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Compliance Fast and Slow: sobre Kahneman, visão e decisão

Gustavo Nadalin

Ao ampliar sensivelmente o campo de visão dos gestores, o compliance torna-se ferramenta indispensável a todo e qualquer processo decisório dentro da organização, independentemente do seu ramo de atuação.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Atualizado em 11 de outubro de 2019 17:22

Kahneman, em seu best seller Thinking Fast and Slow (No Brasil, rápido e devagar, duas formas de pensar), brindou-nos com uma viagem profunda pela mente humana e explicou as duas formas de pensar: o sistema 1 funciona automaticamente, gerando continuamente sugestões, impressões, intuições, intenções e sentimentos para o sistema 2, que está normalmente em um confortável modo de pouco esforço e por isso é mais lento, deliberativo e lógico. Se endossados pelo sistema 2, impressões e intuições se tornam crenças, e impulsos se tornam ações voluntárias.1

A forma de interação desses dois sistemas explica o porquê de tirarmos tantas conclusões precipitadas e também revela a influência das impressões intuitivas nas nossas decisões, normalmente originadas por evidências limitadas. A abreviatura WYSIATI, que significa "o que você vê é tudo o que há" (do inglês what you see is all there is), é utilizada por Kahneman para resumir esse processo. Nas suas palavras, "WYSIATI facilita a conquista de coerência e do conforto cognitivo que nos leva a aceitar uma afirmação como verdadeira. Explica por que podemos pensar com rapidez e como somos capazes de extrair sentido de informação parcial em um mundo complexo. Na maior parte do tempo, a história coerente que montamos é próxima o suficiente da realidade para apoiar uma ação razoável".

Kahneman desmistifica o fato de que o homem, por ser dotado de razão, é capaz de conter os instintos e as emoções, avaliando objetivamente as situações e escolhendo, dentre várias alternativas, a que lhe é mais vantajosa. Portanto, na realidade, estamos sempre expostos a influências que podem minar nossa capacidade de julgar e agir com clareza. E essa situação fica mais evidente quando não dispomos das informações suficientes para a tomada de decisão.

Mas o que o compliance tem a ver com tudo isso? Tudo.

Compliance é muito mais do que códigos de condutas e políticas de integridade e consequências. Compliance é lidar com pessoas. Portanto, com comportamentos. Por isso, ele configura uma excelente (senão a melhor) ferramenta de gestão, independentemente da área de atuação de uma organização.

E de que forma o compliance pode funcionar como uma ferramenta de gestão?

Da obra de Kahneman se extrai que, não só na vida pessoal, mas principalmente nos negócios, a maior parte das nossas decisões é fruto do sistema 1, ou seja, são grandes as chances dessas decisões serem tomadas de forma automática, apressada e, fatalmente, equivocada.

É nesse ponto que o compliance pode auxiliar e nortear o processo decisório.

A partir do momento que você tem um programa de compliance efetivo2, com a adesão de todos os colaboradores e até mesmo de terceiros que possuam algum tipo de relação com o negócio da organização, o canal de relatos3 passa a funcionar como importante meio para colocar luz onde a alta gestão não consegue enxergar.

Desde o furto de uma caneta, passando por fofocas e intrigas entre colegas de trabalho, casos de corrupção, assédio moral e/ou sexual, tudo acabará desaguando no departamento de compliance. E munido dessas informações, após dar o devido tratamento a elas, o compliance officer será peça fundamental na elaboração das políticas e metas da empresa, principalmente em se tratando de risk assessment e a ocorrência de cisnes negros.4

Voltando ao paralelo com a obra de Kahneman, "o sistema 2 é ativado quando se detecta um evento que viola o modelo do mundo mantido pelo sistema 1". Ou seja, com novas informações, o sistema 2 é convocado a trabalhar. Aí sim nos valemos do raciocínio mais criterioso, lógico e racional na tomada de decisão. Quanto maior a nossa amplitude de visão, mais informações5 dispomos. E quanto maior o número de informações, mais o nosso Sistema 2 é ativado e, portanto, mais nos valeremos da "razão" no processo decisório.

Portanto, ao ampliar sensivelmente o campo de visão dos gestores, o compliance torna-se ferramenta indispensável a todo e qualquer processo decisório dentro da organização, independentemente do seu ramo de atuação.

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1 "Quando pensamos em nós mesmos, nos identificamos com o Sistema 2, o eu consciente, raciocinador, que tem crenças, faz escolhas e decide o que pensar e o que fazer a respeito de algo. Embora o Sistema 2 acredite estar onde a ação acontece, é o automático Sistema 1 o herói deste livro. Descrevo o Sistema 1 como originando sem esforço as impressões e sensações que são as principais fontes de crenças explícitas e escolhas deliberadas do Sistema 2. As operações automáticas do Sistema 1 geram padrões de ideias surpreendentemente complexos, mas apenas o Sistema 2, mais lento, pode construir pensamentos em séries ordenadas de passos. Também descrevo circunstâncias em que o Sistema 2 assume o controle, dominando os irrefreáveis impulsos e associações do Sistema 1". Pag. 29.

2 A efetividade de um programa de compliance é aferida nos termos do artigo 42 do decreto 8420/15.

3 Particularmente, prefiro chamar canal de relatos do que canal de denúncias, vez que esta última denominação dá a impressão que o só se devem comunicar atos ilícitos, o que restringe muito a sua finalidade.

4 Sobre Cisnes Negros, obrigatória a leitura da obra "A Lógica dos Cisnes Negros", de Nassin Taleb. Principalmente para quem trabalha com compliance. Pois afinal de contas, todo compliance officer trabalha para que eles não apareçam. Mas se aparecer, ele trabalha para que todos estejam preparados.

5 Informação por si só não é conhecimento. Por isso o papel importantíssimo do compliance officer na depuração dos relatos recebidos no canal.

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*Gustavo Nadalin é compliance officer e diretor jurídico do Coritiba Foot Ball Club.

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