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Competência do caso Neymar

Esse fato despertou a curiosidade do público em geral por envolver pessoa famosa (e às vezes polêmica), mas despertou a curiosidade dos estudantes de direito, em particular, pela razão de que teria ocorrido na cidade de Paris, na França, isto é, fora do território nacional.

quinta-feira, 6 de junho de 2019

Atualizado em 5 de junho de 2019 13:33

Em questão de algumas horas difundiu-se pela imprensa de boa parte dos países do mundo o fato registrado no boletim de ocorrência do dia 31 de maio de 2019, elaborada na 6ª DDM de Santo Amaro, na cidade de São Paulo, segundo o qual o jogador brasileiro do PSG da França, Neymar da Silva Santos Júnior, teria praticado um crime de estupro contra uma brasileira cuja identidade, embora seja de conhecimento público, foi omitida do documento policial em atenção ao provimento CGJ-32/00, que assegura às vítimas o direito ao sigilo de seus dados. Na verdade, nem haveria necessidade de aplicação desse provimento do TJ/SP no caso em questão, pois a investigação e o processo que apuram crimes contra dignidade sexual (estupro, estupro de vulnerável etc.) já devem tramitar sob segredo de justiça por força do que dispõe o art. 234-B do Código Penal (incluído pela lei 12.015/09).

Esse fato despertou a curiosidade do público em geral por envolver pessoa famosa (e às vezes polêmica), mas despertou a curiosidade dos estudantes de direito, em particular, pela razão de que teria ocorrido na cidade de Paris, na França, isto é, fora do território nacional.

Afinal de contas, em qual país deve haver o processo e julgamento do caso em questão? Ou, indagado de outro modo, quando um brasileiro pratica um crime no estrangeiro ele deve ser julgado no país em que o fato foi cometido ou aqui no Brasil? E mais, caso ele possa ser responsabilizado no Brasil, qual a Justiça e qual comarca competente para o processo e julgamento?

A resposta, como não poderia ser de outro jeito, depende! E depende de algumas circunstâncias do caso concreto e da conjugação de dispositivos da Constituição Federal, do Código Penal e do Código de Processo Penal.

Pois bem, cometendo um brasileiro um crime em território estrangeiro, ficará sujeito, em linha de princípio, ao processo e julgamento no país onde a conduta foi realizada, uma vez que nesses casos, a aplicação da lei penal brasileira é subsidiária.1

Foi o que ocorreu, por exemplo, com o brasileiro Marco Archer, que transportou para a Indonésia 13,4kg de cocaína dentro dos tubos de uma asa-delta e foi condenado naquele país à pena de morte pelo crime de tráfico internacional de drogas. Ele foi fuzilado na madrugada de 18 de janeiro de 2015.2 O brasileiro Rodrigo Goulart também foi preso em 2004, na Indonésia, quando tentava entrar no país com 6kg de cocaína escondidos em pranchas de surfe. Foi igualmente processado, condenado e executado por fuzilamento em 2015.3

Portanto, nada impede que um brasileiro seja processado no exterior pela prática de um crime cometido em outro país.

Isso não significa, contudo, que não possa ser processado e julgado aqui no Brasil. No entanto, para que isso ocorra urge que sejam satisfeitas algumas condições que estão previstas no art. 7º, II, b, do Código Penal, que cuida das hipóteses de extraterritorialidade condicionada da lei penal brasileira, isto é, de casos em que se aplica a lei penal brasileira ao fato tenha ocorrido no estrangeiro.

Aqui uma observação é de todo pertinente em razão da confusão que geralmente envolve o tema. Quando se diz que a lei penal brasileira pode ser aplicada a fato cometido no exterior não significa que ela possa ser aplicada dentro dos limites territoriais do país em que o fato foi cometido. Absolutamente! Caso contrário estar-se-ia violando a soberania de outro Estado. Significa apenas que ela será aplicada aqui, no Brasil, desde que o autor volte ao território nacional. Aliás, aqui está uma das condições exigidas pelo art. 7º, II, b, do Código Penal.

O art. 7º, II, b, do CP estabelece que ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro, os crimes praticados por brasileiro.

Segundo a doutrina, o código adotou neste caso o princípio da personalidade ativa4 ou da nacionalidade ativa, pois o que se leva em conta é justamente o fato de o sujeito ativo do delito ser um brasileiro. Como diz Cesar Roberto Bitencourt, "o Estado tem o direito de exigir que o seu nacional, no estrangeiro, tenha comportamento de acordo com o seu ordenamento jurídico".5

Porém, para que seja possível o processo e julgamento no Brasil é preciso que sejam satisfeitas algumas condições e por essa razão diz-se que o dispositivo em questão cuida de hipóteses de extraterritorialidade condicionada e as condições estão previstas no §2º do art. 7º do Código Penal. São elas:

a) entrar o agente no território nacional;

b) ser o fato punível também no país em que foi praticado;

c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição;

d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena;

 

e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável.

Voltando ao caso do Neymar, caso o crime realmente tenha ocorrido, o que ainda não se sabe, ele poderá vir a ser processado no Brasil se e quando ingressar novamente no país.

