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O caso do sequestrador da ponte Rio-Niterói

Francisco Sannini e André Estefam

Uma análise jurídica sobre o incidente que aconteceu essa semana no RJ.

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Atualizado em 29 de agosto de 2019 16:01

Nesta semana gerou enorme repercussão o "sequestro" de um ônibus por um criminoso na ponte Rio-Niterói, que acabou com a morte do sequestrador por um atirador de precisão da Polícia Militar. O caso foi emblemático, entre outras razões, porque nos remeteu ao sequestro do ônibus 174, ocorrido em 2000, no Rio de Janeiro, cujo desfecho foi um tanto diferente, resultando na morte de uma refém devido a ação inadequada da polícia.

Antes, porém, de nos debruçarmos nos aspectos jurídicos do caso, faz-se imprescindível um esclarecimento sobre a ação dos atiradores de elite. Os chamados snipers são policiais altamente treinados e capacitados para efetuar tiros de precisão, que podem ser escalonados da seguinte forma:

a) "Tiro de Comprometimento", que se constitui em um único disparo com aptidão para neutralizar o alvo instantaneamente, provocando, em regra, mas não necessariamente, a sua morte;

b) "Tiro Seletivo", que é o disparo efetuado contra o instrumento capaz de causar a ameaça e não contra o agressor; e

c) "Tiro de Contenção", onde o policial almeja atingir pontos não vitais do agente, acarretando a sua incapacitação mecânica (de deslocamento).

É mister consignar, ademais, que em situações como a do sequestro da ponte Rio-Niterói devem ser adotados pela polícia protocolos relacionados ao gerenciamento de crises, priorizando-se sempre a solução pacífica do conflito por meio de negociações, mas sem descartar o emprego de força letal a depender do caso concreto.

Feitas essas considerações, não se pode olvidar que estávamos diante de um criminoso, uma vez que o artigo 148, do Código Penal, pune, com reclusão de um a três anos, a conduta de "privar alguém de sua liberdade, mediante sequestro ou cárcere privado". Trata-se de um tipo penal cuja finalidade é tutelar o direito fundamental à liberdade de locomoção, previsto no artigo 5º, caput, da Constituição da República.

Além disso, conforme foi possível acompanhar por meio da imprensa, o sequestrador apresentava um quadro de evidente instabilidade, ameaçando os reféns com uma aparente arma de fogo (posteriormente identificada como simulacro), uma faca e combustível apto a incendiar o ônibus inteiro.

Nesse contexto, parece-nos evidente que havia uma ameaça iminente à vida dos reféns, o que justifica, em nosso entender, o chamado "tiro de comprometimento", em ação amparada pela excludente de ilicitude da legítima defesa de terceiro.

Dá-se a legítima defesa, nos termos do art. 25 do Código Penal quando alguém repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito próprio ou alheio, valendo-se moderadamente dos meios necessários.

Entende-se por injusta agressão a conduta humana ilícita, voltada à lesão de algum bem juridicamente protegido. No caso examinado, o direito agredido era, como dissemos, a liberdade de locomoção dos passageiros ("agressão atual") e o ameaçado de lesão, sua integridade física e vida ("agressão iminente"), posto que a qualquer momento poderiam ser incendiados por substâncias inflamáveis.

De acordo com ROXIN (1997, p. 619) o início do reconhecimento da legítima defesa se situa em um momento anterior ao da tentativa criminosa, ainda nos atos preparatórios, os quais estejam, todavia, em uma situação de imediatidade com os atos de execução. Parece ser esse o entendimento de Rogério GRECO (2018, p. 455), ao afirmar que "para que possa ser considerada iminente a agressão, deve haver uma relação de proximidade. Se a agressão é remota, futura, não se pode falar em legítima defesa".

Além disso, depois de horas de negociação e dada a iminência de uma conduta passível de ferir ou matar aqueles que, repise-se, já se encontravam com sua liberdade de deambulação violadas, a ação policial fez uso moderado do meio necessário.

Poder-se-á dizer que havia outros meios menos lesivos (persistir com negociações, imobilização do agente, entre outros). Tais conjecturas, passados os fatos e distantes da situação de absoluta urgência, surgirão aos montes. A análise, porém, não pode ser pautada por um raciocínio ex: post, mas deve ser efetuada no contexto ex: ante. Nos instantes que precederam o tiro de comprometimento, qualquer vacilo dos policiais poderia implicar numa tragédia sem retorno. Esse é o pensamento que deve orientar a análise dos fatos e não aquele realizado no conforto de um ambiente silencioso, com consulta a vasta doutrina e jurisprudência.

Daí porque nos parece configurada, sem excesso, a legítima defesa de terceiro, excludente de ilicitude que, nos termos do Código Penal, afasta o caráter criminoso da ação.

Por óbvio, não se pode celebrar a morte de qualquer pessoa, afinal, toda vida humana tem valor intrínseco, mas, sob o pálio do nosso Estado Constitucional de Direito, não existem direitos absolutos e, nesse fatídico episódio, é inegável que a polícia, diferentemente do sequestro do ônibus 174, agiu de maneira legal e técnica, salvando a vida dos reféns.

 

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*Francisco Sannini é delegado de Polícia e professor do Curso Damásio.

*André Estefam é promotor de Justiça, cordenador pedagógico e profº do Curso Damásio.

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