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Breves considerações sobre o crime de lavagem de dinheiro no Brasil e os métodos de autolavagem, lavagem simultânea e lavagem invertida

O presente artigo não visa, de forma alguma, debater o mérito dos posicionamentos mencionados de maneira aprofundada, muito menos exaurir os debates relacionados à lavagem de dinheiro. Na realidade, as (breves) considerações buscam levantar a reflexão sobre o alargamento da caracterização do crime de lavagem de dinheiro

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Atualizado em 9 de maio de 2019 12:45

Assim como uma sociedade não é estanque e evolui conforme o tempo, o Direito é alma viva que se adequa às necessidades de uma comunidade. Esta situação não passa ao largo do Direito Penal que, mesmo regido pelos princípios da legalidade, fragmentariedade e ultima ratio, também deve se adequar aos métodos delitivos inovadores - a exemplo da atuação diferenciação entre Direito Penal Clássico e Direito Penal Econômico.

Com efeito, no primeiro prepondera a tipificação de condutas consideradas mais "palpáveis" e com reflexos imediatos na vida social, sendo assim marcado por crimes materiais ou de resultado. Exemplificativamente, é no chamado Direito Penal Clássico que se tutela bens jurídicos como a vida, o patrimônio ou a dignidade sexual1, a exemplo dos tipos de homicídio, roubo e estupro (arts. 121, 157 e 213, do CP, respectivamente).

Por outro lado, o denominado Direito Penal Econômico surge e ganha força em um contexto diverso do inicialmente pensado pelo "clássico", direcionando-se, em geral, aos praticantes de "crimes de colarinho branco", conforme nomenclatura conferida por Edwin Sutherland ainda nos idos da década de 302.

Sem maiores delongas, esta subdivisão no direito pátrio visa tutelar não só a "ordem econômica", mas também crimes considerados "mais complexos" (majoritariamente formais) como, por exemplo, corrupção, evasão de divisas, lavagem de dinheiro - tipificados nos arts. 317 e 333 do CP, art. 22 da lei 7492/86 e art. 1º da lei 9.613/98, respectivamente.

Neste contexto, vê-se que mesmo o Direito Penal acompanha a evolução da sociedade, exigindo do legislador uma constante atenção às novas formas de criminalidade. A questão ganha especial relevo quando se percebe uma tendência, na atualidade, de se conferir maior elasticidade aos tipos penais econômicos a pretexto de conferir uma maior efetividade à persecução penal. Infelizmente, valendo-se da louvável bandeira do "combate à criminalidade moderna", o Direito Penal tem se expandindo à revelia de critérios jurídico-dogmáticos sólidos, violando princípios básicos como os acima referidos.

Uma breve análise sobre o crime de lavagem de dinheiro basta para verificar os perigos desta atual elasticidade que, embora propugne garantir a adequação entre o plano normativo (mundo do dever ser) e o fático (mundo do ser) termina, por vezes, levando à utilização do Direito Penal para além das hipóteses legalmente previstas. Antes de analisar algumas situações concretas a demonstrar esta interpretação expansiva, convém tecer algumas considerações teóricas sobre o referido crime.

A despeito da complexidade do crime em análise, pode-se sintetizá-lo, para fins didáticos, em ao menos três principais etapas: ocultação (colocação), estratificação (escurecimento) e integração (ou lavagem propriamente dita) dos bens, direitos ou valores de origem ilícita3. Em linhas gerais, na primeira fase, o agente empreende medidas para esconder (ocultar) os proveitos do crime. Na segunda fase, considerada como um dos momentos mais sensíveis da operação, o agente busca afastar o caráter ilícito dos proveitos valendo-se, geralmente, de complexas operações financeiras. Por fim, na terceira fase, o agente reinsere o produto do crime no mercado financeiro com aparência de licitude através de mecanismos de reinversão.

Pois bem. Reconhecendo a necessidade e a tendência internacional em criminalizar a conduta do agente que introduz, no mercado legal, bens, direitos ou valores provenientes de crime - porquanto capazes de desequilibrar a economia global (não só local) - o legislador pátrio editou a lei 9.613/98 para criminalizar a conduta de quem "ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime" constante nos incisos I a VII daquele diploma4. Analisando o dispositivo legal, não haviam dúvidas que a configuração típica da conduta exigia a presença de elemento subjetivo específico (dolo).

