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Mudanças de paradigma no controle externo exercido pelos Tribunais de Contas

Débora de Assis Pacheco Andrade

TCE/SP adotou nova ferramenta destinada a mensurar a eficácia das políticas públicas municipais: o Índice de Efetividade da Gestão Municipal.

terça-feira, 12 de maio de 2015

Atualizado em 11 de maio de 2015 15:25

I. Introdução

Em artigo publicado recentemente no jornal "Folha de São Paulo"1, o Conselheiro Sidney Beraldo, do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, discorreu sobre a adoção de uma nova ferramenta pela Corte Paulista destinada a mensurar a eficácia das políticas públicas municipais.

De acordo com o Conselheiro, o IEGM - Índice de Efetividade da Gestão Municipal irá aferir anualmente o desempenho concreto da gestão de municípios paulistas através de sete índices: educação, saúde, planejamento, gestão fiscal, meio ambiente, cidades protegidas e governança em tecnologia da informação.

A expectativa é de que esse indicador auxilie a mensurar a situação de cada cidade e sua respectiva evolução (ou regressão) em itens que fazem parte do cotidiano dos moradores, como destinação do lixo, construção de creches, estímulo ao uso racional da água, bem como medidas preventivas adotadas na área da defesa civil contra desastres naturais.

Nesse contexto, esse artigo tem o propósito de discorrer sobre a mudança de paradigma do controle externo realizado pela Corte de Contas, antes focada precipuamente na fiscalização da gestão pública sob o prisma orçamentário, contábil e fiscal, para uma sindicância voltada à justiça social e à preservação do meio ambiente.

II. O viés socioambiental dos indicadores utilizados para aferir a gestão pública

Os estudos e as análises que subsidiaram a fixação dos indicadores que compõem o IEGM estão registrados em um relatório apresentado pelo TCE/SP em outubro de 2014. O documento traz a exposição dos motivos e a metodologia de avaliação para cada uma das 7 dimensões consideradas2.

Pelos quesitos propostos para compor a avaliação, nota-se o viés socioambiental dos questionamentos que serão submetidos aos gestores. O exame não se limitará a apurar a adequada aplicação dos recursos públicos ou a observância dos limites orçamentários. Mais do que isso, pretende-se saber a eficácia das medidas adotadas e o seu impacto na vida dos moradores de determinada cidade.

Na área da educação questiona-se, por exemplo, se a prefeitura tem o registro da idade média da frota escolar e do tempo gasto nas viagens desses veículos. Na área de saúde, questiona-se o tempo médio de espera para consulta em especialidade médica. Entre os indicadores da proteção da cidade, questiona-se se o Município, com mais de 20.000 habitantes, elaborou seu Plano de Mobilidade Urbana.

A partir dessa premissa é possível afirmar que para a aprovação das contas públicas pelo Tribunal não será mais suficiente demonstrar a legalidade do processo de contratação do transporte escolar, por exemplo. Mais do que isso, caberá ao gestor comprovar a adoção de medidas para preservar o bem-estar dos alunos da rede pública de ensino, através da utilização de ônibus em bom estado de conservação e de trajetos que não se alonguem demasiadamente.

De acordo com o Conselheiro, a mudança de paradigma no controle externo para além das questões econômico-financeiras aproxima-se do modelo adotado por Tribunais de Contas internacionais, como o da Alemanha e o da União Europeia, que priorizam o controle da eficácia das políticas públicas, com foco nos resultados obtidos, ao invés se aterem exclusivamente à sindicância de questões legais e procedimentais.

Os indicativos propostos pelo TCE/SP para aferir a eficácia da gestão pública lembram, guardadas as devidas proporções, o "FIB", ou Felicidade Interna Bruta, indicador adotado pelo Butão.

Trata-se de um índice de desenvolvimento social baseado em pesquisas que procuram mapear o que pode trazer felicidade para seu povo. O FIB estuda e analisa 72 itens, inclusive serviços pós-materiais, ou seja, pós-necessidades básicas de cada um: transcendência, amigos, família, lazer, saúde, Felicidade.

O país se tornou referência de nação em desenvolvimento ao colocar a conservação ambiental e a sustentabilidade no centro da política. Após aderir ao FIB, o Butão dobrou sua expectativa de vida, matriculou quase 100% das suas crianças em escolas primárias e reformulou sua infraestrutura.

A visão do Butão, as metas e os resultados alcançados foram o ponto de partida para que a ONU, com o apoio da comunidade internacional, recriasse o conceito do FIB para ser aplicado como forma de medir o desenvolvimento de comunidades e de colaborar para o crescimento e erradicação da pobreza em países em desenvolvimento.

Em julho de 2011, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou, por unanimidade, a Resolução 65/309, que reconhece a busca pela felicidade como uma "meta fundamental humana" e convidou o Butão a promover uma discussão com outros países sobre felicidade e bem-estar. Em 2010, o FIB do Butão estava calculado em 0,743, numa escala de zero a um. À luz dos critérios tidos em conta, 41% da população do Butão alcançou a felicidade.

