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Horas in itinere - inquietação - inconformismo - para muito além da letra fria da lei

Vanderlei José da Silva

Nem tudo é arcaico como se alardeia, para que se imponham reformas, nem mesmo inseguro juridicamente, basta tão somente a adoção de mecanismos para se enquadrar dentro dos ditames legais.

terça-feira, 4 de abril de 2017

Atualizado às 07:36

Militando há mais de vinte anos na área trabalhista, nossa atuação tem por escopo uma advocacia pautada na resistência.

Isso porque, em nossa prática cotidiana, não raro nos deparamos com ideias que revelam verdadeira inversão de valores, entre elas a de que o trabalhador que busca a reparação de um direito lesado não seria um bom trabalhador, tal concepção atinge até mesmo seu patrono, na medida em que se reverbera a usual rotulação pejorativa também aos advogados que defendem interesses dos trabalhadores.

Mormente o desprezo aos direitos sociais, muitas vezes movido por descontentamento pessoal ou comportamentos eminentemente individualistas em razão de atavismos adquiridos numa educação competitiva, típica da sociedade de consumo, o fato é que nos últimos meses temos presenciado um flagrante descumprimento à lei, bem como uma deliberada ação institucionalizada em perseguição à Justiça do Trabalho.

Tais fatos se corroboram pela forma perpetrada pelo relator do orçamento da União em 2015, o então deputado federal Ricardo Barros, atual ministro da Saúde, que naquela ocasião colocou seu posicionamento pessoal para realizar o corte de verbas e tentar "matar no ninho" a atividade jurisdicional que tem por objetivo o cumprimento da lei trabalhista, bem como a imposição de penalidades aos que resistem à observância da mesma.

Em verdade, o incômodo aos donos do capital reside exatamente na exigência à observância e cumprimento das leis obreiras.

Não bastasse isso, nos defrontamos hodiernamente com a ventilada reforma trabalhista, sob a justificativa de que a CLT teria se tornado uma legislação arcaica e obsoleta, consubstanciando um entrave ao crescimento econômico do país em razão da consolidação ter ocorrido na década de 40.

Ao contrário do que se alardeia, a CLT não é a mesma da década de 40, tendo em vista que passou por diversas alterações sendo que a última mudança realizada em dezembro de 2016, que inclusive deu nova redação ao art. 473.

Nesse diapasão, fundamental observar que a CLT foi recepcionada pela CF de 1988, uma carta considerada "cidadã", bem como classificada como norma programática, em razão de muitos de seus dispositivos consistirem em orientações para um país do "vir a ser", garantia de um pleno estado democrático de direito futuro. Assim sendo, não pode a lei trabalhista, pela Constituição recepcionada, ser considerada ultrapassada, como alguns buscam fazer crer.

Hoje não poderíamos deixar de comentar e induzir ao debate quanto à sua inquietação e inconformismo com a existência de horas in itinere em Três Lagoas e região, tendo em vista a distância entre o núcleo urbano e as empresas de celulose, as maiores do mundo no segmento, que disponibilizam ônibus aos seus empregados, o que, ao ver de alguns, descaracterizaria o dever daquelas em adimplir com a verba referente às horas itinerárias, aduzindo que tal situação careceria de harmonização com a atual busca de modernização das relações de trabalho para pôr fim a uma suposta insegurança jurídica sobre o tema.

A insegurança jurídica não se resolveria com o cumprimento da lei?

Frise-se, quando consolidadas as leis trabalhistas, não se falava em horas in itinere, sendo estas inseridas no contexto jurídico através da jurisprudência, sendo posteriormente positivada.

Diferentemente da época em que foi ventilada acerca das horas de percurso, na década de 70, na atualidade resta inegável a existência de mecanismos tecnológicos que permitem o registro de horário do trabalhador no momento do embarque ao início e desembarque ao final de sua jornada.

Qual a razão para a não disponibilização desses meios de controle?

A insegurança jurídica advém exatamente do descumprimento da lei, através também da utilização da omissão como forma de obtenção de vantagem econômica, considerando que a lógica da produção se perfaz na maximização dos lucros a qualquer custo.

Todas as empresas que vieram se instalar em Três Lagoas realizaram estudos para implantação no intuito de otimizar a produção, buscando se estabelecer em locais próximos ao abastecimento de água em abundância, bem como dotados de malha viária com vistas a favorecer o escoamento da produção, não levando em consideração a inexistência de transporte público direcionado aos locais onde se instalaram, evidenciando ser esse um fator secundário em seu rol de prioridades.

Desde a construção a situação fática das horas in itinere ou jornada itinerária foram tratadas pelas empresas como número meramente econômico, a preferência pelo não pagamento e registro da jornada itinerária foi de forma fiel contabilizada, apostando-se na possibilidade ou não de judicialização em razão do inadimplemento.

