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Covid-19: impactos nos contratos de locação comercial

Thiago Souza Sitta e Ianara Cardoso Lima

Para além da aplicação das teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva, há que se pautar o caso concreto no princípio da boa-fé objetiva, estabelecendo um padrão ético nas relações negociais.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Atualizado às 11:47

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Em 26 de fevereiro de 2020 o Brasil registrou o primeiro caso de covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2). Já em 11 de março de 2020, a OMS declarou o surto de covid-19 como pandemia em razão de ter atingido nível global de transmissão. Seis dias depois foi registrada a primeira morte por covid-19 no Brasil.

Diante do crescente número de casos confirmados e mortes no mundo todo, a OMS recomendou que os países ampliassem a realização de testes em pacientes que apresentem sintomas da doença e fortalecessem ações de isolamento social, adotando medidas de redução da circulação de pessoas e aglomeração.

No Brasil, as medidas para contenção do avanço do vírus vêm sendo tomadas pouco a pouco pelos chefes dos executivos estaduais e municipais que, em sua maioria, determinam períodos de quarentena com o fechamento temporário do comércio, mantendo-se o funcionamento apenas de estabelecimentos que prestam serviços essenciais, tais como supermercados, farmácias e postos de gasolina.

É evidente que tanto a recomendação da OMS como medidas impostas para o controle do avanço da pandemia impactam diretamente na economia, havendo a possibilidade de quebra de pequenas e médias empresas além do aumento drástico do número de desempregados, de modo que o Governo Federal e sua equipe vêm estudando medidas de socorro econômico aos bancos e às empresas para evitar a bancarrota da economia nacional.

Destaque-se que a OMC aponta que as pequenas e médias empresas são responsáveis por aproximadamente 70% dos postos de trabalho no mundo corporativo e 55% do PIB em economias em desenvolvimento, como o Brasil, ao passo que serão as mais afetadas financeiramente pelo covid-19.

Diante deste cenário de crise internacional de saúde pública com reflexos na economia que atingem em especial os pequenos e médios empreendedores e os trabalhadores, muitas são as dúvidas que surgem a respeito dos contratos negociados antes do atual cenário.

Primeiramente, é importante dizer que a pandemia não é um salvo conduto para o descumprimento generalizado dos contratos. No entanto, é inegável que suas implicações venham afetar alguns contratos que devem ser analisados caso a caso.

No presente texto, pretende-se analisar os contratos de locação comercial realizados antes da pandemia à luz da teoria da imprevisão e da onerosidade excessiva a fim de responder acerca da possibilidade de revisão contratual.

A teoria da imprevisão é derivada da cláusula rebus sic standibus, que surgiu em meio à Primeira Guerra Mundial a fim de regulamentar as relações contratuais profundamente atingidas pela guerra. 

De acordo com essa cláusula implícita nos contratos comutativos, de trato sucessivo e execução diferida, nos quais se enquadra o contrato de locação, a obrigatoriedade do cumprimento do contrato presume a inalterabilidade das situações fáticas do momento da contratação.

Em outras palavras, a alteração significativa do arcabouço fático no momento da execução do contrato altera também os direitos e deveres das partes contratantes.

No direito brasileiro, este princípio está positivado no artigo 317 do Código Civil que prevê a possibilidade de revisão contratual, quando, "por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução"

De outro lado, o artigo 393 do Código Civil prevê que "o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado".

Já a onerosidade excessiva aparece nos artigos 478 e 479, também do Código Civil, que determinam que caso haja desequilíbrio contratual nos termos previstos pelo artigo 393 supra mencionado, o devedor poderá requerer a resolução do contrato, que poderá ser evitada mediante a modificação equitativa das cláusulas contratuais.

É inegável que a pandemia do covid-19 e suas consequências como a imposição de quarentena, isolamento social e determinação de fechamento do comércio, podem ser classificados como fatos imprevisíveis que alteraram sobremaneira a situação fática, enquadrando-se, inclusive no conceito de força maior.

Veja-se que além da recomendação da OMS e da determinação de quarentena e fechamento do comércio por meio de atos do executivo, há maciça divulgação na mídia das medidas de isolamento social e recomendação para que as pessoas permaneçam em suas casas.

Isso significa que os locatários de imóveis comerciais se veem impedidos de usufruir plenamente do imóvel, seja pela redução drástica de sua atividade comercial pela queda do movimento e falta de circulação de pessoas, seja pela imposição de fechamento de seus estabelecimentos, o que pode afetar em demasiado seus rendimentos.

Assim, é necessário olhar caso a caso para os contratos de locação comercial e verificar se em razão das medidas adotadas para conter o avanço da covid-19, a significativa modificação das condições fáticas em que os contratos foram firmados causa desproporcionalidade da prestação locatícia ou onerosidade excessiva para uma das partes.

Caso se verifique a desproporcionalidade da prestação locatícia, poderá haver a revisão das cláusulas contratuais. Já no caso de onerosidade excessiva para uma das partes, é possível a resolução do contrato sem ônus para quem a requerer.

Há ainda quem defenda que os impactos da covid-19 nas atividades comerciais cause situação análoga a deterioração do bem objeto do contrato de locação, podendo ser evocado o artigo 567 do Código Civil para requerer a revisão do contrato.

No entanto, para além da aplicação das teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva, há que se pautar o caso concreto no princípio da boa-fé objetiva, estabelecendo um padrão ético nas relações negociais. Destaque-se que os contratantes estão submetidos aos deveres anexos - cuidado em relação a outra parte negocial; dever de respeito, dever de informar; dever de agir conforme a confiança que foi depositada, dever de lealdade e probidade; dever de cooperação; e dever de agir conforme a razoabilidade e equidade.

Decorre ainda da boa-fé objetiva o subprincípio duty to mitigate the loss ou dever de mitigar a perda. De acordo com este princípio, o credor, sempre que possível, deve tomar atitudes que visem a diminuição da extensão do dano, o que está em conformidade com o princípio da solidariedade previsto no art. 3º, inciso I, da Constituição Federal.

A pandemia causada pelo novo coronavírus está atingindo a todos e seus impactos econômicos, sociais e na saúde somente poderão ser analisados no futuro, uma vez que a situação presente não se assemelha a nada que já tenha acontecido nas últimas décadas.

Portanto, podemos concluir que o caminho para lidar com os impactos que a covid-19 gerará nos contratos de locação comercial é o da autocomposição, de modo que as partes renegociem os contratos para torná-los novamente equânimes, possibilitando a continuidade da relação negocial e da atividade econômica desenvolvida pelo locatário, privilegiando a função social dos contratos e a livre iniciativa de modo a manter as atividades produtivas tão caras ao nosso sistema econômico.

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*Thiago Souza Sitta tem MBA em Gestão & Business Law pela Fundação Getúlio Vargas e é sócio no escritório Federiche Mincache Advogados. 

**Ianara Cardoso Lima é mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina e advogada no escritório Federiche Mincache Advogados.

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