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O covid 19 e a imprescindível tutela jurídica à renegociação dos contratos no direito brasileiro

O momento é de profunda consternação. Importante, contudo, que, com serenidade e maturidade, consigamos extrair lições dessa pandemia, de modo que a sociedade, encerrado esse pesadelo, fique mais unida e evoluída, aprimorando as normas que regulam as relações contratuais, as quais estão, inegavelmente, presentes no cotidiano de todos.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Atualizado às 11:42

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"Procure indagar-se, sem compromissos prévios, o que vitima o contrato atingido por uma alteração das circunstâncias"1.

A propagação do Coronavírus (Covid-19) foi classificada como pandemia pela Organização Mundial da Saúde em 11 de março. Na tentativa de conter a disseminação do vírus, as autoridades de inúmeros países recomendaram - e, em seguida, determinaram - a restrição da circulação de pessoas, o que, necessariamente, ocasionou o fechamento de fábricas, quedas bruscas e graves nas atividades de comércio e serviços, entre outras diversas consequências no âmbito comercial.

A despeito das medidas de cunho econômico que vêm sendo tomadas pelos países afetados para minorar os impactos da pandemia sobre a economia, os particulares se verão, inevitavelmente, diante de contratos que se tornarão excessivamente onerosos. O direito brasileiro contém normas específicas que tratam da superveniência de acontecimentos imprevisíveis e extraordinários durante a execução de um contrato, tornando o seu cumprimento excessivamente gravoso para uma das partes.

O art. 478 do Código Civil, primeira parte, prevê que, "nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato". O art. 479 dispõe, por sua vez, que "a resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato". 

A intenção do legislador foi nobre ao conferir à parte excessivamente onerada a possibilidade de requerer, judicialmente, a resolução do contrato (art. 478), prevendo-se também sua revisão, caso o réu concorde em modificá-lo (art. 479).

Não se pode deixar de criticar, contudo, o fato de que o art. 478 confere à parte excessivamente onerada apenas a possibilidade de requerer a resolução do contrato. No direito positivo, somente o réu da ação (parte favorecida) pode, se quiser (direito potestativo), oferecer-se à modificação equitativa do contrato.

Felizmente, doutrina e jurisprudência vêm autorizando a parte onerada a postular diretamente a revisão do contrato, com a sujeição da parte favorecida em caso de procedência da ação2.

Por outro lado, tais normas não criam qualquer arcabouço de tutela para que as partes entrem em negociação, com vistas à revisão extrajudicial do contrato, o que certamente geraria frutos mais profícuos do que a necessidade de intervenção do Poder Judiciário (resolução ou a revisão judicial).

Diante do cenário tão grave e imprevisível gerado pela pandemia, em que é fundamental o isolamento, quarentena e distanciamento social para frear a curva de contágio, muitos contratos serão diretamente impactados de forma gravíssima, até mesmo irreversível em vários casos. Estamos vivenciando uma catástrofe.

Assim, além de os particulares se valerem das normas acima mencionadas, parece-nos preferível - e, mais do que isso, imprescindível - o estímulo às negociações extrajudiciais, com o objetivo de reequilibrar negócios jurídicos afetados pelas consequências da pandemia de Coronavírus que atingiu diversos países do mundo.

No âmbito do comércio internacional, em virtude da maior sujeição a fatores imprevistos no momento da celebração dos contratos - tais como atos governamentais, fluxos cambiários, disposições tributárias e, inclusive, atos da natureza -, os operadores econômicos desenvolveram há tempos a cláusula hardship - cuja tradução corresponde a uma adversidade, um infortúnio -, a qual estabelece um dever de renegociação, quando ocorre uma alteração significativa das circunstâncias capaz de comprometer o seu equilíbrio.

A sistemática contida nessa cláusula fora, posteriormente, incorporada aos Princípios do Unidroit - organização intergovernamental independente com sede em Roma-, os quais consistem em uma compilação de diversos conceitos jurídicos, extraídos de fontes existentes no direito internacional privado e no direito do comércio internacional, aplicáveis aos contratos internacionais3.