Respeitadas as evidentes diferenças entre o FIB e o IEGM do TCE/SP, é possível afirmar que essas ferramentas têm como denominador comum a constatação de que índices baseados apenas em fatores econômicos são ineficazes para mensurar a qualidade da gestão pública, sobretudo no que se refere à qualidade de vida e o bem-estar da população.

E o Brasil é a maior prova disso. Atualmente, o País ocupa o posto de sétima maior economia do mundo. Já no ranking do IDH - índice que mede o desenvolvimento pautado em três dimensões básicas: renda, educação e saúde, ocupa a 79ª posição3.

Essa gritante discrepância sinaliza que as riquezas geradas no País não são revertidas na promoção do desenvolvimento intelectual, na assistência médica à população e na construção de infraestrutura básica. Ou, o que é pior, reflete que os aportes realizados nesses setores pelo Governo, nas três esferas da Federação, são ineficazes, na medida em que não alcançam os resultados esperados.

Foi justamente o que se constatou em uma pesquisa realizada recentemente pela Universidade de São Paulo - USP, por intermédio da Escola de Artes, Ciências e Humanidades - EACH. Nesse estudo, verificou-se que nas cidades brasileiras com maior arrecadação por habitante, o dinheiro dos impostos não se transforma em qualidade de vida para os moradores.

De acordo com o professor de políticas públicas da USP, Fernando de Souza Coelho, um dos coordenadores da pesquisa, em média cada prefeito tem R$ 2,5 mil para gastar com cada habitante. Os municípios com maior arrecadação chegam a estar sete, oito, nove vezes acima dessa média.

Esse estudo deu origem a uma reportagem veiculada pelo programa Fantástico da Rede Globo de Televisão4, em que foram visitados três municípios que lideram essa lista em suas regiões: Presidente Kennedy, no Espírito Santo, primeira do sudeste e do Brasil em arrecadação por habitante; São Francisco do Conde, na Bahia, líder no Nordeste; e o município gaúcho de Pinhal da Serra, na região Sul.

No município de São Francisco do Conde, 80% da arrecadação vem da refinaria Landulfo Alves. Só da refinaria, em 2014, foram arrecadados R$ 365 milhões. Ou seja, R$ 1 milhão, por dia, para um município de 38 mil habitantes.

Graças ao petróleo, o município tem quase R$ 13 mil por habitante, cinco vezes a média nacional. Só que mais da metade da população não tem rede de esgoto e um quarto vive na miséria.

No município de Presidente Kennedy, no Espírito Santo, campeão nacional de arrecadação por habitante, graças ao petróleo e à indústria naval, o valor chega perto dos R$ 28 mil por morador, onze vezes a média nacional. Ainda assim, quase 70% dos 11 mil moradores não têm esgoto.

Esses dados são a maior prova de que disponibilidade orçamentária não resulta por si só na concretização de medidas voltadas a assegurar a qualidade de vida da população. Evidenciam, ainda, que não há a responsabilização efetiva dos gestores pela malversação de recurso de públicos.

Daí porque, a exemplo da ferramenta proposta pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, é preciso disponibilizar mecanismos de controle hábeis a fiscalizar a implementação de medidas dessa natureza e a partir dos indicadores obtidos, responsabilizar os respectivos gestores, seja por descumprimento ou pela ineficácia das providências adotadas.

III. Controle da eficácia de medidas destinadas à preservação do bem-estar social

Pela leitura dos artigos 3º, 170, inciso VI, e 2255 da Constituição Federal, verifica-se que a nossa Carta Magna defende o bem-estar como um valor supremo. Trata-se, portanto, de mandamento constitucional que deveria vincular a conduta dos gestores e nortear as políticas públicas propostas.

A questão é que, na prática, a consagração constitucional desses valores pouco mudou a mentalidade dos gestores e a forma de governança. O caráter programático dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), fez com que a observância desses preceitos se tornasse uma simples "carta de intenção".

Mais do isso, pautados na premissa de que a concretização dessas medidas está condicionada às possibilidades orçamentárias do Estado, os gestores passaram a invocar a "reserva do possível" como subterfugio para se exonerarem do cumprimento de suas obrigações constitucionais.

Nos últimos anos, o Poder Judiciário, em contrapasso à inércia do Poderes Executivo e Legislativo, tomou a dianteira no controle da concretização de políticas públicas. Há algum tempo, tem-se admitido a intervenção jurisdicional - sem qualquer ofensa, portanto, ao postulado da separação de poderes - sempre que restar caracterizada a arbitrária recusa governamental em prover bem-estar e a justiça social.

Reconhece-se, por outro lado, o caráter excepcional da intervenção. No exame da ADPF 45/DFM (Informativo/STF 345/04), o Ministro Celso Mello sedimentou o entendimento de que não se inclui ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário a atribuição de formular e de implementar políticas públicas pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo.

No âmbito das contratações públicas, recentemente, deu-se um importante passo em direção à concretização de medidas que importem em melhorias sociais e ambientais, assim como na efetivação da sindicância pela Administração Pública e pelos entes responsáveis pelo controle externo.

A lei 12.329/10, inseriu entre os objetivos da licitação, a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, alçando-o ao mesmo nível dos princípios da isonomia e da seleção da proposta mais vantajosa para administração pública. A licitação passou, então, a ter mais um desafio: promover o desenvolvimento nacional sustentável.

