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Repatriação de recursos e a polêmica da tributação do saldo já consumido

José Andrés Lopes da Costa

Entendimento da PGFN, além de produzir desastrosas consequências sobre o programa de regularização brasileiro, baseia-se em construção argumentativa própria dos bons advogados, mas extremamente inoportuna neste momento

terça-feira, 19 de julho de 2016

Atualizado em 18 de julho de 2016 10:42

A Procuradoria Geral da Fazenda Nacional acaba de editar o parecer PGFN/CAT  1.035/16 para manifestar seu entendimento acerca do artigo 6º da lei 13.254/16, que trata do Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), no sentido de que os "ativos consumidos total ou parcialmente até 31.12.2014 também devem compor a base de cálculo da tributação sobre a renda".

Este entendimento, além de produzir desastrosas consequências sobre o programa de regularização brasileiro, inibindo drasticamente o interesse da sociedade e o volume de arrecadação, baseia-se em construção argumentativa própria dos bons advogados, mas extremamente inoportuna neste momento, em que existe o clamor por maior segurança jurídica e previsibilidade quanto aos efeitos de uma eventual adesão.

Em apertada síntese, o parecer sustenta o seguinte (a) que existe previsão legal para o pagamento tomando por base o saldo existente em 31/12/14; (b) que também existe previsão legal para o pagamento de quem já não possuía saldo algum nesta data, bastando para isso descrever as condutas e efetuar o pagamento com base no valor presumido do ativo consumido antes de 31/12/14.

A partir dessas premissas o parecer conclui que aqueles que têm saldo em 31/12/14 inferior ao existente em datas mais remotas, ou seja que consumiram recursos anteriormente à 31/12/14, devem também inserir este montante na sua declaração de regularização (DERCAT), para fins de apurar a base de cálculo do tributo e multa.

Ocorre, entretanto, que apesar de bem construído o argumento não passa de falso silogismo, arquitetado a partir da conjugação de dois dispositivos de lei que tratam de hipóteses absolutamente distintas para daí extrair uma consequência inédita e insólita, jamais pretendida pelo legislador.

Desde os tempos da Roma Antiga, o Direito utiliza a ficção como mecanismo para estabelecer consequências jurídicas para um fato que, racionalmente, sabe-se não verdadeiro, mas para o qual é necessário emprestar determinado tratamento legal.

Esta modalidade de técnica legislativa não é novidade alguma e remonta aos tempos do Império Romano, que utilizava a ficção do auspicia repetere, através da qual se consideravam solo romano os territórios ocupados, para que o senhor dos territórios pudesse ser nomeado em solo pátrio e, ainda, na Lex Cornelia de captivi que considerava morto o soldado romano, para fins de sucessão, no momento de sua captura.

O que se vê, portanto, é que ao determinar que "para fins do disposto nesta Lei, o montante dos ativos objeto de regularização será considerado acréscimo patrimonial adquirido em 31 de dezembro de 2014, ainda que nessa data não exista saldo ou título de propriedade" o artigo 6º da lei 13.254/16 nada mais faz do que lançar mão ao recurso da ficção jurídica.

Isto é, mesmo sabendo que o patrimônio mantido pelo contribuinte não foi adquirido em um único dia e que, evidentemente, ocorreram variações para mais ou para menos ao longo dos anos, optou o legislador por esta conhecida técnica a fim de viabilizar o programa de regularização e conferir aos aderentes segurança jurídica, estipulando algo que já se sabe não corresponder a realidade.

A própria exposição de motivos da lei 13.254/16 deixa claro que o objetivo da norma que possibilita a adesão mesmo para aqueles que não mais possuem saldo em 31/12/14 é prestigiar o princípio da isonomia, pondo-os em condições de igualdade com os contribuintes que possuíam recursos nesta data, mas jamais tributar o saldo consumido no passado no segundo caso.

Diga-se, aliás, que em termos práticos a pretendida tributação do saldo consumido pode ser muitas vezes inviável, seja por não mais existirem os documentos que permitiriam tal verificação, seja por não haver qualquer regulamentação quanto ao critério temporal e quantitativo a ser utilizado.

Será o maior saldo nos últimos anos? Será o saldo médio mantido pelo contribuinte? Não existe resposta para essas perguntas por uma singela razão, qual seja, o legislador jamais pretendeu tributar os recursos consumidos anteriormente a 31/12/14 para os contribuintes que apresentam saldo positivo nesta data, razão pela qual o Parecer PGFN acaba também por invadir esfera de atribuição reservada ao Poder Legislativo, criando norma tributária apócrifa e incompatível com o texto legal, a pretexto de seu caráter interpretativo.

Necessário, portanto, rever urgentemente este posicionamento para conferir maior segurança jurídica a todos os contribuintes optantes pelo regime de regularização e para que a anistia alcance de fato seu principal objetivo, mais importante até mesmo que arrecadar.

Referimo-nos aqui à promoção da paz social e à inclusão de inúmeros contribuintes que hoje se encontram na marginalidade, trazendo-os para o mundo da formalidade tributária para fechar de forma definitiva as feridas de um passado não muito distante em que o Brasil vivia sob regime ditatorial e, depois, em uma frágil democracia no início dos anos 90, cuja principal marca era o medo e a instabilidade financeira e política.

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*José Andrés Lopes da Costa é professor de direito bancário na FGV e sócio do Chediak, Lopes da Costa, Cristofaro, Menezes Côrtes, Rennó, Aragão - Advogados.

 

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