Com efeito, o art. 6.2.3 (1) dos Princípios do Unidroit declaram que "em caso de hardship, a parte em desvantagem tem direito de pleitear renegociações" e que "tal pleito deve ser feito sem atrasos indevidos e deverá indicar os fundamentos nos quais se baseia"; o item (3) do referido dispositivo prevê, por sua vez, que "caso não se alcance um acordo dentro de um período razoável de tempo, qualquer das partes pode recorrer a um Tribunal".

A menção à hardship parece-nos bastante oportuna, pois, como se disse, seu desenvolvimento ocorreu, inicialmente, mediante a aposição de uma cláusula a respeito dos efeitos da imprevisão e do dever de renegociação nos contratos internacionais. No entanto, a partir da incorporação da sistemática contida em tal cláusula aos Princípios do Unidroit, acabou-se por conferir às partes um direito à renegociação independentemente da aposição de tal cláusula nos contratos internacionais.

Alguns países já incorporaram o dever de renegociação aos seus diplomas legais internos, como é o caso, exemplificativamente, da Argentina e da Alemanha.

Na Argentina, o artigo do Código Civil que trata especificamente sobre os efeitos de acontecimentos imprevisíveis sobre os contratos de execução continuada ou diferida prevê que a parte afetada tem "derecho a plantear extrajudicialmente, o pedir ante um juez, por acción o como excepción, la resolución total o parcial del contracto, o su adecuación" (art. 1.091)4. O Código Civil alemão, por sua vez, é ainda mais categórico ao tornar a tentativa de revisão um requisito para a resolução: "se não é possível a revisão ou se ela não for exigível por uma das partes, então pode a parte prejudicada resolver o contrato" (§ 313, 3)5.

Tais previsões vão ao encontro da principiologia mais moderna aplicável ao direito dos contratos, que favorece sua revisão em detrimento de sua resolução, com a consequente conservação dos negócios jurídicos. Busca-se, necessariamente, em primeiro lugar, o reequilíbrio da avença, que, por um evento imprevisível, se tornou excessivamente onerosa para uma das partes. 

No cenário brasileiro, os particulares afetos a contratos que, por sua natureza, estão sujeitos a maiores riscos de desequilíbrio têm recorrido, ainda que de forma incipiente, a cláusulas de renegociação, que impõe às partes determinadas condutas a serem adotadas quando verificada a alteração da bases contratadas6

No entanto, a maioria dos contratos de execução continuada ou diferida não contam com qualquer previsão a respeito da conduta a ser adotada pelas partes em caso de desequilíbrio, o que conduz ao necessário questionamento: nesses casos, o pleito de renegociação extrajudicial da parte afetada pelo evento imprevisível possuirá a tutela jurídica do ordenamento brasileiro? 

A resposta, pensamos, é afirmativa7. A tutela jurídica terá como fonte o princípio da boa-fé objetiva, expressamente acolhido pelo art. 422 do Código Civil, o qual impõe às partes que se comportem - sempre - de acordo com os parâmetros necessários para a plena consecução da finalidade do contrato celebrado8. Tais parâmetros são conhecidos como deveres anexos de conduta, sendo um deles o dever de cooperação. 

Em observância ao dever de cooperação, (a) a parte onerada deve avisar prontamente a outra parte acerca da onerosidade que compromete o adimplemento e (b) a parte favorecida deve aquiescer em ingressar em renegociação para obter o reequilíbrio do ajuste e, com isso, o atingimento da finalidade originariamente idealizada para tal contrato.

Se, por um lado, o enquadramento do dever de renegociação como uma das nuances do dever de cooperação imposto pelo princípio da boa-fé objetiva não apresenta muitas dificuldades, por outro, a fixação das consequências do descumprimento de tal dever não é tão fácil, especialmente levando-se em consideração que a renegociação do contrato consiste em obrigação de meio e não de resultado.

