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Previsão de cenários adversos na prática societária

É válido investir na correta estruturação dos instrumentos societários, a fim de que empresários e investidores não sejam surpreendidos em suas iniciativas.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Atualizado em 5 de agosto de 2016 16:28

O primeiro semestre deste ano reservou-nos pelo menos dois processos históricos de grande magnitude político-econômica: a deflagração do processo de impeachment e o plebiscito pela saída do Reino Unido da União Europeia. Tais acontecimentos exemplificaram a importância de cenários adversos serem meticulosamente previstos no plano legislativo, de forma a permitir uma transição institucional e segura. Guardadas as devidas proporções, devemos seguir esse mesmo padrão de cautela na prática do direito societário, na elaboração de contratos sociais, estatutos, acordos de acionistas etc.

Em relação ao episódio nacional, cabe destacar o acerto da Constituinte em ter previsto meticulosamente, no artigo 80 da CF, a linha sucessória em caso de impedimento - vice-presidente, presidente da Câmara dos Deputados, presidente do Senado Federal e, finalmente, o presidente do STF. Quem poderia imaginar que diversos líderes políticos estariam, em dado momento histórico, implicados por denúncias e investigações, com risco de cassação sucessiva dos mandatos? Passaram-se quase trinta anos da sua promulgação, mas chegou o dia em que, enfim, a previsão constitucional mostrou-se acertada e imprescindível.

Na esfera societária, compete aos advogados amparar os empresários, investidores e empreendedores, entre outros grupos relevantes, na previsão de tais cenários catastróficos, mas factíveis. Nem sempre a lei é suficiente, diante do dinamismo empresarial, para salvaguardar os interesses antagônicos de acionistas controladores e minoritários, investidores e companhia investida, diretores e conselheiros, e assim por diante. É prudente que as partes estejam, desde o momento de concepção de um negócio, amparadas por profissionais que os auxiliem a antever situações adversas e os mecanismos que lhes possibilitem evitá-las ou, pelo menos, mitigar seus efeitos. Nesse sentido, a exigência legal de que atos de constituição sejam visitados por advogado (artigo 1º, § 2º, da lei 8.906/94 - Estatuto da Advocacia e da OAB) não deve ser cumprida como mera burocracia, mas sim como providência sensata.

Em contraposição ao texto constitucional supramencionado, podemos tomar o recente plebiscito britânico como exemplo do que não se fazer. Foi arquitetado, literalmente, "para inglês ver", mas a decisão popular veio no contrapé dos líderes britânicos que não haviam previsto - pelo menos não satisfatoriamente - o resultado adverso e suas consequências. Entre outros aspectos, foi alvo de muitas críticas uma medida drástica como a saída da União Europeia ter ficado sujeita à maioria simples dos cidadãos da Grã-Bretanha. Pela complexidade da matéria, mais razoável seria um processo com dois turnos ou, ainda que em votação única, com quórum qualificado.

Essa mesma questão deve ser atentamente analisada nos contratos sociais, estatutos e acordos de acionistas. Não obstante os quóruns previstos em lei, é necessário verificar cautelosamente, à luz da composição de cada quadro societário, quais matérias devem ficar sujeitas à maioria simples, absoluta ou qualificada. Em certos casos o próprio quórum de instalação da assembleia é extremamente relevante, quando se tratar de matéria estratégica ou que afete de forma significativa a instituição - como a reforma do estatuto ou do contrato social, por exemplo. Há que se estipular, ainda, percentuais ponderados, pois de nada adianta o estabelecimento de quóruns extremamente elevados que na prática possam significar a concentração de poder de veto nas mãos de poucos acionistas.

Como última providência, para a eventualidade de os acionistas se depararem diante de anseios antagônicos e inconciliáveis, cabe prever o mecanismo adequado para a solução de controvérsias. Nas últimas décadas, essa definição consistia em prever nos instrumentos societários se as disputas seriam decididas na justiça comum ou em processo de arbitragem, cada qual com suas afamadas desvantagens - como a demora em solucionar-se o litígio e os altos custos envolvidos, respectivamente. Hoje em dia, trata-se de uma equação a ser reformulada, em decorrência da promulgação do novo CPC (lei 13.105/15) e da lei de mediação (13.140/15).

Ainda que exista ceticismo no meio forense a respeito da eficácia da nova estrutura do CPC, é certo que algumas de suas inovações são promissoras e devem ser consideradas na formulação dos estatutos e acordos de acionistas. O negócio jurídico processual (artigo 190 do novo CPC), por exemplo, possibilita que as partes formulem, contratualmente, regras e procedimentos particulares, a serem observados pelo juiz no curso do processo. Passou a ser admitido, por exemplo, convencionar-se que competirá ao acionista controlador o ônus de demonstrar que determinada matéria foi aprovada no interesse da companhia, invertendo-se a sistemática usual, pela qual compete aos minoritários comprovar em juízo o ato abusivo do acionista controlador.

A lei de mediação, por sua vez, também se revela extremamente interessante para o campo societário, por possibilitar que as acionistas centralizem suas expectativas em um especialista, imparcial e sem poder decisório, a quem competirá a formulação de um termo vinculante e definitivo, sem que o processo fuja do controle de qualquer das partes. Além de não serem obrigados a permanecer no processo, os acionistas participam ativamente, em conjunto com o mediador, no desenvolvimento das soluções que constarão do termo de mediação, o qual somente se torna vinculante e definitivo quando obtido o consenso entre as partes. Diversamente, portanto, do que pode ocorrer em processos judiciais ou em arbitragens, em que muitas vezes a decisão do juiz ou do árbitro, conforme o caso, acaba por frustrar os anseios de ambos os litigantes.

Enfim, aproveitando que os episódios acima mencionados ainda serão debatidos por tempo considerável na esfera pública, os erros e acertos dos seus protagonistas podem ajudar a rememorar, no âmbito privado, o quanto é válido investir na correta estruturação dos instrumentos societários, a fim de que empresários e investidores não sejam surpreendidos em suas iniciativas e disponham de ferramentas adequadas para superar as adversidades que os acometam no curso dos negócios.

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*Reynaldo Vallú é sócio do escritório Comparato, Nunes, Federici & Pimentel Advogados.











O presente artigo foi escrito e divulgado com finalidade meramente didática e informativa, e, portanto, não configura uma orientação jurídica ou consultoria em nenhuma hipótese. Para obter uma orientação específica sobre o tema aqui tratado, consulte um advogado.

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