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Decreto que regulamenta posse de armas de fogo mantém ilegalidade combatida pelos contrários ao Estatuto do Desarmamento

O governo perdeu uma grande oportunidade de, além de solucionar um problema de forma extremamente simples, apenas revogando os dispositivos ilegais do decreto, fazendo as alterações pontuais e necessárias sem que se tenha que novamente enfrentar esse tema brevemente, também deixou de cumprir com uma promessa de campanha que visava a extinção do requisito subjetivo para aquisição de uma arma de fogo.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Atualizado em 11 de outubro de 2019 16:47

Analisando o recentíssimo e conturbado decreto que promete "facilitar" a posse de armas de fogo no Brasil, mesmo com uma visão mais otimista sobre o tema, verifica-se que restou mantida a principal questão objeto de críticas não só pelos contrários a posição desarmamentista do Estatuto, mas também pelos amantes da técnica jurídica subordinados ao princípio da legalidade.

Fazendo uma sintética contextualização do tema, imprescindível para melhor compreensão dos equívocos mencionados, impõe verificarmos que, o Estatuto do Desarmamento (lei 10.826/03), desde o seu nascimento, dispusera em seu artigo 4º os requisitos para o exercício do direito à aquisição (posse) de arma de fogo, dentre os quais se destaca a "declaração de efetiva necessidade", expressada de maneira objetiva no caput do referido artigo, vejamos:

"Art. 4º Para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado deverá, além de declarar a efetiva necessidade, atender aos seguintes requisitos:"

Nota-se que da leitura integral do Estatuto, não há mais qualquer outro tipo de menção a esta declaração, de modo que, por conclusão lógica, do próprio texto em destaque, não resta qualquer dúvida que se trata de ato declaratório personalíssimo e unilateral, a ser executado pelo interessado na aquisição de arma de fogo.

Nesse sentido, em virtude de o Estatuto do Desarmamento carecer de norma regulamentadora, foi-se então editado e publicado pelo presidente em exercício, Luiz Inácio Lula da Silva, o decreto regulamentador 5.123/04.

Referida norma dispunha de inúmeros artigos, dentre eles o artigo 12, que tratou de repetir os requisitos para a aquisição de arma de fogo (posse), já anteriormente previstos no artigo 4º do Estatuto do Desarmamento, havendo apenas uma singela alteração na organização dos requisitos, pois a partir de então a "declaração de efetiva necessidade" passou a constar junto com os demais incisos e não mais no caput do artigo, como previsto anteriormente no Estatuto, vejamos:

"Art. 12. Para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado deverá:

I - declarar efetiva necessidade;"

Todavia, sob essa nova roupagem, por motivações cuja ciência não possuem relevância à análise técnica aqui realizada, os autores desse primeiro decreto regulamentador inseriram uma sutil alteração textual especificamente no que concernia ao cumprimento do requisito "declarar efetiva necessidade", pois o §1º do artigo 12 do decreto 5.123/04, determinava que a respectiva declaração deveria "explicitar, os fatos e circunstâncias justificadoras do pedido e que esses seriam examinados pela Polícia Federal, segundo as orientações expedidas pelo Ministério da Justiça, vide:

"§ 1º A declaração de que trata o inciso I do caput deverá explicitar os fatos e circunstâncias justificadoras do pedido, que serão examinados pela Polícia Federal segundo as orientações a serem expedidas pelo Ministério da Justiça."

Assim, na tentativa de cumprir com a inovadora responsabilidade fiscalizatória disposta agora no decreto regulamentador, em setembro de 2005 foi publicada pelo diretor geral do departamento de Polícia Federal, órgão subordinado ao Ministério da Justiça, a IN 023/2005-DG/DPF, que além de replicar a peripécia de que caberia ao interessado apresentar a declaração de efetiva necessidade "expondo os fatos e as circunstância justificadoras", trouxe em seu artigo 6º, §1º, o arremate que faltava para a alteração ilegal trazida no decreto, pois tal dispositivo concedeu à autoridade competente o poder facultativo de exigir documentação que de fato comprovasse essa declaração, vejamos:

"§ 1º. A autoridade competente poderá exigir documentos que comprovem a efetiva necessidade de arma de fogo."

