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O overcharging no processo penal brasileiro

O fato é que a história está aí para evitar que cometamos os mesmos erros do passado, algo que, notoriamente, o brasileiro esqueceu ou simplesmente prefere não enxergar.

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Atualizado às 09:54

Ainda que possa parecer um disparate para muitos - ainda mais hodiernamente, onde o obscurantismo virou regra - um dos basilares direitos daquele que se torna um acusado em processo criminal, é o direito de ser bem acusado. Isso mesmo. De ser bem acusado.

Se assim não fosse, tornar-se-ia impossível a elaboração de boa defesa técnica, em toda sua plenitude. Quero dizer, o fato delituoso imputado precariamente ao acusado demanda narrativa congruente com os elementos colhidos na fase administrativa, além da necessidade de estar respaldada em elementos concretos disponíveis nos autos, indicando de maneira firme a prova da materialidade e a possível autoria.

Quanto ao overcharging ou excesso acusatório, necessário se faz dizer que, segundo a doutrina mais abalizada, pode ser vertical ou horizontal, isto é, a primeira hipótese dá-se quando é feita uma acusação mais grave do que os elementos de informação autorizam; A segunda quando é incluída a imputação de fatos adicionais que não defluem dos elementos de informação1.

Em países como os EUA, adeptos ao plea bargain, percebe-se claramente a utilização - asquerosa, diga-se - da aludida prática para evitar a persecução penal, tolhendo do acusado diversas garantias mínimas de qualquer Estado Democrático.

Veja: imputa-se ao acusado uma quantidade absurda de delitos, visando amedrontá-lo para aceitar o acordo, evitando-se uma persecução penal com a possibilidade da ampla defesa e do contraditório.

Não é à toa que 95% dos casos nos EUA são resolvidos através do plea bargain2, com uma triste ausência de advogados combativos, na defesa das garantias legais e evitando-se, assim, o erro judiciário. O resultado: Uma crise no sistema penitenciário e diversas injustiças cometidas34.

Em terras tupiniquins, mormente no âmbito da operação Lava Jato, percebemos o início de possível uso do overcharging para forçar o acusado a formalizar acordos de delação premiada - verificável, sobretudo, pelo vazamento de mensagens trocadas entre procuradores da República e o, na época, juiz Federal Sérgio Moro, realizado pelo site The Intercept Brasil5 - mesmo quando não se tem indícios suficientes de autoria e/ou a prova da materialidade.

Exemplo disso é a - indevida - dupla imputação pelo crime de corrupção e lavagem de dinheiro ao agente público, tema muitíssimo bem explanado em artigo publicado pelo professor Pierpaolo Cruz Bottini6; Devassas na vida íntima de familiares de alvos da operação lava jato, durante investigações frívolas7.

Outro exemplo é a denúncia que foi ofertada contra o ex-senador Ciro Nogueira, lastreada unicamente na palavra de um delator. Acertadamente, a denúncia foi rejeitada pela 2ª turma do STF, por 3 a 1, em 14 de agosto de 20188.

Por vezes, ao empresário - acusado em processo criminal, afetado psicologicamente por tal situação, temendo as prisões preventivas decretadas sem respaldo legal e conduções coercitivas, com asfixia patrimonial, com os amigos próximos temerosos de fazer contato diante do labeling approach9, com denúncias ofertadas contra seus familiares, sob os holofotes da mídia opressiva que antecipa, publicamente, sua incerta e não comprovada culpa, taxando-o de criminoso - é ofertado uma possibilidade de obter benefícios para entregar terceiros e sair de toda a pressão que está vivendo. O que ele faz? Aceita, mesmo que, para isso, tenha que inventar ou "aumentar" fatos.

O overcharging inequivocamente atenta contra o Estado Democrático e deve ser fortemente combatido na defesa de um processo penal norteado pelos princípios trazidos com a Carta Política de 88.

Devemos reivindicar o controle da legalidade de malfadadas práticas como esta de nosso judiciário que, em caso de quedar-se inerte, estará sendo leniente com a ruptura do Estado Democrático, algo que, certamente, no futuro se voltará contra o próprio Poder Judiciário.

Não se está aqui a fazer uma crítica ao instituto da colaboração premiada, importantíssimo instrumento no combate ao crime organizado. O que se questiona são as relatadas práticas abusivas perpetradas pelo Estado-acusação, investidas contra o cidadão acusado, tornando-o inimigo público, quebrando-se a imparcialidade que deve ser inerente e um mantra para qualquer persecução penal justa.

Caso tenha restado qualquer dúvida, devemos comparar a situação brasileira - de utilização do overcharging para forçar a celebração dos acordos de colaboração premiada - com a situação americana - de utilização da desventurada prática para evitar a persecução penal, algo que, conforme no início do presente restou demonstrado, está criando uma grave crise no país do Ronald Mcdonald - para tirarmos nossas próprias conclusões.

O fato é que a história está aí para evitar que cometamos os mesmos erros do passado, algo que, notoriamente, o brasileiro esqueceu ou simplesmente prefere não enxergar.

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1 - CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Acordo de não persecução: é uma boa opção político-criminal para o Brasil? In: CUNHA, Rogério Sanches; BARROS, Francisco Dirceu; SOUZA, Renee do Ó; CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira (Coord.). Acordo de Não Persecução Penal. Salvador: Juspodivm. 2018, p. 370.

2 - Acordos na justiça criminal dos EUA chegam a 95%. Acesso em: 16 de setembro de 2019.

6 - Nem sempre é correta a dupla imputação por corrupção e lavagem. Acesso em: 16 de setembro de 2019.

9 - A Labeling Approach Theory, ou Teoria do Etiquetamento Social, é uma teoria criminológica marcada pela ideia de que as noções de crime e criminoso são construídas socialmente a partir da definição legal e das ações de instâncias oficiais de controle social a respeito do comportamento de determinados indivíduos.

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*Mathaus Agacci é advogado.

 

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