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Sobre a nulidade das provas colhidas em prisão temporária considerada ilegal. Uma análise à luz da decisão do STF a respeito da condução coercitiva

Angela Macedo Menezes de Araújo e Paulo Renato Smaniotto

Por certo o aumento no número de deferimentos de pedidos de prisão em sede inquisitorial ocasiona o aumento da declaração de ilegalidade das mesmas pelos tribunais competentes.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Atualizado às 14:05

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Recentemente o plenário do Supremo Tribunal Federal, nas ADPFs 395 e 444, declarou a não recepção do art. 260 do Código de Processo Penal pela Constituição Federal vigente no que diz respeito à condução coercitiva do réu para interrogatório. Durante o julgamento surgiram destacadamente três correntes sobre o tema: para a primeira a condução do investigado pelo aparato estatal seria possível desde que precedida de intimação prévia; para a segunda, deveria ser atribuída interpretação conforme à CF para possibilitar ao Magistrado sua imposição desde que em substituição à medidas cautelares consideradas mais graves, mostrando-se imprescindível, porquanto, a demonstração dos requisitos de tais medidas; já para a terceira, que veiculou corrente vencedora naquele Sodalício, a condução coercitiva do investigado não seria albergada pela Lei Maior em qualquer hipótese, por ofender o direito à liberdade pessoal, à presunção de não culpabilidade e à não autoincriminação.

Foi realizada ainda, na oportunidade, a modulação dos efeitos da decisão tomada pelo Plenário da Suprema Corte para manter incólumes os interrogatórios realizados sob condução coercitiva até a data do julgamento1.

Uma das consequências do descumprimento da decisão, segundo Voto do Ministro Gilmar Mendes, além da responsabilização civil do próprio Estado, do agente ou autoridade pública responsável em todas as esferas de apuração, seria a declaração de ilicitude das provas obtidas derivadas da inconstitucional condução coercitiva.

Outro ponto frágil tratado no julgado diz respeito à exposição dos investigados nos mais variados meios de comunicação, principalmente noticiando sua condução coercitiva, fato criticado no voto condutor do acórdão da lavra do Ministro Gilmar Mendes. Segundo o Ministro, que mencionou casos tratados na Corte Europeia de Direitos Humanos sobre o tema, tal prática afrontaria os princípios da presunção de inocência e dignidade da pessoa humana.

Em muitas hipóteses a exploração midiática da "deflagração da operação policial" era acompanhada de prisão preventiva ou, quando não era o caso da constrição total da liberdade, da aclamada condução coercitiva, incansavelmente invocada na Operação Lava Jato. Inumeráveis trabalhos acadêmicos foram dedicados ao estudo do papel da opinião pública nos processos criminais, especialmente aqueles responsáveis pela investigação de pessoas de maior destaque político ou econômico.

Aderindo à corrente vencedora, o ministro Dias Toffoli, em incisiva crítica à espetacularização da condução coercitiva fez a seguinte comparação:

Guardadas as devidas proporções, a espetacularização da condução coercitiva - convertida, muitas vezes, em mero instrumento para vexar e constranger - nos remete, numa retroação de mais de 400 (quatrocentos) anos, à sombra das Ordenações Filipinas - que entraram em vigor em 11 de janeiro de 1603 e cuja parte criminal vigorou no Brasil até o Código Criminal do Império (1830).

(...)

Havia, para diversos crimes, previsão ainda de açoitamento com baraço (grossa corda ou corrente atada ao pescoço) e "pregão" (confira-se, v.g., o Título XLV - assuada, isto é, ajuntamento de pessoas para motim ou arruaça; o Título LX, item 1 - "abrir porta ou entrar em casa com ânimo de furtar"; e o Título LXIX - ciganos que violem proibição de entrar no Reino).

Relembro que a espetacularização das prisões cautelares e o uso abusivo de algemas como instrumento de execração pública do imputado, ao melhor estilo das medidas infamantes previstas nas Ordenações Filipinas, levaram este Supremo Tribunal Federal a editar a súmula vinculante 11.