O estupro também configura crime na França e não existe impedimento para a extradição envolvendo este tipo de delito pelas leis brasileiras. A lei 13.445/17, que regula a questão da migração no país, estabelece no art. 82 quais são os casos em que a extradição não pode ser concedida e ele não contempla o crime de estupro.

Além disso, Neymar não pode ter sido absolvido nem cumprido pena na França. Também não pode ter sido perdoado ou ter ocorrido a extinção da punibilidade estatal.

Portanto, desde que satisfeitas todas as condições legais, que são cumulativas6, é possível que o jogador venha a ser processado no Brasil (se o fato realmente ocorreu, repita-se!).

Mas perante qual Justiça ou qual cidade deveria correr o processo?

Como se sabe, a competência da Justiça Comum Federal está prevista no art. 109, IV e seguintes, da Constituição Federal. A competência da Justiça Estadual, por sua vez, é residual, de sorte que só será de competência desta aquilo que não for expressamente previsto para aquela.

Não se vislumbra nenhuma das hipóteses de competência da Justiça Federal para este caso e, como recentemente reconheceu a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, o fato de existir uma relação de cooperação internacional entre os países não é suficiente para fixar a competência da Justiça Federal se não houve no caso concreto nenhuma violação direta a interesse da União.

 

COMPETÊNCIA - HOMICÍDIO - EXTERIOR - BRASILEIRO NATO - JUSTIÇA ESTADUAL. A prática do crime de homicídio por brasileiro nato no exterior não ofende bens, serviços ou interesses da União, sendo da Justiça estadual a competência para processar e julgar. (RE 1175638 AgR, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 02/04/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-086 DIVULG 25-04-2019 PUBLIC 26-04-2019).

Uma vez identificada a Justiça competente, o passo seguinte é o de identificar qual a competência territorial e a resposta este prevista no art. 88 do Código de Processo Penal, segundo o qual "no processo por crimes praticados fora do território brasileiro, será competente o juízo da Capital do Estado onde houver por último residido o acusado. Se este nunca tiver residido no Brasil, será competente o juízo da Capital da República."

Vê-se, assim, que a competência não é firmada na Comarca onde o indivíduo residiu por último, mas na capital do Estado em que ele tenha morado antes de mudar-se para o exterior. Não seria, portanto, competente a Comarca de Santos, como já sustentaram alguns, mas a da cidade de São Paulo.

É esse o entendimento do STJ.

                        COMPETÊNCIA. CRIME. BRASILEIRO. ESTRANGEIRO. No caso, os policiais civis residentes na cidade de Santana do Livramento-RS foram mortos na cidade de Rivera no Uruguai. A questão está em definir a competência para processar e julgar os crimes de homicídio perpetrados por brasileiro juntamente com corréus uruguaios, em desfavor de vítimas brasileiras, naquela região fronteiriça. Isso posto, a Seção conheceu do conflito para declarar a competência de uma das varas do Júri de São Paulo-SP, ao fundamento de que se aplica a extraterritorialidade prevista no art. 7º, II, b , e 2º, a , do CP, se o crime foi praticado por brasileiro no estrangeiro e, posteriormente, o agente ingressou em território nacional. Nos termos do art. 88 do CPP, sendo a cidade de Ribeirão Preto-SP o último domicílio do indiciado, é patente a competência do juízo da capital do Estado de São Paulo. No caso, afasta-se a competência da Justiça Federal, tendo em vista a inexistência de qualquer hipótese prevista no art. 109 da CF/1988, principalmente porque todo o iter criminis dos homicídios ocorreu no estrangeiro. Precedente citado: HC 102.829-AC, DJe 17/11/2008. STJ, Terceira Seção: CC 104.342-SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 12/8/2009, Informativo 402.

Conclusão

Caso os fatos sejam verídicos, Neymar poderá ser processado tanto na França como no Brasil. Porém, para que seja processado aqui deverão estar satisfeitas todas as condições previstas no art. 7º, §2º, do Código Penal, e no caso concreto elas estariam. No Brasil, seria competente a Justiça Comum Estadual e o foro competente seria o da cidade de São Paulo, capital do Estado onde por último ele residiu.

 
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1 Masson, Cleber. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013.

2 Disponível aqui. Acesso em 04/06/2019.

3 Disponível aqui. Acesso em 04/06/2019.

4 Greco, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro, Impetus: 2004, p. 141.

5 Bitencourt, César Roberto. Código Penal Comentado. São Paulo, Saraiva: 2010, p. 107.

6 Barros, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal, parte geral, São Paulo: Saraiva, 2001.

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Barros, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal, parte geral, São Paulo: Saraiva, 2001.

Bitencourt, César Roberto. Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva, 2010.

Greco, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Impetus, 2004.

Masson, Cleber. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013.

Disponível aqui. Acesso em 04/06/2019.

Disponível aqui. Acesso em 04/06/2019.

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*Fábio Meneguelo Sakamoto é mestre em Direito Constitucional, especialista em Interesses Difusos e Coletivos, ex-procurador do Município de São José do Rio Preto, promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo e professor no Centro Universitário do Norte Paulista - UNORP.

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