MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. O direito médico na formação do profissional da saúde: a necessidade de aproximação entre hospitais e tribunais

O direito médico na formação do profissional da saúde: a necessidade de aproximação entre hospitais e tribunais

Essa tomada de consciência acerca da inserção do Direito na formação Médica mostra uma realidade imutável: a atuação Médica também necessita do lastro jurídico para o seu bom desempenho prático.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Atualizado às 15:28

Profissionais da área de saúde e da área jurídica sempre estiveram juntos. Desde os primórdios, o Direito e a Medicina caminham juntos para socorrer a humanidade, cada um em seu ramo, mas umbilicalmente ligados ao mesmo tronco, médico e advogado exercem um poder sobre os homens para garantir a vida e a saúde ou preservar a liberdade, respectivamente. O médico incorporou o compromisso profissional do respeito à vida e à pessoa, o qual se transformou em dever fundamental, de acordo com as normas morais que a própria profissão impôs; no entanto, sua intervenção sobre o paciente nem sempre resulta em benefícios e pode produzir consequências danosas ao paciente.

Há uma grande conexão entre Direito e Medicina pela ótica e aspirações dos sujeitos envolvidos nesses dois campos. No Direito, busca-se a pacificação social mediante a composição de conflitos, culminando num desfecho que seja aceito e acatado, voluntariamente, pelas partes envolvidas. Na Medicina, busca-se a pacificação pessoal através do manejo de recursos técnicos que tragam ao paciente a cura ou a sobrevida digna. Na prática, em ambos, vemos que o interesse é fornecer ao indivíduo certo tipo de conforto, de amparo, para que a vida tome seu rumo de forma razoável dentro dos liames do normal. Nessa toada, temos a sociedade, representada pelo paciente, demandando a Justiça para fazer valer os seus direitos fundamentais, dentre os quais o direito à vida e à saúde, concretizados na Constituição Federal de 1988.

Essa tomada de consciência acerca da inserção do Direito na formação Médica mostra uma realidade imutável: a atuação Médica também necessita do lastro jurídico para o seu bom desempenho prático. Assim temos o Direito Médico, ramo não tão novo do Direito, mas que há muito vem crescendo na medida em que a relação entre médico e paciente deixou de ser pessoal para ser de consumo. Hoje, a relação entre o profissional que atua na área médica e seu paciente, vista pela ótica jurídica, é um vínculo estabelecido entre fornecedor de um serviço e consumidor desse serviço. Como o médico possui formação teórica, técnica, know how e expertises, a lei irá olhar para o paciente como vulnerável ou, tecnicamente falando, como um hipossuficiente, em razão da sua ignorância acerca da ciência médica. Como consequência, esse consumidor terá uma gama de proteções e benefícios no caso de algum dano ocorrido em decorrência do serviço prestado por esse profissional.

O médico necessita de uma visão ampla das implicâncias geradas pelo dever de cuidado, não só o julgamento hipocrático o exige como a nova formatação da relação médico-paciente, ou seja, deverá levar em conta que o paciente é um sujeito de direito e, como tal, haverá de agir segundo o regramento jurídico, seja na realização de uma anamnese, seja na elaboração do consentimento informado contendo todos os dados acerca do tratamento e seus prováveis danos iatrogênicos, seja na escrita que irá proceder no prontuário médico com letra legível. Para tal, o Médico necessitará de uma educação jurídica. Ademais, vivemos a era do dano moral, onde o paciente, agora ''im''paciente, recorre ao poder judiciário visando uma indenização mesmo tendo sido desidioso frente ao seu comportamento como paciente e não tendo levado à risca as determinações médicas para as fases pré ou pós-operatórias.

