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Psicopatia jurídica - A contradição entre o agir e o dizer na solução dos conflitos trabalhistas

Não fosse a resistência generalizada às práticas alternativas de solução de conflitos, casos como estes certamente seriam resolvidos pela mediação.

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Atualizado em 24 de setembro de 2019 16:37

Ouvi de um colega que o mundo jurídico parece sofrer de esquizofrenia.

 

Diariamente se reclama da lentidão do Poder Judiciário, da sua ineficiência, da insatisfação de quem dele se socorre. É fato: o sistema está assoberbado, os prazos são longos e os resultados, muitas vezes, não atendem às expectativas sequer daqueles que, em tese, se sagram vencedores.

 

O legislador, então, espelhando tendências estrangeiras, oferece aos cidadãos a oportunidade de resolver seus conflitos de forma mais ágil e eficiente: insere no ordenamento os meios alternativos de solução de conflitos.

 

Traça os parâmetros daquilo que pode ser levado à mediação e arbitragem, edita normas que vão dar os contornos a esse novo sistema, mas não retira de ninguém a possibilidade, constitucionalmente garantida, de levar ao Judiciário sua demanda.

 

Está dada à sociedade a oportunidade tão aclamada, sem que lhe fosse tolhido nenhum direito.

 

Comemoremos? Nem todos.

 

A comunidade jurídica, com óbvias exceções, viu a oportunidade com muita desconfiança e tratou logo de questionar: mas tem força de sentença? Mas vale como se fosse título executivo judicial?

 

Ora, se o que se pretende é um título executivo judicial, que se submeta às formalidades e incertezas do Poder Judiciário.

 

Muitos insistem em querer um atalho para o mesmo caminho, sem conseguir enxergar que, às vezes, virar à esquerda ou à direita pode revelar um horizonte novo, mas, não por isso, pior.

 

A formação oferecida nas escolas de direito brasileiras ensina que o bom advogado é aquele que combate, que assume a posição adversarial e não pode se despir dela.

 

Não se levam em conta os reais interesses das partes envolvidas. É comum que o pedido posto não seja exatamente o que almeja a parte que o postula.

Muitos colegas seguem orientando seus clientes a buscar a solução judicial, delegam ao Poder Judiciário a solução daquela demanda. Depois reclamam da forma, do procedimento e do próprio desfecho.

 

A psicopatia parece ser ainda mais grave quando se trata da comunidade jurídica trabalhista.

 

O dogma de que os direitos trabalhistas são indisponíveis, sagradas verbas de natureza alimentar, aliado à crença de que o empregador é, sempre, o vilão que quer abocanhar a vovozinha, sua neta e os docinhos, coloca, irremediavelmente, o trabalhador em posição inferiorizada, necessitado do manto de proteção do Estado de forma contínua.

 

Não se pretende, aqui, ignorar as inúmeras fraudes que ocorrem no curso dos contratos de trabalho e das próprias reclamações trabalhistas. Não se pode negar a exploração de trabalhadores e o abuso por parte dos empregadores.

 

O que espanta, contudo, é a sintomática insistência que os operadores do Direito do Trabalho têm em repelir, antes mesmo de considerar, os meios alternativos de solução de conflitos extrajudiciais. Beira o atavismo.

 

A justificativa esbarra, invariavelmente, no mesmo argumento: a indisponibilidade dos direitos trabalhistas.

 

Natural, portanto, que se pudesse crer que a Justiça do Trabalho zela, com esmero, pela garantia dos direitos tutelados.

 

Pois bem. Nos últimos anos tem crescido o movimento pela conciliação na Justiça do Trabalho, muitos projetos e recomendações para que as partes possam celebrar acordos no curso do processo, sob os cuidados do Estado.

 

A menos que tenha havido procedimento anterior diverso, nas últimas décadas o que se vê é um leilão de propostas durante as sessões de conciliação judiciais trabalhistas conduzidas pelos Magistrados especializados. O que se baliza é o dinheiro e não o direito.

 

A sistemática é quase sempre a mesma: "Há proposta?", "Quanto?", "Aceita?", "Não?", "Contraproposta?", "É possível aumentar?", "Tudo bem, então a proposta deste Juízo é tanto."

 

E segue o leilão de valores. Não de direitos.

