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O coronavírus e os contratos

João Armando Costa Menezes

É certo que em muitas situações já está havendo e haverá a impossibilidade material do cumprimento de obrigações contratuais tal como pactuadas.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Atualizado às 12:35

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Marcando tragicamente o início dos anos 2020, a pandemia por coronavírus recebe a tipificação jurídica de força maior (Código Civil Brasileiro, artigo 393), ensejando extinção ou mesmo revisão (redimensionamento, alteração, redefinição) de obrigações contratualmente assumidas.

É certo que as relações contratuais, projetadas pelo clássico conceito de negócio jurídico, se emolduram e se substanciam com os contornos e comandos da autonomia da vontade, exercida por força do poder de deliberação dos contratantes.

Nesse diapasão, sob a égide privatística do enunciado de que "aquilo que não for legalmente proibido é permitido", os contratante estão libertos para a estipulação de direitos e deveres recíprocos, como que legislando, no particular de seus interesses jurídicos (ressalva-se se impõe aos contratos com a Administração Pública, sobre os quais recai a tipicidade cerrada - só é permitido estipular o que a lei expressamente autoriza). Aliás, segundo a concepção positivista de Kelsen, o contrato, na ambiência das relações entre particulares, é o instrumento por meio do qual "as partes legislam", na casuística de seus mútuos interesses.

Contudo, com o evoluir das relações jurídicas e da própria legislação, no contexto, inclusive, da massificação das relações contratuais, normas de ordem pública passaram a volver seus ditames ao disciplinamento dos contratos, remodelando-os, com vistas ao atendimento da função social (valor de licitude ética) que hão de cumprir os contratos, sob a regência do princípio da boa-fé, a ditar a exata interpretação e aplicação das cláusulas contratuais e, em circunstâncias como a que o mundo está a vivenciar - a pandemia -, a apontar e a impor a extinção ou a revisão (redimensionamento, alteração, redefinição) das obrigações pactuadas.

Sim. A boa-fé é o valor que confere validade substancial aos dispositivos contratuais e, quanto à conduta dos contratantes, é o valor que lhes justifica o exercício dos direitos contratuais e a imputação de responsabilidade ao outro contraente, cobrando-lhe o cumprimento das respectivas obrigações. Com efeito, a boa-fé impõe modulações à leitura dos comandos contratuais, para que seus efeitos sejam compatíveis com a conduta justificável e justificada do contratante que se porta de boa-fé.

Assim, a identificação da boa-fé contratual orienta a consecução da função social do contrato: relação jurídica que propicia a circulação de bens, utilidades, vantagens entre os integrantes da comunidade socioeconômica, dando azo à cooperação na superação de carências e dificuldades e, enfim, ensejando desenvolvimento, fomento a tal circulação de bens, serviços, trabalho e riqueza.

Nesse tom, o vigente Código Civil Brasileiro assinala, em seu artigo 421: "a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato".

Nesse contexto, é certo que, por força da pandemia por coronavírus, evento de força maior - como assim juridicamente tipificado -, em muitas situações já está havendo e haverá a impossibilidade material do cumprimento de obrigações contratuais tal como pactuadas, pelo perecimento do objeto, pela escassez ou inoperância dos meios, ou mesmo em função da enfermidade contraída por um dos sujeitos da relação contratual ou por seus agentes, ou mesmo por restrições impostas pelo governo, ou, em outras muitas situações, por imprevisto acréscimo exagerado dos encargos ou ônus ao cumprimento das obrigações contratuais, ou, em também tantas outras situações, por imprevista derrocada da capacidade econômico-financeira de o contratante cumprir sua obrigação, tal como pactuada.

E assim, caberá, em aplicação do próprio comando do citado artigo 421, em conjugação teleológica com o disposto no artigo 393, também do Código Civil, a extinção ou a revisão das obrigações contratuais, quer por acordo entre os contratantes, mediante aditivo contratual, quer judicialmente.

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*João Armando Costa Menezes é advogado cível e diretor da assessoria técnica de Martorelli Advogados.

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