Sabe-se que na fase de construção da primeira fábrica de celulose em Três Lagoas, somente uma das empresas movimentou, no período referenciado, mais de 8.000 (oito mil) funcionários num lapso temporal de dois anos, sendo que desse número, somente 486 (quatrocentos e oitenta e seis) ex-empregados, ou seja, menos de 6% ajuizaram ações em busca das horas in itinere que não foram computadas na jornada e, dessa forma, não foram pagas.

A segurança jurídica deve ocorrer em função do direito ou pela violação da lei?

Ao contrário do esposado, o direito relativo ao cômputo na jornada de trabalho do tempo despendido no itinerário de ida e volta ao trabalho somente restou positivado em nossa legislação pátria em 2001, através da alteração do parágrafo segundo do artigo 58 da CLT, não sendo o termo inicial do referido instituto a entrada em vigor da norma obreira na década de 40.

As horas itinerárias até então eram disciplinadas pela jurisprudência, sendo editado em 1978 o Enunciado 90 do TST, atual súmula 90, sendo o assunto também foi tratado no Enunciado 320 - Resolução 12 de 1993, Enunciado 324 - Resolução 16 de 1993 e Enunciado 325, disposições normativas canceladas, cujas redações se encontram incorporadas na atual súmula 90 do TST em revisão promovida em 2005.

Segundo Maurício Godinho Delgado , o Direito de Trabalho teve sua evolução pautada na pressão exercida pelos trabalhadores de forma coletiva, bem como de outros fatores que culminaram num aperfeiçoamento das normas jurídicas atinentes ao assunto, o que resultou numa ampliação dos elementos que compõem a jornada de trabalho, se estendendo para além do tempo efetivamente trabalhado.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 destaca no artigo XXIV: "Todo homem tem direito ao repouso e ao lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e as férias remuneradas periódicas".

Dentro da concepção de jornada deve ser computado o tempo in itinere, quando ocorrem as situações fáticas previstas no parágrafo segundo do artigo 58 da CLT.

O trabalhador, ao embarcar na condução fornecida pelo empregador, já se encontra cumprindo com suas obrigações contratuais, está à disposição da empresa, inclusive sujeito ao poder de comando do empregador no tocante às regras de conduta, de disciplina no trajeto de ida e volta do trabalho.

Isso se comprova mediante análise do que dispõe a lei 8.213/91, que caracteriza como sendo acidente de trabalho sofrido pelo empregado no trajeto de sua casa ao labor e vice-versa, sendo também o disposto no artigo 4º da CLT um dos fundamentos das horas in itinere.

A empresa se beneficia com a condução oferecida aos empregados porque assim garante aplicação regular à sua atividade produtiva na hora de início do expediente sem atraso.

Para Maria Alice de Barros Monteiro, a opção do empregador em oferecer o meio de transporte ao empregado possui o condão de garantir a presença pontual e assídua daquele no local de trabalho.

O fornecimento do transporte aos trabalhadores se faz em prol do empreendimento, nada mais configura do que uma ferramenta de logística da produção otimizada, não visa a tranquilidade e conforto do trabalhador. Uma gaiola, seja de ferro ou de pelúcia, será sempre uma gaiola.

Frise-se que nos grandes centros o transporte acaba sendo subsidiado pela sociedade através do vale-transporte e quando fornecido pelas empresas possibilita que estas utilizem essa despesa como meio de abatimento nos impostos que deveriam pagar.

Quanto à moradia distante dos trabalhadores que fazem uso do transporte público, nada mais é do que mais uma modalidade de exploração do capital, desta feita, adstrita à especulação via parcelamento do solo que "empurra" os mais pobres para as zonas mais distantes e não estão afetos à jornada itinerária por não terem a situação prevista em lei, diferentemente do que ocorre em nossa região, que é desprovida de transporte público regular, inexistindo outro meio dos trabalhadores chegar à zona rural para movimentar os empreendimentos instalados nesse local.

Não há insegurança jurídica quando a lei prevê uma situação fática e esta se amolda ao caso concreto.

A insegurança jurídica se traduz na resistência em cumprir o que determina a lei e se auto vitimizar, quando o pano de fundo reside na busca por incrementos à vantagem econômica em detrimento de um direito social previsto em lei.

Assim nem tudo é arcaico como se alardeia, para que se imponham reformas, nem mesmo inseguro juridicamente, basta tão somente a adoção de mecanismos para se enquadrar dentro dos ditames legais. Além do lucro há que se pensar na finalidade social, arcaico é o afã de obter vantagem pelo descumprimento da lei.

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*Vanderlei José da Silva é proprietário do escritório Jurídico Vanderlei José da Silva.


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