A despeito de toda a crítica contida às espalhafatosas operações policiais nas ADPFs em menção, e por via transversa à própria ratio decidendi da decisão do Plenário, Polícia Judiciária e Ministério Público inquestionavelmente enxergaram na prisão temporária uma alternativa à restrição feita pelo STF ao art. 260 do CPP. Tal fato não causa estranhamento uma vez que no próprio bojo do acórdão foi aventada a tese alternativa, como no caso do ministro Edson Fachin, de que apenas poder-se-ia admitir a condução coercitiva desde que o fosse em substituição às medidas cautelares típicas mais gravosas, e enquanto demonstrado o cabimento da medida substituída, como no caso de prisão provisória ou temporária, inobstante as diferenças fundamentais de pressupostos e requisitos dentre as possíveis pretensões mencionadas.  Tal corrente, entretanto, restou vencida no julgamento.

Interessante pontuar que a lei 13.245/16 determinou, sob pena de nulidade absoluta, a assistência de advogado durante inquirição oriunda de investigação policial, justamente para evitar abusos na realização de tais atos2.

Como consequência, após o julgamento das ADPFs que tratavam do tema, com a impossibilidade de se determinar condução coercitiva em relação ao investigado, houve substancioso aumento de pedidos e, por conseguinte, de decretações de prisões temporárias.

Em matéria publicada sobre o tema, o Jornal Estadão divulgou a existência de um aumento de cerca de 32% (trinta e dois por cento) das prisões temporárias cumpridas pela Polícia Federal nos primeiros quatros meses do ano subsequente à decisão do Supremo3.

Consubstancia-se a prisão temporária em medida acautelatória própria do Inquérito Policial, com efeito prático similar à coercitiva e ainda mais restritivo à liberdade do investigado.

Tal espécie de constrição cautelar, por sua vez, se encontra disciplinada na lei 7.960/89, que exige, para sua decretação, além do fumus comissi delicti da prática dos crimes taxativamente pré-determinados na referida norma legal, o periculum libertatis. A inobservância de tais requisitos quando de sua estipulação acarreta na declaração da ilegalidade da medida, com sua consequente revogação pela instância superior.

Por certo o aumento no número de deferimentos de pedidos de prisão em sede inquisitorial ocasiona o aumento da declaração de ilegalidade das mesmas pelos tribunais competentes4.

Conquanto, pelos mesmos motivos daqueles invocados no controle de constitucionalidade responsável pela declaração de não-recepção do art. 260 do CPP, a declaração de constrangimento ilegal da estipulação de uma prisão temporária, ao alvedrio dos requisitos legais, deve levar à declaração de nulidade de quaisquer depoimentos tomados neste cenário, e ainda de qualquer outra prova colhida que lhe seja diretamente decorrente, obedecendo-se a Constituição Federal e o próprio Código de Processo afeto à matéria.

Em ambos diplomas legislativos é assegurada a inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos. Inclusive a CF prevê tal normativa como uma garantia fundamental e, por conseguinte, cláusula pétrea.

O CPP por sua vez estipula  no art. 157, § 1º5 a impossibilidade de utilização das provas derivadas das ilícitas, consagrando o que a doutrina denomina de fruits of the poisonous tree. O princípio é abordado pela Suprema Corte da seguinte maneira: "A doutrina da ilicitude por derivação (teoria dos 'frutos da árvore envenenada') repudia, por constitucionalmente inadmissíveis, os meios probatórios, que, não obstante produzidos, validamente, em momento ulterior, acham-se afetados, no entanto, pelo vício (gravíssimo) da ilicitude originária, que a eles se transmite, contaminando-os, por efeito de repercussão causal".6

Assim, a verificação da regularidade de prisão temporária verificada em sede de Habeas Corpus  ou ainda submetida ao juiz responsável pela condução do processo - que deverá analisar incidentalmente a questão, na primeira instância ou em grau recursal - deverá acarretar, caso aferida a ilicitude na decretação da medida extrema, na declaração de ilicitude de todas as provas colhidas e que lhes forem derivadas, em obediência ao princípio constitucional e processual em referência.

