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Uma lei para estabelecer e "inocentar" o óbvio - Inexigibilidade de licitação para contratação de advogados especializados

O PL 4.489/2019 veio trazer segurança jurídica para os gestores públicos, pois corriqueiramente são responsabilizados civil, administrativamente e penalmente pela contratação de escritórios de advocacia especializados, principalmente em pequenos municípios.

terça-feira, 3 de março de 2020

Atualizado às 10:26

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Está em tramitação no Congresso Nacional o PL 4489/2019, já aprovado pela Câmara dos Deputados e Senado Federal, mas vetada pelo Presidente da República. O referido projeto de lei estabelece de forma inequívoca que os serviços advocatícios e de contabilidade são de notória singularidade, quando comprovada a especialização do profissional.

Nesses termos, prevê o art. 3º-A do projeto em comento:

"Art. 3º-A Os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização nos termos da lei.

Parágrafo único. Considera-se notória especialização o profissional ou a sociedade de advogados cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato." (g.n)

A proposta da lei não tem por objetivo prever o conceito de especialização, pois deixa ao arbítrio do gestor público a análise da especialização do contratado, não impedindo que o Poder Judiciário (ou até o Legislativo, pela fiscalização) façam a análise do conceito subjetivo da norma.

Feita a análise e comprovada a especialização do profissional, ao gestor público cabe a faculdade de inexigir a licitação para sua contratação, conforme dispõe a Lei de Licitações (lei 8.666/93):

"Art. 25.  É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:

[...]

II - para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;

[...]

§ 1º Considera-se de notória especialização o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato." (g.n)

Note a semelhança entre o §1º do art. 25 da Lei de Licitações (lei 8.666/93) e o PL 4.489/2019. O legislador praticamente reproduziu a redação da Lei de Licitações no Estatuto da Advocacia para expressamente prever que os profissionais notoriamente especializados não devem ser submetidos a procedimento licitatório.

O PL 4.489/2019 veio trazer segurança jurídica para os gestores públicos, pois corriqueiramente são responsabilizados civil, administrativamente e penalmente pela contratação de escritórios de advocacia especializados, principalmente em pequenos municípios. Muitos gestores respondem a processos de improbidade administrativa e até mesmo a crime por dispensa/inexigibilidade de licitação fora das hipóteses legais (art.89 da lei 8.666/93), mesmo quando inocentados nos processos de improbidade administrativa, dada a separação dessas esferas de responsabilização.

Eventual derrubada ao veto integral do PL 4.489/2019, além de dar segurança jurídica para inexigir licitação para contratação de escritórios de advocacia especializados, tem outro efeito, pouco visto, que é trazer a norma penal mais benéfica que retroagirá. Isto porque a Constituição da República expressamente dispõe, em seu art.5, XL, que "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu". Se o veto integral do Presidente da República for derrubado e o Congresso Nacional sancionar o texto, estaremos diante de uma lei que poderá afetar processos penais que ainda estão em curso.

Isto porque, a única exceção no ordenamento jurídico que permite a retroatividade da lei será no caso de beneficiar o réu. A norma do art. 89 da lei 8.666/93, dispõe: "Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade: Pena - detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa".

Este tipo penal é o que a doutrina chama de norma penal em branco, que precisa da complementação de outra norma para configurar a tipicidade da conduta. Este é o caso, por exemplo, do tráfico de drogas (art. 33 da lei 11.343/06) que exige que o sujeito pratique um dos núcleos do "caput" "sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar", neste caso observa-se as normas da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária, do Ministério da Saúde) que definirá se o objeto é uma droga.

No caso do art. 89 da lei 8.666/93 para a definição da tipicidade da conduta, exige-se que julgador observe as hipóteses em que é dispensada ou inexigida a licitação. Deparando-se com o PL 4.489/19 (se sancionada), o julgador observará que os serviços advocatícios são singulares conforme disporá o Estatuto da OAB, enquadrando-se perfeitamente no conceito §1º do art. 25 da Lei de Licitações, que inexige contratação para serviços advocatícios especializados, havendo, portanto atipicidade da conduta do art. 89 da lei 8.666/93.