A inserção desse novo preceito na Lei de Licitações fez com que se questionasse o que o legislador pátrio pretendeu com o termo "desenvolvimento sustentável".

O conceito de desenvolvimento sustentável foi disseminado em 1987, por meio do "Relatório Brundtland", que visava discutir um novo modelo de desenvolvimento que conciliasse o crescimento econômico com a justiça social e a preservação do meio ambiente.

O documento foi elaborado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas - ONU, na qual o desenvolvimento sustentável foi definido como aquele: que procura satisfazer as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades, significa possibilitar que as pessoas, agora e no futuro, atinjam um nível satisfatório de desenvolvimento social e econômico e de realização humana e cultural, fazendo, ao mesmo tempo, um uso razoável dos recursos da terra e preservando as espécies e os habitats naturais.

No Brasil, Juarez de Freitas define desenvolvimento sustentável como: "princípio constitucional que determina, com eficácia direta e imediata, a responsabilidade do Estado e da sociedade pela concretização solidária do desenvolvimento material e imaterial social socialmente inclusivo, durável, equânime, ambientalmente limpo, inovador, ético e eficiente no intuito de assegurar preferencialmente, de modo preventivo e precavido, no presente e no futuro o direito ao bem-estar6."

Desse modo, a introdução de critérios de sustentabilidade nas compras públicas traz uma nova forma de planejar, executar e, sobretudo, controlar as licitações, tornando-as ainda mais complexas.

E isto porque não basta reduzir a pressão sobre os recursos naturais, há que se garantir igualdade de oportunidades a todos os cidadãos e prosperidade dos setores produtivos para que cidades e nações se desenvolvam com equilíbrio.

A inclusão do princípio entre os objetivos a serem necessariamente observados pelo gestor público é paradigmático porquanto traça uma diretriz objetiva para a fiscalização pelos órgãos de controle. É dizer, os instrumentos convocatórios deverão incluir exigências editalícias que contribuam de alguma forma para a promoção desses valores.

Consequentemente, a fiscalização das contratações públicas pelos órgãos de controle deverão se pautar nessas novas bases, superando o ultrapassado paradigma de que a propostas mais vantajosa equivale àquela que apresentar condições mais favoráveis sob ponto de vista econômico.

IV. Conclusão

Pelo exposto verifica-se que o indicador proposto pelo TCE/SP está alinhado à uma tendência mundial, que atribui ao gestor público o dever de prover o bem-estar da população e preservar os recursos naturais em prol das gerações futuras.

Alinha-se, ainda, à Constituição Federal, que no seu preâmbulo, consagra o desenvolvimento como valor supremo, ladeado pelo bem-estar, pela igualdade e pela justiça. E, por se tratar de mandamento constitucional, a concretização desses valores não pode ser tratada como mera liberalidade, mas um dever passível de responsabilização.

Nesse passo, a prática de atos ineficazes, que resultem em prejuízos sociais e ambientais, deve ser qualificada como grave desvio de finalidade e apenada de modo a reprimir a reincidência de condutas dessa natureza pelos gestores públicos.

Evidente que quando se fala em sindicância de decisões de caráter eminentemente político pelos órgãos que exercem o controle externo é preciso ter cautela para que não se cometa excessos. É dizer, não se pode admitir que o controle externo se sobreponha a atos que reflitam o mérito da decisão do administrador, sob a ótica da conveniência e oportunidade.

De toda forma, diante dos incontáveis casos de malversação de recursos públicos, que fazem com que parte da população brasileira ainda viva em condições subumanas, há que se alterar a forma de fiscalização e, sobretudo, de responsabilização daqueles que são os responsáveis por prover o bem-estar e a justiça social.

E os avanços nessa seara passam, necessariamente, por uma mudança no eixo do controle externo realizado pelas Cortes de Contas, que deverão se voltar para a qualidade das decisões tomadas pelos gestores, como forma de apurar eficácia e a eficiência das políticas públicas.

Essas mudanças, a longo prazo, têm o poder de diminuir o enorme abismo entre os indicadores econômicos e aqueles voltados a apurar o desenvolvimento humano, fazendo com que o Brasil se torne digno de ocupar a posição de sétima maior economia do Mundo.

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1 Artigo: "Lupa da Cidadania" - Publicado no jornal Folha de São Paulo em 30.03.2015.

2 Educação, saúde, planejamento, gestão fiscal, meio ambiente, cidades protegidas e governança em tecnologia da informação.

3 Dados divulgados pelo relatório do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) com base em números referentes ao ano de 2013.

4 Programa veiculado no dia 12/04/2015

5 "Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
(...)
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação."
"Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais.
"Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preserva-lo para as presentes e futuras gerações. "
(grifamos)

6 FREITAS, Juarez. Sustentabilidade Direito ao Futuro. p. 41. 2 Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

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*Débora de Assis Pacheco Andrade é advogada do escritório Rubens Naves Santos Jr. Advogados. Formada pela PUC/SP, é especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP e mestranda em Direito Administrativo.

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