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A interpretação contextual do contrato no direito comercial inglês

Após a submissão de um contrato para que sua interpretação correta seja determinada por um tribunal ou para que a parte prejudicada recupere suas perdas, o juiz terá em seu repertório as fontes acima mencionadas para dar uma solução adequada ao caso apresentado.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Atualizado em 15 de janeiro de 2020 14:09

A questão referente à tarefa que deve ser cumprida pelos tribunais ao abordar ações judiciais envolvendo disputas baseadas em contratos comerciais deve ser desenvolvida mediante a busca de um equilíbrio entre duas principais fontes normativas: o contrato em si e o próprio common law. A exigência legal do cumprimento das cláusulas contidas em um contrato é uma expressão do reconhecimento da liberdade contratual. Por outro lado, as limitações dessa liberdade impostas pelo direito contratual inglês estabelecem que as partes não podem concordar com o que quiserem, independentemente de questões de política pública e requisitos de validade para considerar a parte legalmente vinculada - ou seja, sua disposição a voluntariamente celebrar um contrato.

Dito isto, quando as partes assinam um contrato, esperam ver resultados positivos provenientes da transação acordada. Mas nem todos os contratos usam termos legais e comerciais em sua versão mais clara e técnica; portanto, sob essa condição, quando um conflito de interesses surgir, se não for mediado, forçará as partes a ingressar com uma ação judicial. Após a submissão de um contrato para que sua interpretação correta seja determinada por um tribunal ou para que a parte prejudicada recupere suas perdas, o juiz terá em seu repertório as fontes acima mencionadas para dar uma solução adequada ao caso apresentado.

No entanto, essa atividade não é simplesmente mecânica, mas envolve o uso de um método legítimo para descobrir quais eram as expectativas razoáveis das partes. Esse método, que consiste em antecipar as expectativas razoáveis dos litigantes em seus acordos contratuais, é conhecido como interpretação contextual do contrato.

Antes de avançar para os detalhes da noção de interpretação contextual, é importante enfatizar algo óbvio que, entretanto, não parece tão óbvio a partir da leitura dos casos explorados para este ensaio. Como pode ser visto, a interpretação contextual não é uma fonte do próprio direito contratual, mas um método para encontrar o que as partes esperavam ser o resultado adequado de sua relação contratual e, assim, efetivá-la. Como consequência do julgamento do caso, uma fonte primária do direito (jurisprudência) surge com sua ratio decidendi sendo a adequação do uso, pelos tribunais, da interpretação contextual ao enfrentar disputas comerciais1.

A abordagem contextual para a interpretação de contratos comerciais contém a idéia de que a expectativa razoável das partes ao executar um contrato deve ser determinada a partir do contexto comercial e das informações que estavam razoavelmente disponíveis para elas. É importante destacar o fator de intersubjetividade nessa noção, ou seja, a abordagem contextual pode não resultar no julgamento do significado que as partes desejavam, mas no sentido que pode ser razoavelmente extraído da estrutura do segmento industrial em que o contrato é inserido, fazendo sentido para qualquer parte que estaria contratando uma disposição semelhante no mesmo contexto, não apenas para as partes envolvidas naquele processo em particular2.

É aqui que a noção de senso comum comercial também desempenha seu papel - ou seja: os tribunais ingleses não se dedicam apenas a perfeccionismos e tecnicismos gramaticais, mas, em vez disso, contextualizam a redação do contrato analisado para corresponder, na medida do possível, seu significado com as expectativas comerciais das partes envolvidas3.

Sucintamente, o contexto do qual as expectativas razoáveis das partes devem ser extraídas consiste na "matriz factual". A definição de "matriz factual" foi dada por Lord Hoffman em Investors Compensation Scheme v West Bromwich Building Society4 como compreendendo "absolutamente tudo o que teria afetado a maneira pela qual o linguajar do documento teria sido entendido por um homem razoável".