Porém, como se trata de relação entre pessoas, poderão ocorrer resultados clínicos não desejados e a responsabilidade do profissional será investigada dentro das vertentes clínica e jurídica, contando ainda com a presença de um perito para esclarecer pontos técnicos. Diante de tais fatos é constante o debate judicial em ações que envolvem os profissionais da área da saúde. Nesse cenário, é comum que o profissional da área da saúde se depare com diversas situações envolvendo o universo jurídico. Assim sendo, temos que analisar os benefícios que seriam alcançados por esses profissionais, caso lhes seja possibilitado estudar os desdobramentos inerentes ao exercício da sua atividade, não só para agir processualmente, mas, principalmente, para agir profilaticamente.

Como dito acima, hoje em dia a relação médico-paciente se dá de forma horizontal, isto é, o paciente está na mesma posição que o médico, sem subordinação, acabando de vez com a outrora relação de forma vertical, na qual o médico era endeusado pelo paciente que depositava toda sua confiança no desejo de milagre em sua cura. Grande parte dos profissionais da saúde ingressam no mercado de trabalho sem o devido preparo para lidar com as solicitações da justiça e, ainda menos, para evitar demandas judiciais. Ainda não existe, em grande parte dos profissionais, e não só os recém-chegados ao mercado, a preocupação, por exemplo, com o correto preenchimento dos prontuários e elaboração dos termos de consentimento. A maioria não é preparada durante a graduação para enxergar os seus instrumentos de trabalho como possíveis provas em processos judiciais que os envolvam direta ou indiretamente.

Corroborando com tais fatos, recentes pesquisas dão conta de um déficit de informação, inclusive, em relação aos seus próprios direitos enquanto profissionais, como, por exemplo, o uso do prontuário médico que se traduz em prova fundamental nas ações que envolvem a responsabilidade civil dos médicos. Tal capacitação almeja a aprendizagem individual e autônoma do profissional, que o leve a ampliar sua capacidade para desenvolver novas formas de atuar, bem como solucionar problemas existentes e evitar problemas futuros. Não podemos olvidar que a relação entre o profissional e seu paciente é extremamente dinâmica e complexa, portanto o agir desse profissional deve ser coerente com as regras jurídicas.

Conhecer noções que envolvem a ciência do Direito é valorizar o exercício do profissional, aprimorá-lo através da criação de novos hábitos nas formas de atuar e de relacionar-se com os pacientes, promovendo uma autonomia mais efetiva no exercício de sua atividade e protegendo-o em sua prática. Todavia, não só o profissional da saúde deve se aproximar das técnicas jurídicas, como também o inverso deve ocorrer, ou seja, os profissionais da área jurídica, advogados e magistrados, têm que entender e se inteirar da atividade médica como um todo, aprendendo suas nuances de forma a melhorar seu atendimento e sua prática jurídica.

Atualmente, temos na prática jurídica, uma batalha onde o Judiciário, pela estrita ausência de tempo e, na maioria das vezes, de conhecimento técnico na matéria médica, parte da premissa de que o laudo médico é inquestionável, até porque o maior bem tutelado pelo direito é a vida.

Em alguns Estados, já existem núcleos de apoio técnico aos magistrados na formação de seu convencimento quando da apreciação das questões clínicas apresentadas pelas partes nas ações relativas à saúde, núcleos estes, formados por profissionais capazes de prestar ao magistrado uma consultoria técnica que o oriente sobre os diversos aspectos e intercorrências que permeiam a questão, objetivando prolação de decisões judiciais com boa técnica médica, com benefícios para todos, o que resultará, também, no uso mais racional e adequado dos recursos públicos. Enfim, é iminente a aproximação técnica da área da saúde e da jurídica, através do Direito Médico e da Saúde, pois, apesar de estarem surgindo soluções, como as apontadas aqui, estamos vivendo, no dia a dia, desafios constantes já que ambas as áreas vivem em constante mutação, fazendo com que haja a necessidade de contínuo processo de integração entre os atores que compõem a judicialização da saúde: gestores, médicos prescritores, advogados, magistrados, universidades e pacientes.

_____________

*Daniel Loureiro Lima é advogado palestrante e conferencista, sócio do Escritório Sales Oliveira Lima Advogados, Conselheiro Jurídico e Científico da Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética-ANADEM.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca