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O STF, o ICMS e o Minotauro!

José Ricardo Pereira

No julgamento do RHC 163.334/SC, mantendo coerência lógica com as conclusões havidas no RE 574.706/PR, a Corte Suprema concluiu o julgamento daquele para declarar a possibilidade de enquadramento penal típico da inadimplência dolosa do ICMS.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Atualizado em 30 de dezembro de 2019 14:19

A cultura grega, além de ter alcançado elevados padrões de racionalidade, com profundo desenvolvimento da lógica, não descurou da porção humana da afetividade brindando civilizações futuras com a rica alegoria dos mitos.

No julgamento do RHC 163.334/SC, mantendo coerência lógica com as conclusões havidas no RE 574.706/PR, a Corte Suprema concluiu o julgamento daquele para declarar a possibilidade de enquadramento penal típico da inadimplência dolosa do ICMS.

Em lógica, a lei do terceiro excluído (em latim, principium tertii exclusi ou tertium non datur) é a terceira de três clássicas Leis do Pensamento. Ela afirma que, para qualquer proposição, ou esta proposição é verdadeira, ou sua negação é verdadeira1. De um modo mais simplificado, a coisa é ou não é, não se permitindo que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo (o terceiro excluído).

Em obediência a essa regra, se for havida como premissa que o ICMS incidente sobre o produto ou serviço comercializado não deve compor a base de cálculo do PIS e da Cofins, porque não configura receita própria do contribuinte, é acertado que a retenção dolosa da receita de terceiros (agora da relação jurídica tributária), in casu, os Estados, representa a prática de ato enquadrável como apropriação indébita. Desta forma, se há acerto na decisão tomada no RE 574.706, mantendo coerência lógica, há acerto na decisão tomada no RHC 163.334, eis que, em sendo receita de terceiros, quem estiver em sua posse por força de obrigação legal, tomando para si coisa alheia, invertendo o animus possidendi para animus domini, conseguintemente, incorrerá em apropriação indébita.

Assim, o que é verdadeiro no RE 574.706/PR, também é verdadeiro no RHC 163.334/SC.

Todavia, a lógica e a matemática nem sempre socorrem ao direito e a justiça com a singeleza e simplicidade acima descritas. No mais das vezes, surgem monstros com cabeças tortuosas e caminhos sem saída ou ainda de difícil retorno.

No âmbito do RE 574.706/PR, com repercussão geral reconhecida, o pedido de "reconhecimento do direito de dedução da parcela do ICMS, destacadas nas notas fiscais, da base de cálculo do PIS e da COFINS", foi ao final integralmente provido pela Corte Suprema. Neste sentido, indicou o STF na ementa do julgado:

O regime da não cumulatividade impõe concluir, conquanto se tenha a escrituração da parcela ainda a se compensar do ICMS, não se incluir todo ele na definição de faturamento aproveitado por este Supremo Tribunal Federal. O ICMS não compõe a base de cálculo para incidência do PIS e da COFINS.

Diante do julgado de 2017, a Fazenda Nacional postula, em sede de modulação de efeitos, que o valor a ser excluído da base de cálculo do PIS e da COFINS seja somente aquele relativo ao ICMS efetivamente recolhido pelo contribuinte em operação comercial própria, sob pena de se criar crédito tributário fictício.

Em outro passo, integra o inteiro teor do julgado uma tabela elucidativa da forma de incidência do ICMS, a partir da qual a Corte Suprema concluiu pela não integração do ICMS nas bases de cálculo do PIS e da Cofins:

 

Indústria

Distribuidora

Comerciante

 Consumidor

Valor Saída

100

150

200

 

Alíquota

10 %

10 %

10 %

 

Destacado

10

15

20

 

A compensar

0

10

15

 

A recolher

10

5

5

 

À luz de referido quadro, faz-se necessário fixar alguns pontos:

- Nos termos da fundamentação do voto condutor do RE 574.706/PR, para demonstrar que o ICMS não deve incidir na base de cálculo do PIS e Cofins, foi utilizado o raciocínio constante na tabela;

- No exemplo, todas as fases dizem respeito a operações com incidência de ICMS;

- Desta forma, todos os intervenientes: indústria, distribuidora e comerciante são contribuintes do ICMS;

- De igual modo, por incidir o ICMS em suas operações, todos os contribuintes teriam direito a exclusão do ICMS da base de cálculo de PIS e COFINS na apuração destes;

- O ICMS total incidente, por força da regra constitucional da não cumulatividade, importou em 20 no exemplo.

Como dito, por vezes os caminhos se apresentam aterradores e tortuosos, vez que há efeitos colaterais não divisados ou desejados.

Com efeito, tomando-se, por exemplo, a figura do Comerciante, temos que, apesar de recolher efetivamente apenas a quantia de 5, a procedência do julgado permite-lhe destacar a quantia de 20 (valor do ICMS na nota fiscal de saída de sua operação). Mais, se todas as partes da cadeia afastarem de suas bases de apuração de PIS e COFINS o valor mencionado em cada nota fiscal de saída, teríamos um destaque total de 45 (10+15+20), ao passo que o total do ICMS recolhido foi de apenas 20 (10+5+5), gerando uma redução das bases de cálculo de PIS e COFINS de mais que o dobro do tributo efetivamente apurado e pago.

Uma análise mais detida da tabela utilizada no RE 574.706/PR demonstra a produção de efeitos inesperados como na mitologia do Minotauro: cabeça de touro, corpo de homem. Na mitologia, as anomalias decorrem da violação das leis divinas, no caso decorre da inobservância ou violação da lógica e matemática. Confira-se:

 

Indústria

Distribuidora

Comerciante

TOTAL do destaque e do ICMS incidente

Valor Saída

100

150

200

                 

Alíquota

10 %

10 %

10 %

 

Destacado

10

15

20

45

A compensar

0

10

15

 

A recolher

10

5

5

20

Observe-se, enquanto o ICMS total apurado é 20, a soma dos valores destacados nas notas fiscais atinge o montante de 45; assim o julgado, na interpretação hostilizada pela Fazenda Nacional, produz efeitos incongruentes.

Existe uma diferença de 25 entre o total do ICMS incidente em todas as operações (20) e o montante total de ICMS destacado nas notas fiscais de saída (45), a ser aclarado por razões lógicas, matemáticas e/ou contábeis.

No âmbito normativo, a situação é igualmente ilógica, porém de fácil compreensão, à luz da seguinte hipótese.

Enquanto o ICMS é apurado de forma acumulada, porém compensando-se o valor devido na operação anterior, para evitar o efeito cascata, tal proceder também deve ser seguido no eventual afastamento de sua incidência nas bases de cálculo de PIS e Cofins, para evitar-se, no caso, que todos os interessados acima, no exercício do direito reconhecido pelo julgado uniformizador, façam destaque de ICMS de suas bases de PIS Cofins em valores superiores ao incidente nas operações reais.

Por hipótese, pode se arguir que os dispositivos da LC 87/96, que conformam o imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, encerram a técnica de não creditamento (art. 20) e estorno (art. 21), os quais impedem efeitos como aqueles verificados no quadro acima, qual seja, a produção de créditos fictos.

Em resumo, se o ICMS é constitucionalmente não-cumulativo, logicamente, ele deve assim ser considerado: não-cumultativo, tanto para incidir, quanto para os casos em que é afastado.

Assim, o direito ao afastamento do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, se de fato existe, por se tratar de renda de terceiro, deve ser limitado ao valor real do ICMS incidente na operação.

Admitir o contrário, ou seja, de que cada parte pode destacar de suas bases de cálculo de PIS e Cofins o valor de face destacado da sua nota fiscal de saída própria, além de violar a regra da não-cumulatividade, queda por reduzir, sem previsão legal, as bases próprias de impostos e contribuições à semelhança de incentivo fiscal sem previsão legal própria.

Diante do quadro acima e dele derivado, há outro grande risco prestes a emergir da conclusão do julgado no RHC 163.334/SC, elevando as paredes do labirinto.

Acompanhem.

Ainda com base no quadro acima, temos a Indústria A, a Distribuidora B, o Comerciante C e o Consumidor D.

Então, no âmbito penal, a Indústria A, de modo deliberado, por votação secreta de sua diretoria (2x1), decidiu, de modo contumaz, não recolher os 10 de ICMS incidente em suas operações próprias. Como soe poderia acontecer, em que pese inadimplente contumaz e deliberada do ICMS, a referida Indústria também manejou ação na qual logrou provimento judicial para afastar o ICMS destacado de suas notas ficais das suas bases de cálculo de PIS e Cofins.