Kramer5 destaca que as informações que podem ser consideradas como influenciando o contexto contratual são apenas aquelas compartilhadas mutuamente por ambas as partes; em outras palavras, não é possível limitar a expectativa de uma parte no desempenho contratual da contraparte exigindo conhecimento de fatos ou circunstâncias particulares que, nesse contexto, só estão disponíveis para esta última.

Porém, dizer que os tribunais podem adotar uma abordagem contextual na interpretação de um contrato comercial, a fim de fazer cumprir as expectativas razoáveis das partes, não significa, porém, que ele possa reescrever o contrato. No sistema contratual inglês, os procedimentos de negociação pré-contratual são excluídos de revisão judicial, de modo que as partes não podem apresentar argumentos relativos aos resultados de suas negociações, na esperança de que os tribunais os isentem de cumprir obrigações decorrentes de um acordo "injusto", exceto quando legalmente proibido6.

Tendo exposto brevemente o embasamento teórico da interpretação contextual dos contratos, para analisar sua eficiência na facilitação da atividade comercial, é necessário extrair os resultados da interpretação de casos notáveis recentes da Suprema Corte do Reino Unido.

Em Arnold v Britton7, os contratos de arrendamento de um arrendador de chalés de férias continham uma cláusula de taxa de serviço. Tal cláusula determinava que os arrendatários deveriam pagar uma parte proporcional das despesas incorridas pelos arrendadores na reparação, manutenção, renovação e prestação de serviços no valor anual de 90 libras. Esse valor seria aumentado em uma taxa de 10% ao ano.

Lord Neuberger, de Abbotsbury, analisando o contexto da inflação que afetou o Reino Unido no momento da assinatura dos contratos de arrendamento, entendeu que o objetivo subjacente da cláusula era "apostar" nas probabilidades das taxas de inflação nos próximos anos. Ou seja, se a inflação fosse superior a 10% ao ano (o que, em um determinado período de tempo durante a execução do arrendamento, na verdade era), o arrendador estaria em prejuízo - fornecendo os serviços por um preço menor do que o esperado em sua aposta - mas, inversamente, se a inflação fosse inferior a 10% ao ano, o locatário estaria em prejuízo - pagando pelos serviços um preço mais alto do que o esperado em sua aposta. No entanto, os arrendatários ingressaram com uma ação judicial contra o arrendador alegando que, nos próximo anos, os valores relativos a essa taxa de serviço se tornariam anormalmente altos, uma vez que os tempos de inflação alta já passaram no Reino Unido.

A Suprem Corte negou provimento ao recurso, adotando uma abordagem contextual na interpretação do contrato, sustentando que:

É claro que o aumento de 10% ao ano na cláusula ... foi incluído para permitir um fator que estava fora de controle de qualquer uma das partes, a inflação. Na minha opinião, não existe um princípio de interpretação que autorize um tribunal a reescrever uma disposição contratual simplesmente porque o fator que as partes consideraram não parece estar se desenvolvendo da maneira que as partes poderiam ter esperado.

No caso Wood v Capita8, o recorrente comprou capital social do demandado. No contrato de venda, havia uma cláusula geral de indenização que previa que o vendedor indenizasse o comprador por "todas as ações, procedimentos, perdas, reclamações, danos, custos, encargos, despesas e passivos sofridos ou incorridos e todas as multas, indenizações ou reparações ... relacionados ao período anterior à data de conclusão".

Porém, o contrato também possuía uma seção de garantias com prazo de validade de dois anos após a data de conclusão (a data em que o contrato foi firmado) e, nessa lista de garantias, foi incluído o fato de a empresa estar realizando negócios "de acordo com o requisitos de todas as leis de concorrência e leis de serviços financeiros aplicáveis" e não ter sido ou estar sendo investigada por qualquer suposta infração.

