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A terceirização fora do objeto social específico da empresa prestadora de serviços a terceiros

Ronald Sharp Jr. e Leonardo Bello

Este artigo propõe examinar os efeitos trabalhistas decorrentes da realização de serviços terceirizados fora do objeto social da empresa prestadora de serviços a terceiros.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Atualizado às 14:19

Um dos eixos da recente reforma trabalhista, principalmente instituída pela lei 13.467/17, que alterou a CLT, a lei 6.019/74, a lei 8.036/90 e a lei 8.212/01, foi a ampliação da terceirização para incluir as atividades-fim do tomador dos serviços. A reforma, também chamada de modernização trabalhista, traz relevantes disposições na seara do Direito Societário, em claro diálogo com o Direito Comercial/Empresarial, fenômeno aqui não desconhecido, uma vez que o texto original do art. 2º da CLT já incorporava o conceito de empresa.

Realmente, ali foram tratados temas como a responsabilidade trabalhista dos sócios retirantes e diante da sucessão de empresas, a configuração do grupo econômico, a exigência de capital social mínimo e caracterização jurídica das empresas de trabalho temporário e nas de prestação de serviços a terceiros. São questões que interessam tanto ao jus-comercialista (ou jus-empresarialista) quando ao jus-laborista.

Sensível aos aspectos societários contidos na reforma trabalhista e atenta à sua função de controle da legalidade no registro dos atos empresariais, a Junta Comercial do Rio de Janeiro, em sua Sessão Plenária de 16/11/17, editou a Deliberação Plenária 102, que estabelece os procedimentos quanto à exigência legal de capital social mínimo para registro das empresas de serviços terceirizados e de trabalho temporário e, pelo critério de natureza jurídica e objeto social, exclui certos entes empresariais do conceito de empresas para o exercício dessas atividades.

Este artigo propõe examinar os efeitos trabalhistas decorrentes da realização de serviços terceirizados fora do objeto social da empresa prestadora de serviços a terceiros.

Dispõe o artigo 170, parágrafo único, da Constituição da República que "é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei". Nesses termos, a livre iniciativa não pode ser considerada absoluta, uma vez que há restrições refletidas em leis e outros princípios, como por exemplo aqueles que regem as o objeto social das empresas e as relações laborais. A autonomia da vontade no exercício da atividade econômica sofre limitações face aos valores sociais do trabalho e à realidade que se estabelece pelos fatos que compõem a atividade de fato desenvolvida.

A forma precípua de contratação de trabalho, prestado por pessoa natural, é a relação de emprego e todo o ordenamento jurídico de proteção ao trabalho, previdenciário e tributário, está assim arquitetado. Trata-se de uma decorrência, dentro da máxima efetividade constitucional, da valorização social do trabalho em sua forma plena (art. 1º, inc. IV; e art. 170, inc. VIII, da CRFB/88), que é relação naturalmente formada entre o trabalhador e o imediato tomador dos serviços.

Com base nessa premissa, na relação de emprego e na caracterização do contrato de trabalho se aplicam o princípio da primazia da realidade e o princípio da boa-fé objetiva, a fim de que os comportamentos dos atores sociais se ajustem aos princípios e normas em vigor. Relevante destacar sob essa ótica que o objeto social compreende o escopo a que se propõe o empresário individual e a pessoa jurídica empresária, previsto no ato constitutivo (ex.: contrato social, estatuto, requerimento de empresário), com a função de definir e demarcar o âmbito dentro do qual se exerce a atividade.

A decisão de tomar parte na empresa, seja ela individual ou coletiva, utiliza como referência básica o objeto, pois qualifica o tipo empreendimento e delimita o campo material em que se desenvolvem os negócios. Serve de parâmetro não apenas aos sócios ou titulares, para que os administradores não ingressem em negócios diversos, mas também para terceiros, que podem aferir o risco de relações jurídicas mantidas em função da avaliação do objeto das empresas.

A exigência de descrição do objeto decorre dos arts. 968, inc. IV; 997, inc. II; 1015, § único, todos do Código Civil; e art. 2º, § 2º, da lei 6.404/76. O decreto 1800/96, que regula o Registro Público Mercantil a cargo das Juntas Comerciais, proíbe o registro dos atos constitutivos em que o objeto não seja preciso e detalhado (art. 53, inc. III, alínea "b", e § 2º). Até as entidades sem fins lucrativos necessitam que seus precisos fins sejam declarados no registro público competente (art. 46, inc. I, do Código Civil).

Dentro desse espírito, a Comissão Nacional de Classificação do Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão divulga o CNAE para fins de enquadramento de cada empresa, com a função de categorizar e classificar as atividades econômicas nos cadastros e registros do Governo.

É pelo CNAE, informado a partir da atividade preponderante do objeto da empresa, que se dimensiona o número de integrantes da CIPA do estabelecimento, identifica-se o grau de risco para a constituição do SESMT, fixa-se o Risco Ambiental do Trabalho (RAT) para o Seguro de Acidentes do Trabalho (SAT). O alvará municipal de funcionamento e a aprovação prévia do Corpo de Bombeiros dependem do risco mensurado pelo objeto desenvolvido no local.

O exercício irregular de objeto não constante dos atos submetidos a registro nas Junta Comerciais vai ao ponto de configurar exercício irregular de atividade empresária e de impedir o acesso à recuperação judicial da empresa (arts. 48 e 51, inc. V, da lei 11.101/05). Conclui-se daí que a prática de atos e a autuação empresarial à margem do objeto descrito no ato constitutivo perturbam e desorganizam o sistema de normas sobre ele estruturado, representando atividade exercida contrariamente ao Direito e deve acarretar consequências jurídicas unicamente sob a forma de sanção para quem assim procede.

Constitui princípio basilar de Direito que nenhuma pessoa pode fazer algo em desacordo com as normas legais e depois usufruir de uma situação de vantagem. Para se colocar ao abrigo da norma e sob a proteção da licitude da conduta, torna-se necessária uma ação conforme o Direito, e não contra ele.

Segundo a teoria dos atos próprios, elaborada a partir do princípio da boa-fé objetiva, se o empregador agiu de uma determinada forma, isto é, definindo sua atuação dentro de certo objeto, não é admissível que, em momento posterior, ao ser fiscalizado, venha a suscitar argumentos em contradição com a sua própria conduta anterior, afirmando que seu comportamento era o adequado. Afinal, nemo venire contra factum proprium.

Mesmo que admitida a terceirização em qualquer atividade pela lei 6.019/74, com as modificações introduzidas pela lei 13.467/07, mas coerente com a racionalidade do regramento sobre o objeto desenvolvido pelas empresas, a realização da atividade de prestação de serviços a terceiros fora do escopo empresarial do prestador induz à ilicitude da terceirização e traz, como consequência inevitável, a caracterização do vínculo diretamente com o tomador dos serviços.

Portanto, a partir da realidade da prestação dos serviços a terceiros em desconformidade com o objeto social da prestadora, que deve ser sempre preciso e detalhado, em clara violação às diretrizes constitucionais e legais, desaparece a permissão legal concedida para a terceirização e o aspecto formal que exsurge dos contratos eventualmente celebrados, aplicando-se a regra geral de proteção ao trabalhador pela formação do vínculo com quem diretamente lhe toma os serviços.

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*Ronald Sharp Jr. é auditor-fiscal do trabalho, mestre em Direito e professor da pós-graduação da FGV-Rio e IBMEC-Rio.

*Leonardo Bello é auditor-fiscal do trabalho, mestre em Direito e professor da pós-graduação da FGV-Rio e IBMEC-Rio.

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