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Ainda a questão da prisão em segunda instância

José Barcelos de Souza

Executar uma pena privativa da liberdade que ainda não está definitivamente imposta, dada a possibilidade de ser a sentença reformada por força do recurso cabível, não se coaduna com o direito criminal.

terça-feira, 10 de julho de 2018

Atualizado em 24 de setembro de 2019 17:45

Uma das questões mais discutidas na atualidade, o cabimento da prisão como decorrência de condenação criminal em segunda instância, mas antes do trânsito em julgado, vem ultimamente dando margem a críticas ferinas ao STF, especialmente em cartas e e-mails a redações de jornais, diante da posição de ministros que, discrepando da jurisprudência predominante na Corte a respeito da matéria, têm cumprido seu dever, como é da tradição da casa, de proteger a liberdade individual contra ilegalidades, com a concessão da competente ordem de soltura.

É compreensível, ante a necessidade do combate à impunidade, a indignação contra a medida que favorece a liberdade, providência que, entretanto, tem inteira legitimidade.

Sinto-me muito a vontade para dizê-lo, visto que, já vai para uma década, quando o problema da execução da pena em caso de decisão condenatória confirmada ou proferida em segunda instância era pouco debatido, debrucei-me sobre o assunto, formando entendimento contrário, em artigo que veio a ser acolhido nas páginas preciosas da tradicional Revista Forense, editada no Rio de Janeiro.

Tempos depois, sustentávamos igual entendimento em capítulo do livro Execução Penal - Constatações, Criticas, Alternativas e Utopias, coordenado pelos ilustrados Professores Antônio de Padova Marchi Júnior e Felipe Martins Pinto, Juruá Editora, Curitiba, 2008, p. 107-118.

E, ainda recentemente, voltamos ao assunto, cm artigos na revista Magister, de São Paulo, e na revista do Instituto de Ciências Penais, de Belo Horizonte.

A matéria, porém, parece ter muito a ver com o Direito Penal de emergência, o que quase sempre se tem mostrado inconveniente ou danoso. E aquilo que seria realmente emergencial, agora, não mais diria respeito à legislação, mas a decisão do Poder Judiciário.1

Haja vista que o CNJ veio, algum tempo atrás, não só a adotar a ideia da execução provisória em matéria penal, mas também a instituir um procedimento para o caso, com a aprovação, em sessão plenária do dia 29 de agosto de 2006, da Resolução 19. O caráter emergencial da regulamentação é refletido também na circunstância de a dita resolução estabelecer que cada Corregedoria de Justiça deveria adaptar suas Normas de Serviço às disposições dela, no prazo de 180 dias.

A Resolução foi por nós criticada em artigo publicado no jornal da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais2 e no informativo Migalhas, com o título "CNJ avança sinal e atropela a lei" (uma alusão à usurpação da competência legislativa do Congresso Nacional, com a consequência de atingir em cheio a lei ordinária).

Com efeito, o CPP não reconhecia, e agora a Lei de Execução Penal igualmente não aceita, a execução provisória de pena privativa da liberdade, que seria uma como que antecipação, ou adiantamento do cumprimento da pena.

É a posição que nos parece mais adequada. Não há lugar, no crime, para uma execução na pendência de recursos, chamada execução provisória, como pode ocorrer no cível, não só porque a lei dela não cuida, mas também porque se trataria de medida inadequada.

Executar uma pena privativa da liberdade que ainda não está definitivamente imposta, dada a possibilidade de ser a sentença reformada por força do recurso cabível, não se coaduna com o direito criminal. Muitas vezes disso resultaria uma injustiça irreparável. Ninguém, pedido de desculpas algum, indenização alguma tiraria das costas do cidadão injustamente preso a cadeia que levou.

Mesmo no cível, área em que não está em jogo a liberdade individual, a execução provisória, ali admitida, não chega a extremos, como já lembrou o em. Min. Marco Aurélio.

Até mesmo nas execuções fiscais, em que a Fazenda goza de privilégios, não permitiu a lei que se entregasse o ouro ao fisco antes de transitar em julgado a decisão que tiver rejeitado os embargos do executado, como expusemos em nosso já esgotado Teoria e Prática da Ação de Execução Fiscal e dos Embargos do Executado.