Ocorreu que, logo depois que o recorrente estava na posse da empresa, os funcionários o avisaram de que algumas condutas realizadas até então poderiam ser caracterizadas como venda motivada por prestação de informação incorreta. Assim, Capita informou tal situação à Financial Services Authority que, por sua vez, determinou que a empresa indenizasse os respectivos clientes. Capita então ingressou com uma ação contra o vendedor sob a cláusula geral de indenização.

Lord Hodge sustentou que, embora o vendedor provavelmente soubesse dos problemas de venda motivada por prestação de informação incorreta, o fato era que o recorrente havia decaído de tal direito específico, o que não pôde ser afastado pela cláusula geral de indenização. Para Lord Hodge, não era contrário ao senso comum comercial que as partes acordassem garantias abrangentes, sujeitas a um limite de tempo, além de concordar com uma indenização adicional, que não está sujeita a esse limite, mas é acionada apenas em circunstâncias limitadas.

Dito isso, pode-se constatar do julgamento de ambos os casos analisados que os tribunais não estão dispostos a permitir que fatores externos não intrinsecamente relacionados ao contexto comercial do contrato interfiram na interpretação contextual das cláusulas e, em vez disso, consideram muito mais a criação privada de um regime contratual para a transação comercial que seja coerente com os fatos e circunstâncias apresentados.

Ao adotar a abordagem contextual na interpretação dos contratos comerciais, os juízes reafirmam o princípio da certeza jurídica ao interpretar o significado das cláusulas contratuais em relação à estrutura do contrato como um todo, legitimando a liberdade das partes de ordenar de maneira privada suas transações comerciais sem serem indiferentes ao contexto comercial subjacente em que estas foram acordadas ou intervir inadequadamente em um contrato em que, apesar de seus resultados serem aparentemente irracionais, o contexto em que seus termos se baseiam fornece evidências suficientes de que, em circunstâncias semelhantes, cláusulas semelhantes teriam o mesmo efeito. Da mesma forma, como a lógica da certeza jurídica é principalmente a necessidade de os empresários preverem as consequências de seus negócios, é razoável e justa, tendo em conta as partes que negociam diferentes produtos ou serviços em diferentes setores e com diferentes graus de complexidade, a expectativa de que o judiciário tenha a capacidade de analisar profundamente a prova documental da situação específica, a fim de dar ao conflito a melhor solução, e não apenas fazer uso de formulações genéricas que impõem às partes regras padronizadas que podem ser incongruentes com a realidade diária de seus negócios.

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1 MITCHELL, Catherine. Obligations in Commercial Contracts: A Matter of Law or Interpretation? Current Legal Problems, Oxford, v. 65, n. 1, p. 455-488, 2012.

 

2 COLLINS, Hugh. Lord Hoffmann and the Common Law of Contract. European Review of Contract Law, Bad Feilnbach, v. 5, n. 4, p. 474-484, 2009.

 

3 ANDREWS, Neil. Interpretation of Contracts and "Commercial Common Sense": Do Not Overplay This Useful Criterion. The Cambridge Law Journal, Cambridge, v. 76, n. 01, p. 36-62, mar. 2017.

4 Investors Compensation Scheme v West Bromwich Building Society [1998] 1 WLR 896.

5 KRAMER, Adam. Common Sense Principles of Contract Interpretation (and how we've been using them all along). Oxford Journal of Legal Studies, Oxford, v. 23, n. 2, p.173-196, jun. 2003.

6 ANDREWS, Neil. Interpretation of Contracts and "Commercial Common Sense": Do Not Overplay This Useful Criterion. The Cambridge Law Journal, Cambridge, v. 76, n. 01, p. 36-62, mar. 2017.

7  Arnold v Britton & ors [2015] UKSC 36.

8 Wood v Capita Insurance Services Limited [2017] UKSC 24.

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*Eduardo Silva de Freitas é advogado, possui graduação em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (2018) e LL.M. em Corporate and Commercial Law pela University of Sheffield (2019).

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