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Boa-fé objetiva e crime de colarinho branco

Andrea Marighetto

Vale frisar que a colaboração na entrega das informações e dos documentos por parte do colaborador de Justiça constitui conduta material objetiva que comprova em si, que o dever de comportar-se segundo boa fé objetiva foi respeitado.

quinta-feira, 8 de março de 2018

Atualizado às 09:18

Os acordos de colaboração premiada, pelo fato de terem natureza negocial, devem seguir os princípios da teoria geral do negócio jurídico, como o da boa-fé objetiva. É preciso que se conheça, portanto, a lógica dos deveres do colaborador de Justiça.

A razão do dever da boa-fé objetiva, como disciplinada no Código Civil, reside não na norma que obriga a respeitar os negócios, mas nos negócios em si. Ou seja, se o acordo de colaboração premiada tem por objeto o compromisso de fornecer informações, documentos e provas, os deveres de boa-fé devem especificar o conteúdo do acordo, de forma que o material seja concretamente entregue, além de garantir que os colaboradores se afastem do crime.

Consequentemente, é irrelevante a análise limitada ao elemento subjetivo ou psicológico que concretiza a ação do colaborador. Isso para uma razão muito simples: a função e a própria ratio do instituto do acordo de colaboração exigem que o colaborador aja de forma leal, proba e honesta para que o Ministério Público e a Justiça possam descobrir, reconhecer e conseguir provas e fundamentos de fatos que permitam o combate ao crime organizado, de acordo com quanto previsto pela lei 12.850 de 2013.

Tentando identificar o que deveria ser considerado o objeto da prestação por parte do colaborador há que se evidenciar que (i) caso a prestação requerida seja o fornecimento de provas, a conduta em boa-fé objetiva deverá ser identificada na efetiva "entrega" de algo de extremamente "material", como a comprovação da existência de um fato, um documento, uma informação, um áudio, um vídeo, que permita a reconstrução do crime ou da organização criminosa; diversamente, (ii) caso a prestação requerida seja o o compromisso de se afastar do crime, a conduta em boa-fé objetiva será identificada na efetiva não realização da conduta criminosa, nem sob forma do "crime tentado".

A boa-fé objetiva responde, portanto, principalmente a uma exigência de lealdade, no sentido de representar um modelo de conduta objetivo, material e socialmente reconhecido, pelo qual se impõe o poder/dever que cada pessoa seja obrigada a comporta-se ajustando a própria conduta a esse modelo comportamental, baseado no respeito dos princípios gerais da honestidade, probidade e lealdade.

Em particular, a doutrina mais consolidada entende que o modelo de conduta deve-se entender no sentido de qualificar a boa-fé objetiva em uma normativa de comportamento leal ou de honestidade publica, ou seja, verso a sociedade e as suas regras. Por isso, a boa-fé exige e impõe que o comportamento seja examinado de forma no conjunto fático e temporal das circunstancias de cada caso.

A boa-fé objetiva concretiza um verdadeiro dever jurídico, um dever de ética e lealdade, requisito essencial da conduta, ainda que não expressamente previsto por escrito contratualmente. A violação do dever de boa-fé objetiva exprime-se no princípio geral de solidariedade social que, na relação negocial, implica o dever de reciproca lealdade na conduta, independentemente da existência de específicas obrigações contratuais ou do que a lei prevê especificadamente em relação a determinadas situações.

A boa-fé objetiva responde, portanto, a essa exigência de tutela na salvaguarda do interesse da outra parte, na medida em que os comportamentos de cada parte sejam realizados com a finalidade de satisfazer o interesse do outro. Evidentemente, no caso da colaboração premiada, o interesse do Ministério Público é o conteúdo das finalidades perseguidas pela lei 12.850 de 2013.

O princípio da boa-fé objetiva, portanto, deve ser interpretado e aplicado de acordo com o princípio da correnteza e do justo processo, no sentido que a obrigação de se comportar de acordo com boa-fé objetiva, deve abranger cada fase da vida do negócio jurídico, até a eventual fase judiciaria de acertamento da conduta, de forma que seja evitado qualquer tipo de abuso instrumental através da utilização de instrumentos processuais que o ordenamento oferece às partes.

O ordenamento, através da boa-fé objetiva, põe uma regra geral, no sentido de recusar tutelas a poderes, direitos e interesses em violação das corretas regras de exercício, realizados de forma contraria à ratio da boa-fé objetiva, ou seja, sem que as obrigações tenham sidos realizadas objetivamente de acordo com a finalidade do instituto.

Quando existe boa-fé objetiva, o ordenamento geralmente reconhece a conservação dos efeitos dos efeitos jurídicos nos quais a outra parte negocial tinha confiado em função - justamente - da boa-fé objetiva ou da lealdade e honestidade do agente. Dessa forma, a finalidade do instituto é a de impedir que cada parte consiga ou conserve vantagens talvez fruto de um exercício formal da ação, mas violando a lealdade.

É, portanto, importante que a boa-fé objetiva não seja confundida com a boa-fé subjetiva. Na boa-fé subjetiva, em geral, a pessoa atua no convencimento de agir em conformidade ao Direito, ou seja, ignora de violar ou prejudicar o direito dos outros.

A doutrina e a jurisprudência consolidadas e comparadas da teoria do negocio jurídico frisam que a boa fé objetiva não se contrapõe à má-fé, sendo que o papel de contraposição à má-fé é realizado pelo instituto da boa fé subjetiva, a qual - sim - refere-se ao estado psicológico e subjetivo da pessoa: uma pessoa é em boa fé (subjetiva) quando age imaginando que a sua ação não causará dano a ninguém ou que o seu comportamento não violará princípios ou normas de lei e/ou de Justiça.

Pela própria natureza da colaboração premiada, o instituto exige o respeito do mais amplo e complexo principio da boa fé objetiva, sendo que - unicamente colaborando material e objetivamente de forma leal, honesta e proba - será possível criar, obter, relevar, descobrir um meio de prova objetivo, que possa concretamente ajudar o MPF alcançar aqueles resultados indicados pelo art. 4º da lei 12.850 de 2013.

Vale frisar que a colaboração na entrega das informações e dos documentos por parte do colaborador de Justiça constitui conduta material objetiva que comprova em si, que o dever de comportar-se segundo boa fé objetiva foi respeitado. O estado psicológico do colaborador releva unicamente sob forma de ma fé, no sentido do colaborador agir ou ter agido dolosamente para que a finalidade do acordo não seja ou não tiver tido realizada e o MPF não consiga alcançar aqueles resultados indicados pelo art. 4º da lei 12.850 de 2013.

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*Andrea Marighetto é jurista e advogado italiano.

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