O STF, porém, no julgamento do HC 126.292, de São Paulo, em sessão plenária, de 17.02.216, por maioria de votos, mudou a anterior jurisprudência da Corte, vindo a adotar, por maioria de votos, o entendimento seguinte, como está na ementa do acórdão:

"1. A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal. 2. Habeas corpus denegado".

Como se vê, a decisão entendeu que a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação não fere preceito constitucional. Posto discordemos de semelhante entendimento, vamos admitir, apenas para argumentar, que ele é correto.

Assim, correto ou não o entendimento, não estaria ele a impedir que a lei venha a dispor contra ou, muito menos, a favor da execução provisória da pena.

Não chegou o Tribunal, porém, a pronunciar-se, na ocasião, sobre a questão da influência da lei ordinária que, como já foi dito de início, contém dispositivo expresso impeditivo da execução provisória.

Nestas condições, como aquele julgamento ficou apenas com a matéria constitucional, sem se pronunciar quanto ao outro aspecto da questão, o ministro, desembargador ou juiz que julgar no sentido da ilegalidade da execução provisória da pena não estaria se posicionando, como equivocadamente muitas pessoas vêm acreditando, contra aquele referido julgamento do STF, na sessão plenária de 2016.

De qualquer modo, se a lei ordinária não comtempla a figura do carcer ad poenam senão depois de sentença condenatória transitada em julgado, impossibilitando, assim, uma prisão automática por força da condenação, não está afastada, por outro lado, como já não estrava antes mesmo da reforma processual de 2008, que deixou claro o cabimento da medida, a possibilidade da imposição de uma prisão preventiva, ou seja, de natureza cautelar, decretável no próprio acordão condenatório.

Nosso direito permite, assim, que, durante o curso do processo, em qualquer de suas fases, não se deixe em liberdade quem deva ser preso. Para tanto, poderá o juiz ou tribunal decretar, com a necessária fundamentação, separando, assim, o joio do trigo, a prisão provisória do réu, já condenado ou não, o que é diferente de uma automática e ilegal execução provisória de pena que não está ainda definitivamente imposta, eis que sujeita a recurso.

Nossa colocação teve o valioso apoio de Marcellus Polastri Lima, no seu Curso de Processo Penal (Brasília: Gazeta Jurídica, 9ª edição, 2016, págs. 834/841), que já havia bem esclarecido: "Prisão preventiva, obviamente, no sentido amplo de prisão provisória, embasada nos requisitos cautelares e não 'na necessidade de prisão para apelar'"3, ou seja, uma prisão preventiva lato sensu, uma prisão de cunho preventivo, ou cautelar.

O que tem faltado, para que não se mostre ilegal uma prisão após condenação em segunda instância, é que a medida seja fundamentadamente decretada ou confirmada no próprio acórdão, quanto à sua conveniência ou necessidade, já que a prova do fato e os indícios da autoria já decorrem da própria decisão condenatória. Omisso o acórdão, obviamente será ilegal uma prisão, por isso que ela não decorre automaticamente de condenação que não tenha transitado em julgado. Só depois disso haverá lugar para uma modalidade de prisão provisória - também prevista em lei, além daquelas mais conhecidas - que tenho denominado de "preparatória para a execução da pena privativa da liberdade", que se realiza por mandado de juiz da execução, caso esteja solto o réu condenado. Se já estiver preso provisoriamente, deverá apenas ser providenciado o expediente necessário para que tenha lugar o cumprimento da pena.

As garantias constitucionais e legais são necessárias. Sem elas, todo mundo - inclusive os escrevedores de cartas e sueltos - estaria, por qualquer coisinha, sujeito ao "prende e arrebenta" do arbítrio policial.

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1 A questão da emergência penal foi bem abordada pelo Promotor de Justiça Fauzi Hassan Choukr, de São Paulo, em tese defendida na Faculdade de Direito da USP, de cuja banca examinadora tivemos a honra de participar.

2 Jornal O Sino do Samuel, Belo Horizonte, nº 90, setembro/outubro de 2006, p. 6.

3 LIMA, Marcellus Polastri. A Tutela Cautelar no Processo Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.289-290.

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*José Barcelos de Souza é membro do Conselho Superior do Instituto dos Advogados de Minas Gerais.

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