De plano, se verifica a evidente alteração dos requisitos previstos no Estatuto, via decreto regulamentador, que transformou a concessão do direito à posse de arma de fogo que antes era consolidado via ato vinculado da administração pública, em concessão via decisão discricionária, em outras palavras, a lei 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento), norma principal sobre a matéria, tratou de exigir requisitos objetivos para concessão do direito a posse de arma de fogo, enquanto o Decreto que visava regulamentar o referido Estatuto, trouxe requisito de maior onerosidade, transformando-a concessão do direito à posse de arma de fogo em um ato subjetivo do delegado da Polícia Federal.

Aliás, é preciso que se entenda que a alteração do requisito "declarar" por "demonstrar" a efetiva necessidade, além de ser manifestamente mais oneroso, também criou uma situação em que tanto a posse quanto o porte de arma de fogo dependeriam de decisão subjetiva da Administração Pública.

Com efeito, a matéria é tão negligenciada pelo nosso ordenamento jurídico, que ainda hoje, por completa ignorância a alteração trazida pelo decreto regulamentador, as doutrinas de direito administrativo insistem em utilizar a concessão do porte e posse de armas de fogo como exemplo "perfeito" de ato administrativo discricionário e vinculado, respectivamente.

Contudo, ainda que o ordenamento jurídico não tenha se debruçado sobre a análise específica do caso envolvendo o Estatuto do Desarmamento e seu decreto regulamentador, é pacífico o entendimento, sob a ótica do princípio da legalidade, que permanece a máxima da "ubi lex non distinguit nec nos distingueres debemus", ou seja, não cabe ao intérprete, ainda que este seja regulamentador, estabelecer restrições adicionais a aquilo que a lei não fez, vejamos:

"O texto constitucional brasileiro, em seu art. 5º, II, expressamente estatui que: 'Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei'.

Note-se que o preceptivo não diz 'decreto', 'regulamento', 'portaria', 'resolução' ou quejandos. Exige lei para que o Poder Público possa impor obrigações aos administrados. É que a Constituição brasileira, seguindo tradição já antiga, firmada por suas antecedentes republicanas, não quis tolerar que o Executivo, valendo-se de regulamento, pudesse, por si mesmo, interferir com a liberdade ou a propriedade das pessoas.

(...)

Em suma: consagra-se, em nosso Direito Constitucional, a aplicação plena, cabal, do chamado 'princípio da legalidade', tomado em sua verdadeira e completa extensão. Em consequência, pode-se, com Pontes de Miranda, afirmar: 'Onde se estabelecem, alteram ou extinguem direitos, não há regulamentos - há abuso de poder regulamentar, invasão de competência legislativa. O regulamento não é mais do que auxiliar das leis, auxiliar que sói pretender, não raro, o lugar delas, mas sem que possa, com tal desenvoltura, justificar-se e lograr que o elevem à categoria de lei."1

Ocorre que, apesar da obviedade, o texto do decreto que regulamenta o Estatuto, publicado pela presidência da República em exercício à época (2002-2006), e que vigorava sem alterações relevantes até a edição e publicação do decreto 9.685/19, era todo um arcabouço jurídico, por meio de disposições contidas no antigo §1º do artigo 12 do decreto regulamentador 5.123/04 e §1º do artigo 6º da IN 023/2005-DG/DPF, de autoria do diretor geral do departamento de Polícia Federal, que acabaram por transformar o requisito de "declaração de efetiva necessidade", em "comprovação de efetiva necessidade", ou seja, um requisito subjetivo e consequentemente, tornando a concessão do direito à posse de arma de fogo, um ato administrativo discricionário.

