de 2001 para os dias atuais foi a capacidade de geração termelétrica, que passou de 7,7% de participação em 2001 para 19,1% de participação na geração em 2014. Portanto, um aumento substancial do parque termelétrico na matriz energética, o que levou o governo a chamar o modelo de hidrotérmico. A capacidade instalada das termelétricas hoje é da ordem de 36.378 MW, mas o Operador Nacional do Sistema (ONS) tem em seu poder a capacidade de acionar apenas 21.249 MW deste total.

No modelo hidrotérmico, o ONS procura otimizar operacionalmente o sistema de maneira que o custo seja o menor possível, e nesse processo busca o regime ótimo de operação intercalando os despachos dos geradores térmicos e hidráulicos de acordo com os períodos hídricos. Em épocas desfavoráveis, como a que estamos atravessando, os geradores termelétricos são despachados para garantir a segurança energética, um dos pilares do setor. Nesse contexto, a modicidade tarifária é sacrificada.

Parece que os despachos de termelétricas vão ser uma constante com a qual o consumidor terá que lidar daqui para frente. Daí a importância de uso de térmicas com custos operacionais mais baixos a fim de que a energia não seja um fator impeditivo para a competitividade das indústrias brasileiras no futuro.

Muitos vão se lembrar que a construção dessas usinas foi estimulada pouco antes da crise de 2001 quando o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso já observava a criticidade dos níveis dos reservatórios. Foi instituído o programa que ficou conhecido pela sigla PPT (programa prioritário de termeletricidade). Alguns incentivos foram concedidos, inclusive com acesso aos recursos do BNDES para financiar as novas plantas. Também era permitido o mecanismo do "self-dealing" (auto-contratação) pelo qual uma distribuidora poderia comprar energia mais cara de uma termelétrica pertencente ao mesmo grupo econômico e repassar todo esse custo ao consumidor. Houve um caso famoso em que uma distribuidora chegou a pleitear reajuste de 57% para a ANEEL, deixando de comprar energia a aproximadamente R$ 60 o MWh (megawatt hora) para comprar a R$ 137 da geradora de seu grupo econômico. Diante desses conflitos de interesse o "self-dealing" foi eliminado. A Lei 10.848/04 determinou que as concessionárias, permissionárias e autorizadas de distribuição, detentoras de ativos de geração ou de transmissão, segregassem esses ativos em empresas distintas.

No chamado ambiente de contratação regulada (ACR), também conhecido como o mercado das distribuidoras, a contratação de energia é precedida de leilões de energia nova e energia existente. As distribuidoras obrigam-se a adquirir a energia nos leilões para atender a totalidade de seus consumidores cativos, aqueles que não podem comprar energia de terceiros. Há duas modalidades de contratação de comercialização de energia no ambiente regulado (CCEAR) que podem ser: por quantidade ou por disponibilidade de energia elétrica.

Na primeira modalidade as distribuidoras compram a energia ofertada e o risco de entrega (volume) é do vendedor. Neste caso, os riscos hidrológicos e financeiros são assumidos pelo gerador. São as hipóteses típicas de empreendimentos hidrelétricos que, ao tempo do leilão, ofertam o preço considerando os custos de operação e manutenção, financiamento e remuneração do seu capital.

Já na modalidade disponibilidade - aplicável às usinas termelétricas - o empreendedor é remunerado pelos custos incorridos para a implantação e manutenção da usina, mas o custo de operação é transferido aos compradores (pool de distribuidores), garantido o repasse aos consumidores. Veja-se que o ônus recai sobre as distribuidoras que podem repassar aos seus consumidores mediante reajuste tarifário em momento posterior. Nesta modalidade contratual é garantida uma renda fixa anual ao gerador paga pelas distribuidoras a título de "aluguel" da usina (custos fixos + depreciação + remuneração do capital investido). Inclui-se nesse custo o valor da inflexibilidade declarada que corresponde a uma parcela mínima de geração para que a usina mantenha as suas condições de operacionalidade. Na hipótese de despacho pelo NOS, as distribuidoras devem assumir ainda o custo variável declarado pelo gerador no leilão acima da inflexibilidade. A grande diferença é que na modalidade "disponibilidade de energia elétrica" os geradores recebem pela quantidade de energia assegurada, e não com base na energia efetivamente gerada. Em outras palavras, a energia assegurada, também conhecida como energia firme ou garantia física da usina, é calculada pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) tomando por base a potência total da usina, as taxas de indisponibilidade forçada e programada declaradas pelo empreendedor, entre outros fatores. Em tese, quanto maior for o custo variável, menor a garantia física atribuída pela EPE à usina, o que significa menor probabilidade de despacho pelo ONS.