Após a publicação de relatório elaborado pelo Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo - GAFI5, em 2011, verificou-se que o Brasil (i) possuía poucas condenações finais por lavagem de dinheiro; (ii) pequena variedade de crimes antecedentes e (iii) estatísticas insuficientes sobre investigações, denúncias e condenações pelo referido crime6. A repercussão negativa do relatório levou o legislador a modificar a redação original do referido tipo.

Assim, foi editada a lei 12.683/12 para, dentre outros, extirpar o rol de crimes antecedentes a fim de "tornar mais eficiente a persecução penal dos crimes de lavagem de dinheiro". Pretendia-se, com a retirada do rol taxativo de crimes antecedentes, alinhar a legislação nacional ao que havia de mais moderno em termos de legislação antilavagem7. O art. 1º da lei de Lavagem passou a deter a seguinte redação: "ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal".

Os reflexos desta mudança foram patentes. Com a entrada em vigor do novo diploma, a jurisprudência não só passou a admitir a configuração do crime a título de dolo eventual, mas também em casos de "autolavagem", "lavagem simultânea" e "lavagem invertida".

No julgamento da AP 470/MG (caso "Mensalão"), o STF justificou condenações por lavagem de dinheiro a título de dolo eventual através da importação da willful blindness doctrine (teoria da cegueira deliberada). Em linhas gerais, a teoria pretende igualar a conduta do agente que age conscientemente àquela de quem age em um estado de ignorância proposital. Partindo desta premissa, entendeu o STF que estaria caracterizado o crime quando o agente movimenta valores de que não sabe a origem, mas poderia antever a ilicitude da operação em razão do contexto fático - dolo eventual, caracterizado pela assunção de risco.

 Como se vê, o Supremo ampliou o espectro do crime de lavagem através da importação de uma teoria estrangeira sem sequer analisar as premissas de sua construção, razão pela qual equiparou, equivocadamente, o conceito de "recklessness" construído pelo common law para fundamentar a aplicação da willful blindness, ao de dolo eventual construído pelo legislador brasileiro, dentro de um sistema de civil law.

Embora não se pretenda adentrar nas minúcias do tema, fato é que ao invés de reconhecer a inadequação da conduta narrada pela denúncia naquele caso ao tipo penal imputado, o STF preferiu justificar a condenação através da mera importação de uma teoria que, no fundo, é incompatível com diversos preceitos da legislação nacional.

Uma outra discussão diz respeito a responsabilização do praticante da chamada "autolavagem" e da "lavagem simultânea" (ou concomitante). No primeiro caso, trata-se da situação em que o mesmo agente responsável pelo crime antecedente realiza, posteriormente, os atos de lavagem. No segundo caso, tem-se a realização dos atos de lavagem ao mesmo tempo concomitantemente à configuração da infração geradora dos proveitos ilícitos.

Como se depreende da análise objetiva do comando normativo, bastaria a realização de quaisquer das condutas elencadas na lei 9.613/98 para a configuração típica, desde que, ressalte-se, praticadas com o intuito (dolo) de lavar proveitos criminosos. Outrossim, o tipo penal exige, necessariamente, a prática de uma infração penal antecedente aos atos de lavagem.

Neste contexto, não surpreende o entendimento firmado pelo STF no sentido de ser possível a prática de autolavagem (AP 996/DF), pois não se verifica, ao menos a priori, ilegalidade no enquadramento típico do mesmo agente responsável da infração antecedente. A situação é facilmente compreendida quando se imagina a prática do delito de corrupção ativa ou passiva por um determinado agente que, em seguida, também realiza atos de lavagem. Assim, se os atos de corrupção e lavagem restarem devidamente individualizados e se estiver presente o elemento subjetivo exigível pelos tipos, torna-se possível a responsabilização por ambos os crimes.

Por outro lado, a caracterização da chamada "lavagem simultânea" (ou concomitante), defendida por alguns juristas como o atual Ministro da Justiça Sérgio Moro, é mais problemática. À época do seu magistério, Moro entendia que a lavagem de dinheiro somente poderia ocorrer após a consumação da infração típica ensejadora dos bens, direitos ou valores lavados. No entanto, o então juiz federal passou a defender a possibilidade de criminalizar a conduta do lavador mesmo sem a realização de infração prévia, porquanto bastaria, apenas, a prática de uma operação sub-reptícia simultânea à infração originadora dos bens a serem lavados.