Contudo, apesar de consistir em ilegalidade de simples visualização, esta jamais foi corrigida, tanto pelo próprio poder Executivo como também pelo Judiciário, que sempre pareceu não possuir qualquer interesse em julgar as ações propostas sob o tema.

Bolsonaro sempre foi um crítico desse assunto, inclusive fazendo menção específica sobre a necessidade de extinguir esse critério subjetivo ilegal para a aquisição de uma arma de fogo.

Todavia, ao que parece a ânsia de solucionar esse problema, buscando "facilitar" a concessão do direito à posse de arma de fogo, tornando-a novamente acessível mediante o preenchimento de requisitos objetivos, somado a falta de conhecimento das inúmeras normas específicas que dispõem sobre o assunto, levaram o Governo a, de maneira confusa, não solucionar o problema de subjetividade, criando apenas uma ferramenta imediata de presunção de cumprimento, e que a longo prazo se mostra como um requisito mais rigoroso que o próprio critério subjetivo criado pelo decreto regulamentador 5.123/04.

Veja-se, o decreto 9.685/19, alterou o antigo §1º do artigo 12 do decreto regulamentador 5.123/04, que antes dispunha que caberia ao solicitante que buscasse a compra de uma arma de fogo, além de "declarar a efetiva necessidade, explicitar os fatos e circunstancias que justificavam o pedido", sendo tais fundamentos examinados pela Polícia Federal, inclusive podendo esta exigir documentação comprobatória dessas afirmações, conforme garantido pelo §1º do artigo 6º da IN 023/2005-DG/DPF.

Já com a nova redação trazida pelo decreto 9.685/19, as informações prestadas na referida declaração passarão a possuir presunção de veracidade dos "fatos e circunstâncias" afirmados, contudo, além de continuarem sendo examinadas pela Polícia Federal, constam expressamente como motivo para indeferimento de pedido, caso seja "comprovado que o requerente prestou a declaração com afirmações falsas", conforme o novo parágrafo §9º, inciso II, alínea a), do artigo 12 do decreto 5.123/04.

Ou seja, houve apenas uma "inversão do ônus", cabendo agora à Polícia Federal a comprovação da falsidade das informações.

Na prática, muito embora agora existam as situações em que a efetiva necessidade será presumida, conforme o rol taxativo do artigo 12, §7º do decreto regulamentador, restou mantido a ilegalidade contida no antigo texto do decreto regulamentar.

No caso ao invés de sanar o problema apenas com a revogação dos dispositivos que obrigavam o requerente a justificar e comprovar a efetiva necessidade, deixando a pura e simples letra da lei contida no caput do artigo 4º do Estatuto do Desarmamento, que de maneira clara exige apenas a "declaração de efetiva necessidade", o atual governo mantém as alterações, repita-se ilegais, garantindo novamente que o ato de "declarar" previsto no Estatuto na verdade é desvirtuado para "comprovar" pelo decreto.

Ademais, o direito a posse de uma arma de fogo não deve, nem nunca esteve atrelado à sua real necessidade, mas sim liberdade do cidadão, ficando à exigência de comprovação da necessidade, exclusivamente inerente a obtenção do porte de arma de fogo, mas jamais sendo-lhe exigida como requisito para o puro e simples exercício de direito de propriedade.

Assim, conclui-se que o governo perdeu uma grande oportunidade de, além de solucionar um problema de forma extremamente simples, apenas revogando os dispositivos ilegais do decreto, fazendo as alterações pontuais e necessárias sem que se tenha que novamente enfrentar esse tema brevemente, também deixou de cumprir com uma promessa de campanha que visava a extinção do requisito subjetivo para aquisição de uma arma de fogo, gerando não só uma certa insegurança jurídica sobre o tema, como também uma insatisfação nos críticos ao famigerado Estatuto do Desarmamento.

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1 (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26ª ed. p. 341.)
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*Amos B. Zanchet Neto é advogado, associado no escritório Tavares e Morgado Advogados.

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