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Um senhor estágio

O mural de avisos tinha poucos anúncios naquele dezembro. O anúncio tinha apenas um telefone. Discou. Agendou seu horário e lá foi Carolina com seu currículo.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Atualizado em 22 de dezembro de 2016 09:24

O mural de avisos tinha poucos anúncios naquele dezembro. Talvez seja por isso que o "Estágio para estudantes de Direito, não importa o semestre. Paga-se MUITO bem" chamou a atenção de Carolina.

"Já fechei mesmo. Vou aproveitar as férias para trabalhar", pensou.

Depois repensou: "Mas quem pagaria MUITO bem para estágio em Direito?".

O anúncio tinha apenas um telefone. Discou. Não era do Pinheiro Neto. Muito menos do Siqueira Castro. Cogitou ser um recrutador anônimo para um departamento jurídico de alguma grande corporação. Seria o Google? Ou o Itaú?

Agendou seu horário e lá foi Carolina com currículo, carta de referência e as notas dos últimos semestres. Um prédio envidraçado, repleto de seguranças. Sem identificação. Passou pela portaria após informar todos os documentos. De fato, deveria ser um serviço secreto.

E era.

"O Doutor Nicolau III irá lhe atender em breve, Carolina. Posso lhe oferecer uma rabanada?", perguntou a polida secretária.

Ela estranhou a rabanada (sempre é café e água) e aceitou. Meia hora depois, doutor Nicolau III aparece na porta e a chama.

"Muito obrigado por ter vindo, Carolina. Janeiro e dezembro são os meses em que mais trabalhamos e por isso o estágio é temporário. Tudo bem para você?", perguntou.

Para ela, estava. Mas o que faria? Seria contencioso cível? Trabalhista? Por que tanto segredo?

"Veja bem, Carolina. Nós atendemos várias áreas do Direito e por isso quem estagia conosco tem que saber de tudo um pouco. Conte me um pouco mais de você: qual sua matéria favorita?"

"Processo Civil", respondeu.

"Você fala inglês fluente. Como aprendeu?", questionou doutor Nicolau III.

"Morei nos Estados Unidos quando criança".

Visivelmente constrangido com a resposta, Carolina perguntou:

"Algum problema?"

"Por um acaso você gosta de Dr. Seuss? O Grinch?", questionou o causídico.

"Não. Detesto aquele livro. Prefiro 'The cat in the hat'. Por quê?"

Estava muito estranho. Literatura infantil em uma entrevista de estágio? Em Direito?

Aliviado, doutor Nicolau III, então, desvendou o mistério.

"Carolina, você está na sede brasileira da Claus & Co. Somos a empresa do Papai Noel. E é por isso que trabalhamos muito nesta época. Não revelamos muito sobre nós pois, acredite, já recebemos intimação em abril por terem confundido nossa empresa com a Easter & Co."

"Easter & Co?!"

"É, a do Coelhinho da Páscoa. Estavam com tanta demanda que o oficial de Justiça citou o Papai Noel ao invés do Coelhinho".

"Que tipo de brincadeira é esta?! Vim procurar um estágio em Direito, não uma vaga de noelete no shopping!".

"Calma, calma! Também não temos nada a ver com o shopping. Quer dizer, às vezes respondemos solidariamente com um ou outro. Franquiamos a função há tempos e acredita que ainda tem gente que nos chama ao processo? E você não vai trabalhar com o Papai Noel. Quer dizer, não diretamente. Vai trabalhar para ele, representá-lo", continuou o doutor Nicolau III, que já revelara ser o neto do bom velhinho com OAB.

Carolina estava indignada. A pegadinha era boa e ela tinha caído.

"Mas quem vai processar o Papai Noel?", riu-se a estudante.

"Uma série de pessoas. No ano passado um duende nos processou pedindo horas extras, além de alegar equiparação salarial. Um absurdo! Tivemos negociação coletiva com o Sindicato, mas, mesmo assim, ele achou que tinha direito. Temos muitas, mas muitas causas mesmo em consumidor. Acho que é a maioria. Uns alegam propaganda enganosa, pedem devolução. Olha, é muita coisa!".

Ela estava. ela estava despreparada. Estagiar com o Papai Noel? Ele não morava no Polo Norte?!

"É a globalização. Ah, esqueci de mencionar: nós representamos também a América Latina. Ainda não sabemos como ficará sem a Venezuela, mas, atendemos os países do Mercosul. Você fala espanhol?"

"Estudei três anos mas falo francês melhor".

"Sem problemas. Há uns quatro anos tivemos uma lide com a Guiana Francesa e ninguém falava francês. Tivemos que pedir ajuda para nosso escritório na Europa".

"Sei. E o que exatamente eu teria que fazer?"

"É muita coisa mas são simples. Ler os processos, verificar se batem com as causas não resolvidas do SAP, eventualmente ir ao fórum".

"Desculpe, não entendi: SAP?!"

"Claro! SAP: Serviço de Atendimento ao Presenteado. Quando a pessoa não está satisfeita com o presente, entra em contato com o SAP. Antigamente era apenas anualmente mas agora com Whatsapp, Facebook, Snapchat eles fazem as reclamações, nossa equipe procura atender. Os não atendidos processam. Como já fomos processados por uma pessoa insatisfeita pelos doces do Dia das Bruxas e não nos atentamos na hora que não éramos ré, checamos sempre para não perder viagem".

À primeira vista, trabalhar para o Papai Noel parecia piada. Mas Carolina percebeu que era coisa séria. O valor da bolsa era ótimo e a oportunidade de aprender melhor ainda. Só faltava uma coisa para aceitar a proposta do doutor Nicolau III:

"Afinal, eu vou pelo menos poder conhecer o Papai Noel?"

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*Ivy Farias, 35 anos, é jornalista, estudante de Direito da UMC- Campus Villa-Lobos/Lapa, uma das fundadoras do movimento Mais Mulheres no Direito e gosta de escrever crônicas no fim do ano.

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