Tal exegese inclusive impossibilitaria a declaração de perda do objeto do remédio constitucional manejado em caso de soltura do agente investigado. O mérito nesses casos deve ser necessariamente analisado, tendo em vista as consequências que inexoravelmente adviriam de sua conclusão.

Apenas tal entendimento causaria conforto num estado democrático de direito, onde há inegável utilização da prisão temporária como verdadeira forma de condução coercitiva, muitas vezes ao arrepio da lei. Inclusive a prisão inquisitorial em questão se apresenta como sendo mais gravosa ao acusado, e como meio restritivo significante da liberdade de locomoção do indivíduo deve sempre ser vista como a ultima ratio.

___________

1 Disponível aqui, acesso em 26 de novembro de 2019.

2 Disponível aqui, acesso em 26 de novembro de 2019.

3 Disponível aqui, acesso em 26 de novembro de 2019.

4 HABEAS CORPUS. PENAL. MITIGAÇÃO DO VERBETE SUMULAR N.º 691 DO STF.

PARTICIPAÇÃO EM TENTATIVA DE FEMINICÍDIO. PRISÃO TEMPORÁRIA (LEI N.º 7.960/1989). AUSÊNCIA DE ELEMENTOS CONCRETOS EXTRAÍDOS DOS AUTOS PARA JUSTIFICAR O RISCO AO INQUÉRITO POLICIAL EM CURSO (PERICULUM LIBERTATIS). LIMINAR DEFERIDA. EXTINÇÃO DA IMPETRAÇÃO ORIGINÁRIA SEM JULGAMENTO DO MÉRITO. SUBSISTÊNCIA DO INTERESSE NO JULGAMENTO DESTE WRIT. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO, CONFIRMANDO A LIMINAR.

1. Consoante o posicionamento adotado pelos Tribunais Superiores, não se admite habeas corpus contra decisão negativa de liminar proferida em outro writ na Instância de origem, sob pena de indevida supressão de instância. Esse entendimento está sedimentado na Súmula n.º 691/STF. Todavia, é assente a possibilidade de mitigação desse enunciado, em hipóteses excepcionais, quando emergir dos autos situação de flagrante ilegalidade.

2. No âmbito deste Superior Tribunal há reiteradas manifestações no sentido de que "[a] concessão de liminar per saltum, em decisão precária, não prejudica o julgamento de mérito do habeas corpus requerido a tribunal, a ser realizado em diferente grau de cognoscibilidade" (HC 449.024/RJ, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 23/08/2018, DJe 04/09/2018). 3. Nos termos da Lei n.º 7.960/1989, são pressupostos para a prisão temporária o fumus comissi delicti (art. 1.º, inciso III) e o periculum libertatis (art. 1.º, inciso I ou II). Exige-se, portanto, fundadas razões de autoria ou participação em determinados fatos típicos investigados, dentre os quais o homicídio qualificado, quando imprescindível para o inquérito policial ou quando o investigado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade.

4. No caso, embora as instâncias ordinárias tenham consignado fundadas razões de participação (fumus comissi delicti) em fato típico que comporta a prisão temporária (homicídio qualificado), não evidenciaram a imprescindibilidade às investigações, requisito inerente à decretação da prisão temporária, revelada por meio da demonstração concreta de risco ao inquérito policial em curso (periculum libertatis), não podendo ser apoiada em eventual omissão ou pela falta de colaboração do investigado.

5. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida, de ofício, confirmando a liminar, para revogar a prisão temporária, sem prejuízo de nova decretação, se concretamente demonstrada sua imprescindibilidade.

(HC 503.446/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 24/09/2019, DJe 07/10/2019).

5 § 1o  São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm

6 STF, RHC 90.376/RJ, j. 03.04.2007, rel. Min. Celso de Mello

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*Angela Macedo Menezes de Araújo é advogada atuante na área de Direito Penal há cinco anos.

*Paulo Renato Smaniotto é advogado atuante na área de Direito Penal há oito anos.

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