Há, a toda evidência, um espaço de discricionariedade reservado à parte favorecida pelo desequilíbrio superveniente que lhe permite não concordar com determinadas propostas de revisão, especialmente as que fujam ou mesmo se afastem da dinâmica contratual anterior.  Não obstante, cabe à parte favorecida atuar de forma séria durante a fase de renegociação, com proposições aptas a um resultado profícuo, rejeitando-se qualquer comportamento abusivo, sob pena de se considerar inadimplido seu dever de cooperação.

Entendemos, aqui, que a partir da constatação do inadimplemento do dever de cooperação, poderá a parte lesada postular a reparação dos danos sofridos, em eventual cumulação com o pedido a ser deduzido em juízo (ou arbitragem) de revisão ou resolução do contrato atingido pelo desequilíbrio superveniente9. Tendo em vista a classificação do dever de renegociação como uma obrigação de meio, os danos sofridos com o processo de renegociação frustrado deverão ser indenizados, não contemplando valores que seriam percebidos caso a renegociação fosse exitosa, o que será avaliado caso a caso pelo Poder Judiciário.

Sem a pretensão de esgotar o tema - inserido em uma área do direito civil notoriamente espinhosa, na medida em que toca e desafia o princípio cardeal do direito dos contratos, qual seja, o princípio de que o contrato faz lei entre as partes -, o intuito é contribuir para a discussão a respeito da necessária tutela jurídica à renegociação dos contratos atingidos pelo desequilíbrio superveniente10.

Se o mundo assiste e vivencia uma radical alteração das circunstâncias em virtude da pandemia do Covid-19, inexistindo dúvida a respeito da sua imprevisibilidade, que atinge um sem número de negócios jurídicos, torna-se imprescindível, nesse momento e enquanto perdurarem os efeitos de tal triste acontecimento, a observância e o prestígio ao princípio da boa-fé objetiva e ao dever de cooperação entre as partes contratantes.

Para a reflexão contida na epígrafe deste artigo, em que se questiona o que vitima um contrato atingido pela alteração das circunstâncias, valemo-nos das palavras do  próprio autor português MENEZES CORDEIRO: "[a] sua ocorrência, perante um contrato válido, coloca um cenário onde, em simultâneo e com pretensões de validade idênticas, um subsistema exige o seu cumprimento, enquanto o sistema global clama a injustiça"11.

O momento é de profunda consternação. Importante, contudo, que, com serenidade e maturidade, consigamos extrair lições dessa pandemia, de modo que a sociedade, encerrado esse pesadelo, fique mais unida e evoluída, aprimorando as normas que regulam as relações contratuais, as quais estão, inegavelmente, presentes no cotidiano de todos.

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1 CORDEIRO, Antonio Manual da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 1.110.

2 Nesse sentido, Orlando Gomes: "Ademais, o art. 317 (que expressamente admite a correção do valor da prestação devida) e os demais dispositivos do Código Civil de 2002 atinentes a contratos específicos (v.g. art. 620, sobre a empreitada; e art. 770, parte final, sobre o seguro), demonstram sem dificuldade que o sistema do Código permite que a parte cuja prestação tornou-se excessivamente onerosa pleiteie a revisão do contrato (para reduzir ou modificar a prestação), que se trate de contratos sinalagmáticos ou de contratos unilaterais." (Na jurisprudência, vide: Apelação Cível nº 1014099-41.2017.8.26.0590, Relatora Desembargadora Maria Lúcia Pizzotti, 30ª Câmara de Direito Privado, Tribunal de Justiça de São Paulo, d.j. 13.03.2019; Apelação Cível nº 1041519-85.2014.8.26.0053, Relatora Desembargadora Isabel Cogan, 12ª Câmara de Direito Público, Tribunal de Justiça de São Paulo, d.j. 22.1.2017.  