Nas palavras do atual Ministro da Justiça "a lavagem de dinheiro pode ocorrer em concomitância com o recebimento de vantagens indevidas. Não reconhecer isso, seria premiar os criminosos por sua maior sofisticação e ardil".8 Neste sentido, observe-se trecho da sentença proferida nos autos da ação penal 5054932-88.2016.4.04.7000/PR9:

 

775. Vinha este Juízo adotando a posição de que poder­se­ia falar de lavagem de dinheiro apenas depois de finalizada a conduta pertinente ao crime antecedente.

776. Assim, por exemplo, só haveria lavagem se, após o recebimento da vantagem indevida do crime de corrupção, fosse o produto submetido a novas condutas de ocultação e dissimulação.

777. A realidade dos vários julgados na assim denominada Operação Lavajato recomenda alteração desse entendimento.

778. A sofisticação da prática criminosa tem revelado o emprego de mecanismos de ocultação e dissimulação já quando do repasse da vantagem indevida do crime de corrupção.

779. Tal sofisticação tem tornado desnecessária, na prática, a adoção de mecanismos de ocultação e dissimulação após o recebimento da vantagem indevida, uma vez que o dinheiro, ao mesmo tempo em que recebido, é ocultado ou a ele é conferida aparência lícita.

780. Este é o caso, por exemplo, do pagamento de propina através de transações internacionais subreptícias. Adotado esse método, a propina já chega ao destinatário, o agente público ou terceiro beneficiário, ocultado e, por vezes, já com aparência de lícita, como quando a transferência é amparada em contrato fraudulento, tornando desnecessária qualquer nova conduta de ocultação ou dissimulação.

781. Não seria justificável premiar o criminoso por sua maior sofisticação e ardil, ou seja, por ter habilidade em tornar desnecessária ulterior ocultação e dissimulação do produto do crime, já que estes valores já lhe são concomitantemente repassados de forma oculta ou com a aparência de licitude.

Todavia, o entendimento firmado por Moro, além de levar a excessos, parece pretender justificar condenações por lavagem em casos não abarcados pela legislação. Isto porque, como já se viu, o referido delito exige, necessariamente, a prática de uma infração penal antecedente. Com efeito, a redação do tipo penal é categórica em afirmar que incorre no referido crime o agente que lava bens, direitos ou valores provenientes de infração penal. Ora, algo somente "provém" se derivado de uma conduta prévia.

Não se pode admitir uma interpretação extensiva do tipo penal para permitir a tipificação da conduta de lavagem "concomitante" à infração. Além de a justificativa mencionada pelo então magistrado não se sustentar à luz dos critérios da legalidade e proporcionalidade, porquanto pautada na "realidade dos vários julgados na assim denominada Operação Lavajato" - e não na redação do tipo penal -, pode levar a equívocos como a criminalização autônoma do mero exaurimento do crime de corrupção.

Vê-se que, para Sérgio Moro, a lavagem simultânea estaria configurada quando o próprio pagamento da vantagem indevida (corrupção) ocorre através da utilização de medidas sub-reptícias, a exemplo de pagamentos realizados no exterior através de interpostas pessoas e/ou offshores - confunde-se, portanto, o modus operandi da corrupção com a criminalização autônoma da lavagem.

As "novidades" não param por aí. Recentemente, deparei-me com um conceito inovador mencionado pelo professor Gustavo Henrique Badaró, qual seja o da "lavagem invertida". Conforme relato do renomado jurista, em determinado caso, o ato de lavagem imputado ao agente estava relacionado não a um crime antecedente ou simultâneo, mas a um crime futuro consistente em "adiantamento" de propina.

Segundo explica o autor, o agente "X", líder de terminado esquema de exigência de propinas, beneficia "Y" oferecendo um adiantamento da propina a ser recebida para que este adentre no esquema espúrio instituído pelo primeiro. Em seguida, "Y" adquire determinados bens com estes valores adiantados e, após receber a propina prometida, restitui os valores adiantados por "X".

Neste contexto, conclui Badaró que o agente "Y" teria adotado um método de "lavagem invertida" porquanto teria adquirido bens imóveis com dinheiro sujo, porém antes de seu efetivo ingresso no esquema de exigências de propinas, mas já sabendo que iria entrar no esquema, contando com o dinheiro sujo que sabia iria receber e com o qual restituiria a "X".

