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Breves apontamentos sobre a boa-fé objetiva nas relações contratuais: venire contra factum proprium, supressio, surrectio e tu quoque

A cláusula geral da boa-fé objetiva é um princípio ético que ampara todas relações contratual, cominando as partes do contrato uma conduta a ser seguida (lealdade, confiança e probidade). O presente artigo pretende discorrer, de forma singela e sem esgotar o tema, sobre os conceitos correlatos à boa-fé objetiva, a saber: Venire Contra Factum Proprium, Supressio, Surrectio e Tu Quoque.

terça-feira, 12 de março de 2019

Atualizado em 11 de março de 2019 18:35

O princípio da boa-fé objetiva nas relações contratuais é abordado de forma expressa no CC, sendo de maior repercussão o texto de lei exposto no artigo 422, ao estabelecer que os "contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé".

 

De acordo com a doutrina (clássica e contemporânea), a boa-fé objetiva nada mais é que uma clausula geral que serve como instrumento de interpretação do negócio jurídico e preceito de comportamento a ser adotado por todas as partes do contrato e exige uma simbiose entre o padrão ético de confiança e a lealdade.

 

Em síntese, a clausula geral da boa-fé objetiva determina um comportamento fundado na confiança, lealdade, ética e probidade, bem como autoriza que o juiz constitua a conduta que deveria ter sido abraçada pelas partes de um contrato, sempre que houver um desacordo/conflito entre os mesmos.

 

Concluindo o exposto, o civilista Carlos Roberto Gonçalves assevera que a boa-fé "enseja, também, a caracterização de inadimplemento mesmo quando não haja mora ou inadimplemento absoluto do contrato. É o que a doutrina moderna denomina violação positiva da obrigação ou do contrato. Desse modo, quando o contratante deixa de cumprir alguns deveres anexos, por exemplo, esse comportamento ofende a boa-fé objetiva e, por isso, caracteriza inadimplemento contratual."1

 

Como apêndices do princípio da boa-fé objetiva, o Direito brasileiro adotou os institutos do venire contra factum proprium (teoria dos atos próprios), supressio, surrectio e tu quoque. Estes institutos devem ser empregados como função integrativa, suprindo lacunas do contrato e trazendo deveres implícitos as partes contratuais.2

 

A proibição de venire contra factum proprium, impede que uma das partes do contrato contrarie/contradiga o seu próprio comportamento, depois de ter produzido, em outra pessoa, uma expectativa.

 

De acordo com a lição de Regis Fichtner Pereira "o que se quer evitar com a proibição do venire contra factum proprium é que a parte da relação jurídica contratual adote mais de um padrão de conduta, segundo as vantagens que cada situação possa lhe oferecer".3

 

Isso porque, não se deve aceitar que, em determinado período, a parte opere de uma maneira específica e, em momento posterior, atue de forma totalmente diferente, apenas porque, nessa segunda ocasião, não lhe é conveniente adotar a mesma postura que adotou anteriormente.

 

Carlos Roberto Gonçalves exemplifica que "o credor que concordou, durante a execução do contrato de prestação periódicas, com o pagamento em lugar ou tempo diverso do convencionado não pode surpreender o devedor com a exigência literal do contrato", justamente em razão da proibição do venire contra factum proprium.4

 

Já o instituto da supressio incide nas situações em que um determinado direito/obrigação não é exercitado durante um determinado lapso temporal e, por conta disso, não poderá mais sê-lo praticada em razão da sua supressão (perda).

 

Na supressio deve haver um comportamento omisso da parte que deixa de exercer um direito/obrigação que, se for exercitado posteriormente, repercutirá de forma negativa com as legítimas expectativas até então provocadas. Ou seja, com respaldo no princípio da boa-fé objetiva, um direito não desempenhado durante determinado período, por conta desta inatividade, perderia sua eficácia, não podendo mais ser exercitado.5

 

Nas palavras de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald supressio, em suma, consiste em um "retardamento desleal no exercício do direito, que, caso exercitado, geraria uma situação de desequilíbrio inadmissível entre as partes, pois a abstenção na realização do negócio cria na contraparte a representação de que esse direito não mais será atuado".6

 

Já a surrectio é o oposto da supressio, pois consiste no nascimento de um direito/obrigação exigível decorrente da continuada e sucessiva prática de certos atos e ações. Conjecturando a situação de que o credor, ao aceitar que o pagamento do contrato ocorresse em lugar ou período diverso do convencionado, por conta da incidência do instituto da surrectio, poderá o devedor estabelecer que o contrato seja, agora, adimplido no novo lugar ou tempo consentido.

 

O TJ/RS, na apelação cível 70009037631, assentou que em relação ao instituto da "surrectio, o que se requer, portanto, é uma previsão de confiança, pois a repetição sistemática, constante e continuada de um determinado comportamento cria direito, de modo a imputar ao prejudicado a boa-fé subjetiva do beneficiário. Direito esse que se consubstancia na expectativa, a ser mantida pelo menos como probabilidade, da regularidade e continuidade da situação fática subjacente, ou, por outro lado, da ausência de qualquer outra solução ou resolução diferente".7

 

Por fim, o tu quoque objetiva impedir que o infrator de uma norma ou obrigação almeje valer-se posteriormente da mesma norma ou obrigação antes transgredida para exercer um direito ou pretensão. Ou seja, aquele que viola determinada norma jurídica não poderá desempenhar a situação jurídica que essa mesma norma lhe confere, pois do contrário, se estaria transgredindo os princípios da boa-fé objetiva, bem como da ética e da justiça contratual.

 

Carlos Roberto Gonçalves, ao exemplificar a aplicação do tu quoque, afirma que "o condômino que viola regra do condomínio e deposita móveis em área de uso comum, ou a destina para uso próprio, não pode exigir do outro comportamento obediente ao preceito".8

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1 GONÇALVES, Carlos Roberto. DIREITO CIVIL BRASILEIRO. 9ª ed. Vol. 3. São Paulo: Editora saraiva, 2012, p. 59.

 

2 TARTUCE, Flávio. DIREITO CIVIL. 3ª Ed. Vol. 3. São Paulo: Editora Método, 2008, p. 120.

 

3 PEREIRA, Regis Fichtner. A RESPONSABILIDADE CIVIL PRÉ-CONTRATUAL. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 85.

 

4 GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. Cit., 2012, p. 61.

 

5 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. NOVO CURSO DE DIREITO CIVIL. VOLUME IV: CONTRATOS. tomo 1: teoria geral. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 84

 

6 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. CURSO DE DIREITO CIVIL: CONTRATOS. 8. ed. rev. e atual., Salvador: Ed. JusPodivm, 2018. p. 205-208.

 

7 TJRS. Apelação Cível n. 70009037631, de Porto Alegre. rel. Des. Rui Portanova, j. 12.8.04.

 

8 GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. Cit., 2012, p. 62.

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*Paulo Henrique de Moraes Júnior é advogado atuante nas áreas: civil, processual civil, consumidor e imobiliário.

 

 

 

 

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