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O chapéu do promotor

Rodrigo Roca

A cortesia arrancada sob correntes não expressa o exercício da autoridade ou do poder, mas da força. E quando isto acontece, a democracia se encerra e voltamos ao medievo, das bestas e das maçãs.

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Atualizado em 25 de setembro de 2019 18:02

Eram 18 de novembro do ano de 1307 e a multidão se amontoava na praça para assistir ao desfecho do grande evento. Whilhelm Tell, famoso por sua destreza com a besta (espécie de arco e flecha movido a gatilho, com disparo horizontal), fora obrigado por Herman Gessler, Governador austríaco tirano, a fazer pontaria numa maçã equilibrada na cabeça do próprio filho. O motivo? Falta de respeito.

 

É que o governador havia colocado um chapéu pintado com as cores da Áustria em cima de um poste, determinando, por decreto, que qualquer pessoa que passasse por ele, deveria fazer uma reverência em sinal de respeito, sob pena morte.

 

Mas Tell, desavisado, ao passar pelo local com o seu filho menor, não cumprimentou o chapéu.

 

Alertado por um passante de nome Miranda (há divergência sobre o real nome do delator), o Governador mandou que levassem os infratores à sua presença e disse ao pai: "soube da sua habilidade com a besta e vou te dar uma chance de se livrar da pena capital. Se você acertar uma maçã disposta na cabeça do seu filho com o seu artefato, eu os deixarei seguir viagem. Se não, sua pena será eterna...".

 

No dia marcado, Tell acertou a maçã, poupando a própria vida e a de seu filho.

Passados mais de sete séculos, o promotor de Justiça André Guilherme, do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, ressuscitou o espírito perturbado de Gessler num episódio que já nasceu como um clássico da tirania.

 

Ao entrar na Ala E do presídio de Bangu 8, onde se localizam as celas de cinco réus da operação Lava Jato, dentre as quais está a do ex-governador Sérgio Cabral, bradou, tal e qual as patéticas personagens dos seriados policiais: "Detentos, todos de cabeça para baixo e de frente para a parede!"

 

Ao ser questionado por Cabral sobre o motivo daquele procedimento, atípico para a unidade - que abriga presos que nenhum risco oferecem aos circunstantes - o Promotor "determinou" que ele fosse encaminhado à solitária por sua petulância, fazendo registrar que, mesmo da cela do isolamento, o ex-governador ainda o olhava com falta de respeito.

 

De nada adiantou a Lei de Execução Penal dizer que os presos devem ser tratados pelo nome e não como números ou por epítetos que lhes reduza a dignidade; a Constituição assegurar tratamento decente, pelo poder público, a qualquer pessoa, presa ou não, e a Lei de Abuso de Autoridade prever como crime a execução de medida privativa da liberdade sem as formalidades legais.

 

Àquela altura nada mais importava; eram apenas os dois: o Promotor, alter ego de Gessler, e o ex-governador, experimento dos mimos daquela alma infante.

 

À noite do mesmo dia, a atrabiliária "ordem" foi cassada pelo atento Juízo da Vara de Execuções Penais do Rio de Janeiro. E Sérgio Cabral pode voltar à cela comum.

 

Depois de ter sido arrastado por correntes em via pública, o ex-governador não imaginou que pudesse ser tratado de maneira tão aviltante, como a que lhe submeteu o distinto Promotor (creia-se, de Justiça!) e, mais uma vez, buscará perante os Órgãos competentes que a lei seja aplicada ao citado representante do Ministério Público.

 

Mas com um direito que o dr. André Guilherme não lhe concedeu: o de responder através do devido processo legal e perante a autoridade competente, antes de qualquer decisão.

 

De tudo isso fica a reflexão. A cortesia arrancada sob correntes não expressa o exercício da autoridade ou do poder, mas da força. E quando isto acontece, a democracia se encerra e voltamos ao medievo, das bestas e das maçãs.

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*Rodrigo Roca é advogado.

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