Os métodos de lavagem simultânea e invertida, a meu ver, encontram dificuldades práticas e teóricas que demandam uma análise mais aprofundada. Com efeito, a lavagem concomitante pode levar a uma situação de claro bis in idem, ao passo que pode ser confundir com a própria infração penal diversa da lavagem.

Como adiantado, o repasse de uma vantagem indevida fracionada pode configurar, tão só, a prática de corrupção, e não de lavagem. Isto porque o mero fracionamento da propina pode ser o próprio modus operandi do crime, vindo, no máximo, a caracterizar exaurimento da corrupção. A solução, portanto, está em analisar os elementos probatórios coligidos aos autos, os quais devem demonstrar não só a ocorrência de efetiva lavagem, mas a presença do próprio elemento subjetivo do tipo.

Quanto a lavagem invertida, mencionada pelo professor Gustavo Badaró, a solução também dependerá da análise minuciosa da situação posta. Isto porque o mero empréstimo de futura propina pode se tratar, em verdade, de fato atípico. Ora, os valores especificamente repassados pelo líder de um suposto esquema criminoso, ainda que representem futuro repasse de uma vantagem indevida a ser recebida, podem ter origem lícita. Assim, ainda que o agente receba um "empréstimo" de valores representantes de futura ilicitude, se tais valores, por si só, tiverem origem lícita, não se deve considerar tal ato como lavagem.

Entender de maneira diversa poderia levar ao absurdo de se permitir a presunção de lavagem em qualquer empréstimo de valores, o que por certo não foi o intuito do legislador. Observe-se, por exemplo, que determinado líder de esquema criminoso pode ser detentor de um negócio lícito gerador de renda e, ciente de que iria receber determinada propina, retira valores de seu restaurante para "aliciar" outrem com a promessa de, no futuro, ambos receberem propina. Em que pese o último fato possa vir a configurar lavagem, não se pode afirmar, de logo, que o recebimento dos primeiros valores configure, por si só, um ato de lavagem.

O presente artigo não visa, de forma alguma, debater o mérito dos posicionamentos mencionados de maneira aprofundada, muito menos exaurir os debates relacionados à lavagem de dinheiro. Na realidade, as (breves) considerações buscam levantar a reflexão sobre o alargamento da caracterização do crime de lavagem de dinheiro, que parece estar sendo realizada sem a devida observância de preceitos básicos pertinentes ao tema, especialmente nos casos de ampla repercussão nacional.

De fato, cabe ao legislador, e não ao judiciário, definir os limites do jus puniendi estatal, devendo o primeiro editar e definir tipos penais claros justamente para evitar interpretações extensivas. Aos operadores do direito, portanto, fica a reflexão.

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1 Embora não se concorde com a denominação "dignidade sexual", por importar uma conotação duvidosa sobre os bens jurídicos tutelados neste Título do Código Penal, utiliza-se a referida denominação por ser a constante no Título VI do Código Penal Brasileiro.

2 SUTHERLAND, Edwin H. El delito de cuello blanco. Madri: La piquet, 1999.

3 CALLEGARI, André Luís; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de dinheiro. São Paulo: Atlas, 2014. p. 11.

4 Crimes elencados entre os incisos I a VII, art. 1º, da redação original da lei 9.613/98: tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; terrorismo; contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; extorsão mediante sequestro; contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para prática ou omissão de atos administrativos; contra o sistema financeiro nacional; praticado por organização criminosa.

5 Organização Intergovernamental criada para orientar o combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo.

6 SAADI, Ricardo Andrade. O combate à lavagem de dinheiro. Disponível aqui. Acesso em 25 abr 2019.

7 SANCTIS, Fausto Martin de. Delinquência econômica e financeira: colarinho branco, lavagem de dinheiro, mercado de capitais. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 195.

8 Disponível aqui Acesso em 25 abr 2019.

9 Disponível aqui. Acesso em 06 mai 2109.

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*Laudenor Pereira Neto é advogado, pós-graduando em Direito Penal Econômico pela Escola de Direito de São Paulo - FGV DIREITO SP e em compliance pelo Instituto de Direito Penal Econômico Europeu (IDPEE) da Faculdade de Coimbra em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

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