 

Não tenho notícia de que tenha havido conciliação sobre direitos na esfera trabalhista: "A reclamada compromete-se a quitar as horas extras de todo o contrato de trabalho, com os respectivos reflexos e recolhimentos previdenciários e de FGTS.". Jamais.

 

Aliás, a prática demonstra que sequer pode ser discutido o "mérito" na negociação de acordo na esfera trabalhista. Ademais, o pagamento em regra enseja quitação geral do contrato de trabalho, não importa se o que se discute é o salário não quitado ou a viagem de bonificação para Las Vegas.

 

Não raro, a moeda de pressão para celebração do acordo é o próprio Judiciário, "Pense bem, se o senhor não aceitar isso hoje, seu processo pode demorar anos para ser concluído." É como se, nesse momento, o Judiciário fosse seu alter ego.

 

Os direitos trabalhistas parecem se tornar altamente disponíveis. Mas, ainda assim, em um ambiente protegido - ainda que não se saiba exatamente de quê ou quem.

 

É nesse ponto que parece incompreensível a resistência aos meios alternativos de solução de conflitos. A possiblidade de as partes negociarem já está posta há tempos.

 

Mesmo após a inovação trazida pela reforma trabalhista, a incerteza é tamanha que faz com que muitos dos advogados não recomendem a transação extrajudicial, sob pena de terem que se explicar aos clientes caso o resultado seja posteriormente anulado.

 

Eis o impasse que apenas poderá ser superado quando a crença na voluntariedade do empregado passar a ser levada a sério e a posição adversarial deixar de se sobrepor à conciliação dos interesses das partes.

 

A cultura adversarial está tão arraigada que, muitas vezes, ainda que todos os envolvidos no processo saibam que o melhor seria buscar uma forma alternativa de solução do conflito, não o fazem em razão da insegurança jurídica.

 

Esta incerteza diz respeito, especialmente, à validade dos acordos celebrados extrajudicialmente. Não há, mesmo depois da inovação da reforma trabalhista, como garantir que, levada à homologação judicial, a transação, mesmo se entabulada mediante um procedimento sério de mediação, prevaleça.

 

E nesse cenário, é grande o número de conflitos inadequados que são levados ao judiciário. Inadequados porque os interesses das partes não se resumem à contenda judicial.

 

Os casos de assédio moral são emblemáticos.

 

Muitas empresas adotam políticas internas e regulamentos que inibem e condenam o assédio moral, mas, ainda assim, é possível que um de seus prepostos, à revelia de todos os valores institucionais de seu empregador, assedie um colega.

 

Na hipótese de o caso ser levado à apreciação do Poder Judiciário, a empresa será acionada e deverá responder e arcar com eventual condenação.

 

A postura adversarial exigida pelo sistema fará com que o empregador reclamado conteste o mérito da ação, negue o fato e tente angariar provas contrárias ao alegado, ainda que isso contrarie frontalmente sua política interna e princípios empresariais.

 

É difícil acreditar que o empregado que enfrentou uma situação de assédio moral queira se expor a uma sessão fria de audiência e rememorar todos os vexatórios momentos a que foi submetido. Do mesmo modo, as empresas que levam o tema a sério não se sentem confortáveis em contrariar os valores que custaram a propagar.

 

Não fosse a resistência generalizada às práticas alternativas de solução de conflitos, casos como estes certamente seriam resolvidos pela mediação, por exemplo. Os interesses das partes seriam atendidos de forma plena, inclusive com confidencialidade.

 

No panorama atual, o conflito segue limitado ao pedido, restrito aos contornos da petição inicial e da defesa, com duas possibilidades de resolução: acordo mediante a barganha de valores ou decisão judicial proferida com fundamento ao que se conseguiu trazer ao processo.

 

E isso parece satisfazer aqueles que lidam com o Direito do Trabalho. Aquele mesmo empregado altamente humano, protegido e desigual (em relação ao seu empregador) assume papel diametralmente oposto na dinâmica dos processos trabalhistas - torna-se um ser quase que inanimado, cujo valor humano do trabalho deve estar encaixado em alguma equação jurídica positiva.

 

Parece ser mesmo um distúrbio que assolou a comunidade jurídica trabalhista. Resta aos sãos a missão de enfrentar o atávico preconceito a qualquer interferência não estatal às questões afetas ao direito e ao processo do trabalho.

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*Andréa R. G. Presotto é advogada. Mestre em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Previdenciário.

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