3 "São uma compilação dos conceitos encontrados em diversos sistemas jurídicos. Seu principal objetivo é prover os agentes do comércio internacional com um conjunto de regras uniformes que disciplinam os vários aspectos da relação contratual, como a formação, validade, interpretação, execução e inexecução dos contratos, hardship e força maior, dentre outras." (ARAÚJO, Nádia. Contratos internacionais e a cláusula de hardship: a transposição de sua conceituação, segundo a lex mercatoria, para o plano interno dos contratos de longa duração in Ribeiro, Maria Rosaldo de Sá (org.). Estudos e Pareceres: Direito do PEtóleo e Gás. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 422/423)

4 Íntegra do dispositivo argentino: "Artículo 1091. Imprevisión. Si en un contrato conmutativo de ejecución diferida o permanente, la prestación a cargo de una de las partes se torna excesivamente onerosa, por una alteración extraordinaria de las circunstancias existentes al tiempo de su celebración, sobrevenida por causas ajenas a las partes y al riesgo asumido por la que es afectada, ésta tiene derecho a plantear extrajudicialmente, o pedir ante um juez, por acción o como excepción, la resolución total o parcial del contrato, o su adecuación. Igual regla se aplica al tercero a quien le han sido conferidos derechos, o asignadas obligaciones, resultantes del contrato; y al contrato aleatório si la prestación se torna excesivamente onerosa por causas extrañas a su álea propia."

5 Íntegra do dispositivo alemão: "§ 313 (Perturbação da base do negócio) (1) Se circunstâncias, tornadas base do contrato, alterarem-se profundamente depois de sua celebração, de modo que as partes não o teriam celebrado ou o teriam com outro conteúdo, se houvessem previsto essa alteração, então pode ser exigida a revisão do contrato, na medida em que for inexigível para a parte a manutenção do contrato não modificado, considerando todas as circunstâncias do caso concreto, especialmente a repaticao contratual ou legal do risco. (2) Considera-se equivalente à alteração das circunstâncias se concepções que consistiram na base do negócio revelam-se posteriormente incorretas. (3) Se não é possível a revisão ou se ela não for exigível por uma das partes, então pode a parte prejudicada resolver o contrato. No lugar do direito de resolução, dá-se o direito à denúncia, nos casos de relações duradouras."

6 As cláusulas arbitrais escalonadas, que impõem à parte que irá deduzir pretensão o dever de notificar a outra, para tentar obter a composição, ou recorrer à mediação, antes de recorrer à arbitragem, poderia ser considerada um exemplo desse tipo de cláusula. No entanto, as cláusulas de renegociação se destinam, normalmente, a tratar sobre a possibilidade (ou impossibilidade) de se suspender a execução do contrato quando constatado o desequilíbrio, prazos para envio de propostas e etc.

7 Nesse sentido: "A evolução da teoria contratual, especialmente nos pactos de duração, abre caminho no sentido de se considerar imperativa a renegociação com apoio no princípio da boa-fé e no dever de cooperação, porém, não como obrigação legal específica, mas como um dever lateral de conduta, mesmo na ausência de cláusula de renegociação." (NANNI, Giovanni Ettore. A Obrigação de Renegociar no Direito Contratual Brasileiro. In Revista do Advogado. V. 116. São Paulo: AASP, 2012, p. 95).

8 "O que o ordenamento jurídico visa com o princípio da boa-fé objetiva - já se disse - é assegurar que as partes colaborarão mutuamente para a consecução dos fins comuns perseguidos com o contrato." (TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Obrigações: estudo na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 39)  

9 "Nessa situação, o desatendimento da obrigação de renegociar não importa inadimplemento contratual, senão de dever lateral, ensejando perdas e danos, impedindo, outrossim, execução específica." (NANNI, Giovanni Ettore. op. cit.). 

10 Conforme a acurada análise de Anderson Schreiber: "O simples reconhecimento de incidência de tutela reparatória na hipótese de descumprimento do dever de renegociação imposto pela boa-fé objetiva promete desestimular a postura passiva e indiferente muitas vezes adotada pelo contratante favorecido pelo desequilíbrio contratual". (In Equilíbrio Contratual e dever de renegociar. São Paulo: Saraiva Educação. 2018. p. 312)

11 CORDEIRO, Antonio Manual da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 1.111.

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*Antonio Pedro RaposoLuiza Perrelli Bartolo são sócios do escritório Raphael Miranda Advogados.

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