No entanto, dado o estágio de período seco prolongado, esse critério acaba sendo irrelevante, pois a ordem de mérito dos despachos (do menor para o maior custo variável de operação das usinas) não passa de uma ficção, pois todas as térmicas estão despachadas no momento, podendo ensejar inclusive uma inversão da ordem dos despachos, caso necessário.

Como se disse, muitas usinas termelétricas que foram concebidas para não operar, servindo como energia de back up, estão hoje operando em sua capacidade total, obrigando os empreendedores a honrar a garantia física a que se obrigaram ao tempo do leilão. Dito de outra forma, cabe aos geradores honrar o compromisso de manter a disponibilidade contratada no leilão, ficando sujeitos a penalidades caso os índices de disponibilidade da usina sejam inferiores aos valores contratados. É possível que, ao tempo do leilão, o empreendedor tenha subestimado o efeito da garantia física por considerar remota a hipótese de despacho. Ocorre que a situação atual onde os geradores estão sujeitos a despachos permanentes, a consequência mais direta é o uso contínuo dos equipamentos de geração, forçando paradas de emergência e manutenções não previstas. Com isso, os geradores começam a temer pelas penalidades contratuais que são seríssimas, uma vez que o regime de regulação adotado pelo Brasil é o da penalização, e não do incentivo.

O CCEAR por disponibilidade criou um regime de penalidades contratuais para as situações de indisponibilidade ou de atraso na entrada em operação comercial da usina na temida cláusula 14, instituída para assegurar que os índices de indisponibilidade fiquem dentro dos valores de referência utilizados no cálculo da garantia física de cada usina. Nos CCEARs por disponibilidade assinados em 2005 havia previsão de ressarcimento do comprador cuja energia não fora entregue em razão de indisponibilidade. O valor de ressarcimento tomava por base o preço máximo do mercado de curto prazo, algo em torno de 4 a 5 vezes o valor da energia praticada no contrato. Adicionalmente, estipulava-se que a falta de combustível não poderia ser utilizada para justificar a não aplicação da penalidade prevista. A penalidade contratual também alcançava às cláusulas relativas à recomposição de lastro de geração. Se a indisponibilidade verificada fosse recomposta por meio de contratos bilaterais, ainda assim o empreendedor estaria sujeito às penalidades previstas na cláusula 14, como bem apontou Christiano Vieira da Silva (Contratação de Energia Elétrica: Aspectos Regulatórios e Econômicos, Grupo de Estudos do Setor Elétrico - UFRJ, Texto de Discussão n. 25).

Os CCEARs aprovados em 2009 e 2010 apresentam uma evolução quanto à aplicação dessas penalidades. Nas situações de atraso ou indisponibilidade, caso haja recomposição de lastro, não há mais aplicação da penalidade da cláusula 14. A penalidade prevista na cláusula 14 também foi alterada, passando o ressarcimento a ser proporcional às receitas auferidas pelo vendedor no contrato. A verificação mensal de valores de energia em montantes inferiores aos da energia contratada associada à declaração de inflexibilidade, apresenta tratamento a parte. Desde que não motivada por necessidade sistêmica, sujeita o vendedor a ressarcir ao vendedor os montantes não entregues pelo maior valor entre o PLD médio mensal ou o custo variável da usina.

Não sem razão a associação dos geradores termelétricos aponta que há situações em que seria melhor o agente gerador pagar o valor previsto em contrato para descontinuar a geração e fechar a usina do que ser submetido à penalização em vigor, com o atual nível de PLD. Isto mostra a inadequação das penas, afugentando os geradores térmicos tradicionais de participarem dos leilões de energia, pois se forem precificados estes riscos os preços seriam bem maiores, e obviamente, não atenderiam aos preços limites preconizados nos leilões.

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*Rodrigo Bernardes Braga é professor do LL.M Direito Corporativo do IBMEC/MG.

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