Existindo atipicidade da conduta para fatos atuais, impõe-se que a lei penal, que de qualquer forma seja mais benéfica, retroaja para fatos pretéritos. Por exemplo, se um prefeito, anteriormente, havia inexigido licitação e contratado um escritório de advocacia especializado para o município, e foi condenado pelo crime de inexigibilidade de licitação fora das hipóteses legais (art.89 da lei 8.666/93); com a superveniência da derrubada de veto e a sanção do projeto de lei, existirá lei penal mais benéfica, que retroagirá para beneficiar ato pretérito do prefeito, já que de forma clara e inequívoca o projeto de lei define a contratação de escritórios de advocacia especializados como de natureza singular em consonância com as hipóteses de inexigibilidade de licitação.

Logo, eventuais efeitos da condenação penal seriam extintos, incluindo-se a perda dos direitos políticos (consequência da condenação - art. 15, III da CR/88) e a inelegibilidade por oito anos (lei complementar 64/90 - Art.1, I, e), tendo agora o condenado pleno direito de disputar eleições, por exemplo.

Com isso, os gestores públicos terão efetiva segurança jurídica ao se depararem com a hipótese de contratação de profissional notoriamente especializado, permitindo aos administradores públicos pretéritos, que inexigiram licitação nesta hipótese e foram injustamente condenados pelo crime do art. 89 da lei 8.666/93, a extinção da pena e de seus efeitos.

Estando em trâmite o processo criminal, nessa hipótese, a superveniência da lei mais benéfica poderá ser conhecida em qualquer grau originário ou recursal; havendo trânsito em julgado da condenação, caberá ao gestor público, segundo a súmula 611/STF, requerer ao Juiz de execuções a aplicação da lei penal mais benéfica ao seu caso.

Caberá ao Congresso Nacional a responsabilidade de decidir sobre a derrubada do veto, estando seus membros cientes dos efeitos que virão desta norma indispensável à correta aplicação do art. 25, II da Lei de Licitações e do art. 37, XXI, da CR/88.

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União. Brasília, 1988. Disponível aqui. Acesso em: 22 jan. 2020.

BRASIL. Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993.  Diário Oficial  da  União. Brasília, Disponível aqui. Acesso em: 1 dez. 2019.

BRASIL. Projeto de Lei. 4.489, de 2019. Altera a lei 8.906, de 4 de julho de 1994, e o decreto-lei 9.295, de 27 de maio de 1946, para dispor sobre a natureza singular e notória dos serviços de advogados e de profissionais de contabilidade. Senado Federal. Brasília. Disponível aqui. Acesso em: 15  fev. 2020.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 33 ed. São Paulo: Atlas, 2019.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: Parte Geral. Salvador: Jus Podivm, 2020.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 16. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.

MARCÃO, Renato. TÓXICOS - Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006, anotada e interpretada, 4ª ed. reformulada, 2006, p. 193.

NOHARA, Irene Patrícia; CÂMARA, Jacintho Arruda. Tratado de direito administrativo: licitação e contratos administrativos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.

RIBEIRO, Adriano da Silva; MIRANDA, J. S.; GREGORIO, G. G. V. . A singularidade do objeto como fundamento para a inexigibilidade de licitação para contratação direta de serviços de advocacia e consultoria jurídica. 2019. (Apresentação de Trabalho/Congresso). Centro Universitário do Estado do Pará/Belém; Evento: XXVIII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI; Inst. promotora/financiadora: CONPEDI e CESUPA.

 

SALGADO, Plínio Salgado; TEIXEIRA, Ana Carolina Wanderley Teixeira. Inexigibilidade de licitação para contratação de advogados na jurisprudência dos tribunais superiores. In: PEREIRA, Flávio Henrique Unes; CAMMAROSANO, Márcio; SILVEIRA, Marilda de Paula; ZOCKUN, Maurício (Coord.). O direito administrativo na jurisprudência do STF e do STJ: homenagem ao Professor Celso Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 467-468.

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*Adriano da Silva Ribeiro é doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA (2019).

*Estevão Grill Pontone é estudante de Direito na Universidade José do Rosário Vellano (UNIFENAS); Estagiário do Escritório Vanessa Verdolim Consultoria e Advocacia.

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