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Como a decisão do STF pode afetar a todos nós

Victor Ferreira Arichiello

A máxima "aos amigos tudo, aos inimigos, a lei" é algo que foge à lógica de uma justiça justa. Deixar-se seduzir por atalhos, em Direito, é admitir caminhos sem volta.

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Atualizado em 9 de setembro de 2019 12:46

O STF anulou uma sentença do juiz Sergio Moro porque o acusado condenado, o ex-presidente da Petrobras Aldemir Bendine, não apresentado suas alegações finais de defesa depois dos outros acusados que o haviam delatado. Como tudo envolvendo a Lava Jato, a decisão revestiu-se de polêmica e críticas daqueles não familiarizados com as questões processuais do Direito.

Para entender a questão, imagine-se na seguinte situação: você, leitor, está em um restaurante com amigos quando naquele lugar começa uma briga generalizada. Não é possível identificar, facilmente, quem começou o embate ou mesmo quem dele participou, tamanha a quantidade de pessoas que ali estavam e que ao menos se levantaram de suas mesas. Fato é que diversas pessoas saíram machucadas, em maior ou menor grau. Não parece uma hipótese muito longe da realidade, certo?

Pois bem. Polícia acionada, inquérito policial instaurado, diversas pessoas ouvidas, inclusive o leitor, denúncia do Ministério Público pelo crime de lesão corporal (em alguns casos, de natureza grave) por diversas vezes, tendo em vista a quantidade de pessoas machucadas. Nesse ínterim, o leitor se assusta - por não ter participado da briga ou por ter sido descoberto - ao perceber que fora denunciado juntamente com diversas outras pessoas que estavam no restaurante.

Iniciada a instrução criminal, algumas dessas pessoas resolvem colaborar com as autoridades - não necessariamente por meio de uma colaboração premiada, mas por entenderem que terão ao menos um benefício com tal ação. Uma delas aponta que o leitor agrediu uma pessoa, que ficou ferida.

Veja-se que, apesar de ter sido denunciado juntamente com o leitor, e ser réu na ação penal, ele está auxiliando a acusação na produção de provas. Ele deixa de ser um mero réu e se torna também testemunha. É evidente que a fala desse corréu será levada em consideração pelo julgador quando, ao final, proferir sentença.

Diante dessa situação, indago: tendo ou não participado da briga, e sabendo que alguém o está apontando como culpado, gostaria o leitor de ser ouvido depois daquele corréu que o acusa? Gostaria o leitor de ter o mesmo prazo que o acusador para se manifestar? Ou o leitor entende que não há uma acusação pelo simples fato de o outro figurar como réu?

Ora, por mais que o Código de Processo Penal, em sua reforma de 2008, e a lei que regulamentou a colaboração premiada (lei 12.850/13), não apontem a ordem para que os acusados se manifestem no curso do processo, sejam interrogados e apresentem alegações finais, a Constituição Federal aponta para garantias ou princípios basilares que devem ser respeitados no processo penal: são eles o contraditório, a ampla defesa e a paridade de armas.

Tais princípios, em síntese, apontam não só que o acusado de uma conduta, parta de quem parta a imputação, deve poder se defender dela, contrapondo-a, como que tanto defesa quanto acusação tenham as mesmas oportunidades processuais.

É dizer que, mesmo que a legislação não tenha uma previsão expressa nesse sentido - até porque não se tinha ideia da dimensão que as colaborações premiadas tomariam -, a proteção constitucional conferida por esses princípios é uma escolha não do legislador ordinário, mas do constituinte.

Observá-los é respeitar a primazia da Constituição Federal.

É evidente que para se defender é necessário saber do que se está sendo acusado. Por esse motivo é pacífico que, em um processo sem colaboradores, primeiro fale o Ministério Público, como titular da ação penal pública, ou o querelante, titular da ação penal privada. Depois, fala o acusado. 

Seguindo a mesma lógica, a acusação deve oferecer a denúncia antes de o réu se defender, as testemunhas de acusação devem ser ouvidas antes das de defesa, as perguntas ao acusado em sede de interrogatório devem ser feitas primeiro pelo acusador e depois pela defesa e, por fim, as alegações finais são apresentadas pelo MP (ou pelo querelante) e só depois pelo acusado.

É assim, e só assim, que tais garantias constitucionais são respeitadas. E é por isso que, independentemente da classificação processual que se dê, aquele que colabora com as autoridades deve se manifestar, sempre, antes daquele que é prejudicado pelas acusações feitas.

Voltemos ao leitor.

Imagine que a pessoa que decidiu auxiliar o Ministério Público aponte, já na Resposta à Acusação, que o leitor estava na briga e feriu um dos participantes. É evidente que ao leitor deveria, se já apresentada a peça defensiva inicial, ser aberta uma possibilidade de complementação. E por quê? Para que ele diga que não agrediu ninguém, que sequer se aproximou da vítima etc. Se ele não puder fazê-lo, como dizer que a defesa foi efetiva? 

Que houve respeito aos princípios constitucionais?

Isso se repete no interrogatório e nas alegações finais. Como pode o leitor dizer, nos pormenores, que não praticou o fato, ou que a agressão foi sem querer, se o outro acusado aponta em sua direção?

Por mais que a legislação não preveja exatamente uma ordem processual nesses casos, parece razoável entender que as garantias constitucionais têm um peso maior que a legislação ordinária, devendo sempre prevalecer.

O que o leitor deve entender é que os crimes apurados pela operação Lava Jato podem parecer distantes de nossa realidade, mas que todos estão sujeitos a passar pelo sistema de Justiça Criminal. Indago aqui: o leitor já dirigiu embriagado? Já conduziu acima do limite de velocidade permitido na via? Já dirigiu com a habilitação suspensa ou cassada? Já entregou o carro a alguém sem habilitação?

Precisamos entender que todos nós estamos sujeitos a cometer um crime. Pode o leitor, conduzindo um veículo automotor a 60 quilômetros por hora em uma via cuja velocidade máxima é 50 quilômetros por hora, atropelar um pedestre desavisado que atravessa fora da faixa e lesioná-lo ou mesmo matá-lo? Sim, é um fato comum, cotidiano. 

É evidente que todos os direitos e garantias devem ser respeitados em todos os casos. E que por mais que o leitor não entenda, ele está sujeito ao peso do sistema de Justiça Criminal.

Sob pena de barbárie e injustiça, não se pode viver sob uma inversão das garantias fixadas na Constituição. Não vale alegar também que, em nome de perseguir fins maiores e nobres, como o combate à corrupção, admita-se um vale tudo processual. A máxima "aos amigos tudo, aos inimigos, a lei" é algo que foge à lógica de uma justiça justa. Deixar-se seduzir por atalhos, em Direito, é admitir caminhos sem volta.

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*Victor Ferreira Arichiello é advogado do Urquiza, Pimentel e Fonti Advogados.

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