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Incidente de desconsideração de personalidade jurídica e pedido especulativo de desconsideração

Gustavo Osna

Ao mesmo tempo em que se enveredar pelo caminho da desconsideração pode gerar importantes ganhos, há um risco latente a esse percurso.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Atualizado em 8 de maio de 2017 09:46

Entre os aspectos em que o Código de Processo Civil de 2015 apresentou especial ineditismo, certamente se encontra a tentativa de oferecer um tratamento processual específico ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica. Por mais que a realidade trouxesse um constante avanço material dessa forma de disregard, o diploma de 1973 não conferia tratamento claro à figura (conforme exposto com maior vagar em outra ocasião1). A partir disso, não faltaram indagações.

Afinal, seria possível que a desconsideração se desse incidentalmente, no curso de determinado processo? Haveria um limite temporal para esse requerimento? Contrariamente, seria necessário que o reconhecimento da perfuração fosse pleiteado por meio de ação autônoma? Como conformar a garantia de defesa a esse tipo de debate?

Nesse cenário lacunoso, coube aos Tribunais uma atuação ativa - conformando um procedimento necessário e adequado para a materialização do levantamento. Foi assim que, de maneira emblemática, o Superior Tribunal de Justiça compreendeu que "a superação da pessoa jurídica afirma-se como um incidente processual e não como um processo incidente, razão pela qual pode ser deferida nos próprios autos, dispensando-se também a citação dos sócios em desfavor de quem foi superada a pessoa jurídica, bastando a defesa apresentada a posteriori".2 Desse modo, entre visões mais instrumentais e concepções mais garantistas da figura3, inclinou-se em ampla medida para o primeiro plano.

Ocorre que, invertendo a lógica, o Código de 2015 procurou normatizar o problema. Para esse fim, estabeleceu um procedimento voltado particularmente à questão ("incidente de desconsideração de personalidade jurídica"), caracterizando-a como forma específica de intervenção de terceiros. E, ao fazê-lo, estabeleceu que o incidente seria dispensado "se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica" (art.134, §2º).

Por uma leitura em sentido contrário, observa-se que o texto diz muito: ao prever-se que a medida seria dispensada caso a desconsideração fosse requerida em inicial, indica-se que ela seria indispensável em todas as outras situações. Como notado em doutrina, "a única hipótese em que o terceiro pode ser alcançada sem incidente específico é aquela em que a desconsideração já vem desde logo requerida com a petição inicial" 4.

As limitações do presente ensaio não permitem uma investigação minuciosa dos elementos procedimentais da medida, assim como uma reflexão detida a respeito de seus possíveis benefícios ou desvantagens. Da mesma forma, há inúmeros debates relacionados à matéria que devem ser objeto de maior atenção: afinal, como o incidente dialogaria com o regime próprio dos Juizados Especiais? Qual seria sua aplicabilidade nas esferas trabalhistas ou fiscais (mais que isso, os regimes de sucessão previstos nesses campos configurariam verdadeiras hipóteses de desconsideração)?

Esquivando-se dessa espécie de problema, o que se pretende indicar aqui é outro ponto relevante ligado ao tema: a possibilidade de que seu novo regramento configure um elemento de inibição de pedidos de desconsideração puramente especulativos; caracterize um fator de dissuasão de pretensões carentes de lastro, criando uma nova dimensão de responsabilidade para aquele que pleiteia a ineficácia da autonomia patrimonial.

De fato, elucidando brevemente o problema, veja-se que vigora como regra geral em nosso sistema (embora temperado por previsões específicas5) a ideia de que a desconsideração da personalidade jurídica pressupõe o "abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial" (Código Civil, art.50). Reforça-se, assim, a excepcionalidade da figura6. E, considerando nosso modelo procedimental basilar, incumbe àquele que pleiteia a ineficácia o ônus argumentativo e o ônus probatório de demonstrar a ocorrência desses aspectos. Não por acaso, o próprio Código de Processo Civil ratifica que "o requerimento (de desconsideração) deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica" (art.134, §4º).

Não obstante, articulando os livros e a realidade, nota-se que no ambiente anterior os custos e as áleas incidentes sobre o litigante que pleiteasse a perfuração sem se desincumbir minimamente desses ônus eram reduzidos. De fato, ressalvada eventual condenação por litigância de má-fé (de regra, improvável), o pedido infundado de desconsideração estabelecia uma aposta de baixo custo: ou bem ocorria sua pronta rejeição, ou invertia-se a lógica do jogo e depositava-se o fardo precipuamente sobre o terceiro atingido.

Diante disso, e considerando a análise entre custos e benefícios que permeia a atuação em juízo7, é certo que o novo regime trouxe um freio para o pedido especulativo de desconsideração. E isso porque, pela lógica fixada, a rejeição do incidente deve impor a pertinente condenação em custas e em honorários sucumbenciais. Como reconhecido, "a decisão final do incidente condenará o vencido nas verbas de sucumbência (custas e honorários de advogado). Se a desconsideração for provida, o sócio ou sociedade responde por tais verbas. Se for rejeitada, a parte que a requereu é a responsável"8. A questão, aliás, já foi esclarecida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, ratificando especificamente sobre o tema que "o incidente de desconsideração da personalidade jurídica é hipótese de incidência de custas processuais".

Diante disso, cria-se uma racionalidade mais simétrica: ao mesmo tempo em que se enveredar pelo caminho da desconsideração pode gerar importantes ganhos, há um risco latente a esse percurso. Mais do que nunca, torna-se imperativo que o pleito de ineficácia seja devidamente embasado. Se a desconsideração é essencial para integrar e legitimar o próprio regime da separação patrimonial (razão pela qual o incidente jamais pode ser proibitivo para esse fim), é preciso levar a personalidade jurídica a sério - evitando uma litigância lotérica em que pouco se tenha a perder.

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1 OSNA, Gustavo. Incidente de Desconsideração de Personalidade Jurídica - Uma Análise Preliminar. In. Revista Jurídica Luso-Brasileira. n.6. Lisboa: FDUL, 2016.

2 STJ, REsp 1.096.604/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Julg. em 16 de outubro de 2012.

3 Ver, BRUSCHI, Gilberto Gomes. Aspectos Processuais da Desconsideração da Personalidade Jurídica. 2 ed. São Paulo: Ed. RT, 2009. p.83

4 MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil. v.2. São Paulo: Ed. RT, 2015. p.106.

5 Assim, o art.28 do Código de Defesa do Consumidor. Também, o art.4º da Lei 9.605/98.

6 Como já se indicava em REQUIÃO, Rubens. Abuso de Direito e Fraude através da Personalidade Jurídica (Disregard Doctrine). In. Revista dos Tribunais. v. 803. São Paulo: Ed. RT, 2002.

7 Ver, por todos, PATRÍCIO, Miguel Carlos Teixeira. Análise Económica da Litigância. Coimbra: Almedina, 2005. p.14.

8 TALAMINI, Eduardo.
Incidente de Desconsideração de Personalidade Jurídica.

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*Gustavo Osna é advogado, professor de cursos de pós-graduação e especialização.


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