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Reflexão em tempo de pandemia - O Trabalho Invisível das mulheres

Mudanças em nosso cotidiano, aparentemente banais e sem importância, podem resultar em importantes progressos no mercado de trabalho.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Atualizado às 09:35

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Recentemente ao terminar a leitura do livro A Vida Invisível, tive plena consciência de minhas vantagens por conta de alguns fatores:

a) o primeiro deles foi a época em que nasci, ou seja, não tive que lutar por espaço ou para ter o direito de trabalhar, desafio vivido por mulheres de outra geração; b) segundo, e provavelmente mais importante, foi minha referência materna, exemplo de profissional, mulher e mãe; sua presença facilitou minha vida em todos os sentidos; c) terceiro, existe uma tendência, ainda que incipiente, de se repensar a administração de tarefas domésticas. 

A igualdade de gênero ainda está longe de ser atingida; vivemos em um país em que as mulheres são constantemente violentadas e sofrem preconceitos. Vale salientar que o Brasil é o quinto país que mais mata mulheres no mundo e o machismo ainda está enraizado e muito presente em nosso cotidiano. Os desafios que as mulheres enfrentam todos os dias para alcançar a igualdade são consideráveis. 

A pergunta que fica é como tornar a mulher mais competitiva no mercado de trabalho. Certamente uma das respostas para essa pergunta seria equacionar a divisão das tarefas domésticas com os homens da casa. 

Progressos estão sendo sentidos no decorrer dos anos. As mulheres estão ocupando posições de destaque e podem evitar frustações como as de Eurídice do livro A Vida Invisível. Contudo, as discrepâncias ainda existem e são sentidas tanto em países subdesenvolvidos, como desenvolvidos, com variações de grau dessa diferença entre os gêneros e o tempo para se alcançar a igualdade. 

Melinda Gates em artigo publicado pela Harvard Business Review atesta que nos Estados Unidos serão necessários 208 anos para se alcançar a igualdade, enquanto no Canadá 51 anos e no Reino Unido 74 anos; não é pouco considerando o grau de desenvolvimento dos países citados. 

No mesmo texto afirma que os homens definem políticas públicas, alocam recursos, lideram empresas e as mulheres mais marginalizadas da sociedade americana ainda são as com maior probabilidade de recebimento de salários menores.

A desigualdade já começa dentro de casa com a divisão de tarefas domésticas e tentar minimizar o problema em nichos menores pode ser o caminho na luta por maior representatividade das mulheres.

Vale mencionar o fato de muitas mulheres serem obrigadas a empreender por conta de uma demissão inesperada após a licença maternidade; portanto, implementar a licença paternidade remunerada no mercado pode auxiliar o aumento da participação masculina na complexa dinâmica família/trabalho.

Em entrevista realizada com executivos de ambos os gêneros, os homens em geral mencionam receber mais apoio das parceiras; e muitos tinham esposas dedicadas exclusivamente ao lar. Foi destacado por eles a disposição das mulheres em cuidar das crianças, tolerar longas horas de ausência dos parceiros e até mudar de lugar de moradia.

Para as mulheres em cargos de liderança a situação é bem diversa; os parceiros demonstram compreensão quando as tarefas domésticas não saem como o previsto por conta da sobrecarga de trabalho em suas empresas. E as mulheres elogiam seus maridos por não interferirem na vida doméstica.

A pesquisa também indentificou diferenças significativas: enquanto 88% dos executivos eram casados, a porcentagem era 70% para as mulheres. E o mais impressionante, 60% dos homens possuíam parceiras que não trabalhavam fora em tempo integral enquanto a porcentagem das mulheres era de somente 10% das mulheres. A pesquisa evidencia como os homens vivenciam rede de apoio considerável para evoluir profissionalmente, podendo conciliar trabalho e família; por outro lado para as mulheres a situação é bem mais complicada.

A pandemia do covid 19 trouxe mais à tona a necessidade de reavaliarmos a divisão equitativa de tarefas entre os casais. Muitas mulheres precisam administrar home office; homeschooling e tarefas domésticas.

Enfrentamos uma fase desafiadora. Muitas mulheres devem lidar com novas demandas, como por exemplo: buscar a melhor forma de ajudar os filhos em tarefas escolares, mesmo sem a devida expertise; muitas precisam lidar com as frustrações de crianças e adolescentes diante do isolamento forçado; sem falar o enfrentamento de seus próprios dilemas, como gerir o tempo para atingir resultados satisfatórios, de forma a cumprir tantas funções; lidar com orçamentos reduzidos por conta da crise e em muitos casos deverão lidar com cenários como desemprego.

Ademais, merece destaque as que precisarão lidar com o aumento da agressividade de seus parceiros; portanto, espera-se infelizmente o aumento de casos de violência doméstica, por conta desse cenário tão imprevisível e difícil. Merece destaque, inclusive, que o Tribunal de Justiça de São Paulo já identificou aumento de medidas protetivas no presente momento.

A americana Eve Rodsky elaborou, em seu livro, método inovador para gerenciamento de tarefas domésticas, pois estava exausta por ser a única a lembrar de todas as tarefas corriqueiras e ainda trabalhar em tempo integral. Com base em pesquisa com mais de quinhentos casais americanos ela conseguiu mapear o trabalho invisível de uma casa, bem como mapear o meio mais eficaz de dividir as tarefas.

Dessa forma, mudanças em nosso cotidiano, aparentemente banais e sem importância, podem resultar em importantes progressos no mercado de trabalho. Por conseguinte, antes de pensarmos em igualdade de gênero em contexto macro, podemos pensar no contexto micro, ou seja, como as mulheres podem ser auxiliadas e motivadas em suas próprias casas. A divisão equitativa de tarefas é um caminho sem volta para famílias na atualidade; e devemos tratar o assunto com a seriedade que ele requer.

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*Ana Carolina Goffi Flaquer Scartezzini é sócia do escritório Goffi Scartezzini Advogados Associados.

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