Da mesma forma, a Distribuidora B, também por decisão colegiada e secreta, por maioria de 2x1, adota conduta idêntica de declarar e deixar de recolher habitualmente os 5 de ICMS de suas operações próprias, bem como, ciente da inadimplência antecedente, adotou o mesmo proceder quanto ao manejo de ação sobre o ICMS na base de cálculo do PIS e Cofins da Industria A.   

Sorte outra ocorre com o Comerciante C, empresário individual, que apesar de ter pleno conhecimento do proceder da Indústria A e da Distribuidora B, mas igualmente ciente da possibilidade de vir a ser responsabilizado penalmente por deixar de recolher o ICMS das operações próprias, recolhe os 5 de ICMS apurados na sua contabilidade. Porém, ainda que ciente da inadimplência da Indústria A e da Distribuidora B, também promoveu seu planejamento tributário, afastando o ICMS destacado nas notas fiscais das bases de cálculo de PIS e Cofins. Bem ainda, indiferente a inadimplência antecedente de terceiros, de modo livre e consciente, cobra e desconta o ICMS total do Consumidor D.

Desse quadro ardiloso e capcioso, emergem algumas questões:

- Há uma organização criminosa no caso acima, ainda que por dolo eventual?

- O Comerciante C é coautor de apropriação indébita tributária ao exigir (cobrar e descontar) do Consumidor tributo de cuja inadimplência antecedente contumaz e deliberada tinha ciência?

As respostas são muitas e os desdobramentos maiores, porém uma coisa é logicamente certa: se existe alguma incongruência lógica, inconsistência matemática ou falha contábil no julgamento do RS 574.704/PR, como faz evidenciar a tabela acima, tal falha, como premissa para a conclusão do julgado do RHC 163.334/SC, segundo a lógica das proposições, permite afirmar que há também falha no julgamento final proferido no RHC.

Dito de outra forma, o problema pode não estar no RHC 163.334/SC em si, mas nas premissas advindas do RE 574.706/PR.

Pronto! A sorte do julgamento do RCH 163.334/SC esta mitologicamente associada ao destino do RE 574.706/PR. Desse encontro de mortais com divindades, nos quais nascem criaturas monstruosas, a polis é demandada a edificar labirintos elevados.

Como toda boa tragédia, as ciências auxiliares do direito não estão a lhe socorrer; a Contabilidade, em plena reforma, se apresenta dividida e insuficiente para aplacar a voracidade dos deuses, já a Matemática teima em açoitar os posicionamentos adotados, confrontando-os pela lógica e mera soma aritmética como se viu.

Derradeiramente, para tumultuar definitivamente o imbróglio, num futuro próximo e desolador; já que o ICMS foi havido como receita de terceiro, passível de apropriação indébita, o STF será chamado a responder: - deverá o ICMS próprio ser excluído do juízo universal da falência, tal como o adiantamento de contrato de câmbio? (súmula 307 do STJ e ADPF312)

Hardcases não possuem respostas simples. Porém, por vezes, para avançar há que se recuar um passo, corrigindo rumos. Nas ciências naturais, um bom guia para se encontrar o conjunto solução passa por redução a um denominador comum, simplificações e o afastamento de soluções conflitantes.

Desta sorte, pode se advogar que a solução está novamente no universo normativo, com observância das boas práticas das ciências naturais, a partir do que há que se tecer o fio salvador de Ariadne, com o emprego de reduções aos elementos base da Teoria Geral do Direito, temperando-se julgamentos futuros com conceitos da Teoria das Fontes das Obrigações: a lex,  contractus e delicto. Ainda, demanda-se um revisitar dos conceitos de partes da relação jurídico-tributária e o terceiro, bem como elementares dos tipos penais nelas aclarando parte autora e partícipes.

Por fim, há que se decidir, pacificando a polis sem antinomias.

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*José Ricardo Pereira é juiz federal, lotado e em exercício na 4ª Vara Federal de Caxias do Sul/RS, graduado em Direito pela PUC/RS, com especialização em Direito Tributário pela UCS/ESMAFE, procurador do Estado do RGS entre 2002/2004, juiz federal desde 2004.

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